Natação, futebol e outros coelhos – 2


 

 

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Parte 2

 

Todo poeta merece seu busto. Errei, digo, não merece ser transformado em busto, o que um poeta não pode é o seu risco: consolidar uns versos, e seus sucessores amarrarem as mandíbulas do dito em bronze ou concreto. Uma cidade de mandíbulas poéticas: Lisboa. Quando mudei pra cá muito me impressionou como há tantas estátuas de escritores quanto de reis, talvez até mais de escritores. Todo monumento de cultura é um monumento de barbárie? Mas a poesia não é nem a civilização, nem a barbárie. É um centauro, tantos já disseram. Que range os dentes das estátuas em qualquer cidade.

O excesso de cultura e informação pedem a qualquer poeta algum posicionamento ou, pelo menos, uma resposta. Das naturalizações do cinismo do tudo já foi feito, e está conhecido, o desconhecedor disto perderá um algodão doce que eu já perdi, pois nunca tive, como também pela nomeação extensiva de autores que se referiram a autores que se referiram a autores que, etc.; e a proliferação de citações pisca-olho-pros-entendidos-toda-palavra-basta nos poemas do nosso tempo mostram que a questão é antiga demais pra nós. Tão antiga e questionando. As respostas acima são válidas, mas não são exatamente as minhas. As de Zíngano também não são as minhas, mas gosto delas porque seus poemas causam alegres e ácidos curtos-circuitos na transmissão e no pensamento sobre poesia. O nadador bate pernas, pede bis. Pode-se ver em outros de seus poemas o grande campo da crítica e da teoria literária sendo minado por dentro: leia-se, por exemplo, “teoria dos gêneros”, na edição virtual de seus poemas na Modo de Usar & Co (http://revistamododeusar.blogspot.com.br/2011/06/erica-zingano.html).

Quando Zíngano brinca com C’mões não é ele o conservador. Como poderia? Conservadores são os conservadores de Camões. Neste sentido, a ruptura de Zíngano não é a paródia modernista da alteração do cânone, mas das leituras do cânone. Mas quem é que manda no Guinness Book? Vamos ler a segunda parte de “Os conservadores deveriam fazer alguma coisa de útil”:

 

2.

 

Há pouquíssimos escritores

no Guinness Book

e dentre eles figura

o poeta gaúcho

Luiz Miranda

porque ele é

o único poeta vivo

no mundo

com um busto

num campo de futebol –

não sei o que farão

quando ele morrer

decerto

Luiz Miranda

se tornará

o único poeta morto

no mundo

com um busto

num campo de futebol!

(até então

e nunca se sabe

até quando)

Seguindo a tradição clássica

que valoriza esportes e cultura

Luiz Miranda

foi jogador do Uruguaiana

mas não se iludam

praticar esportes não o salvou

da boêmia

recebeu o título das mãos

de Lupicínio Rodrigues

de Secretário da Noite

além de ter sido padrinho

do Clube da Farra em Recife

(onde – orgulhosos – ostentam

retratos em sua homenagem)

Luiz Miranda

é o Príncipe dos Poetas

Rio-Grandenses

pela Casa do Poeta

Rio-Grandense

seguindo a tradição

iniciada em 1916

quando Olavo Bilac

deu o título a

Zeferino Brasil

É por essas e outras

que os conservadores deveriam

empreender

a digníssima campanha

do caolho C’mões

pro Guinness Book

vocês não acham?

 

A poesia não tem a popularidade do futebol, no entanto, um poeta reconhecido pela localidade do seu local figura no Guinness pelo seu busto ser de um vivo que sabe conjugar futebol e poesia, boêmia e títulos de clubes de farra, animação e outras antologias. O poema vira palco de dados biográficos de um outro, numa acumulação frenética. Poesia que não é ornamentação. Dizer “Olavo Bilac” me faz pensar que (ou eu o leio demasiadamente com os modernistas) ele foi o maior provinciano entre os conservadores do universal. Aqui não se inveja o ourives, mas o dilapidador. Afinal, onde está a voz de quem fala? Criando desvios.

É difícil citar um trecho sem perder todo o poema, nos poemas de Érica o que vem agora depende do que veio antes, absolutamente, linearmente até. Mas não há nenhuma monotonia e a surpresa deles está mesmo no curso das coisas. Desvios de um fluxo contínuo, surge um comentário que corrige, reitera, volta atrás, abre um parênteses, ou conclui, com a abertura de um vazio depois de tanta informação sobre um poeta que sem dúvida não é Camões, que os conservadores deveriam fazer algo de útil e levarem-no para o livro dos recordes. Quando o ilógico faz as vezes de lógico, abrupto é o riso, ou o pensamento tão ocupado, se libertando no ficar à toa. Boêmia também não nos faltará.

 

[continua]

 

 

 

 

 

 

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Júlia Hansen nasceu em São Paulo, em 1984. É poeta e estudante. Vive em Lisboa. E-mail: juliadecarvalhohansen@gmail.com




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