Natação, futebol e outros coelhos


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C’mon beibe, venha cá, dá-me a tua mão.  Você pode me explicar o que anda fazendo? Érica Zíngano veio morar em Lisboa, como eu. Vão dizer (se já não dizem) em questão de pouco tempo, que os poemas dela anunciam/aliciam essa história de dosar na mesma língua uma língua estrangeira.

Quando na tradição se deseja a alteração, que podemos fazer com ela, além de dançar? Os dedos titubeiam por cima da mesa, agitada. Arisca, mas não selvagem, antes antes, citadina. Papéis brancos, cheios de escritos e tudo limpo.

É assim: no número 03 da revista Modo de Usar & co., Érica Zíngano publicou um poema que conta a bela e antiga história de C’mões. A comida das vogais, como se sabe, é um hábito lusitano que deriva entre nós desde a comestibilidade do Bispo Sardinha. Mas o poeta teve sorte maior, cito a primeira parte de “Os conservadores deveriam fazer alguma coisa de útil”:
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1.

Há quem diga

que a poesia de hoje

está perdida

que naquele tempo

“os áureos tempos da poesia”

os poetas

ao modo dos gregos

eram mais esportistas

(para entender a relação

entre esporte e corpo

na antiguidade clássica

Cf. Ilíada)

já que o nosso bom

e velho

Luís de C’mões

banhando-se na tradição

greco-latina

não deixou de lado

os exercícios físicos

Pelo contrário

C’mões era soldado

e bastante influenciado

pelos clássicos

tornou-se o maior poeta

da língua portuguesa

Na verdade

o maior poeta

nadador

da língua portuguesa

pois, para se salvar

de um naufrágio

ele

e seus preciosos versos

nadaram em mar aberto

muito crawl

de estilo livre

De certa forma

os conservadores estão certos

não há quem bata

o recorde de C’mões

que de corpo inteiro

e muita disposição

no espírito

conseguiu salvar a nado

Os Lusíadas

epopeia de 10 cantos

com 1.102 estrofes

nesse caso, oitavas

por conter 8 versos

cada qual com 10 sílabas

poéticas

totalizando ao todo

8.816 decassílabos

Dados

que os conservadores

deveriam utilizar

para empreender

a digníssima campanha

“C’mões, um poeta,

um nadador:

do Cânone

ao Guinness Book”

com esses números

entraria de certeza

para o Livro dos Recordes

ainda mais se levarmos

em consideração

que era caolho

nadou

e escreveu tudo isso

com um olho só

ó pá!

Não percamos tempo, pois

Guinness Book já

para o caolho C’mões!

 

*

Na antiguidade clássica (cf. Audácia) o poeta é um nadador. Nada tão completamente, que chega a fingir que nada na água que deveras é nada. A poética de Érica está entretecida de nadas, brilhando entre coisas muitas: “a banalidade me interessa”, ela poderia dizer, entre um aeroporto e outro. Curiosa, tudo é tema verbal para Zíngano, que não faz uma poesia do silêncio, mas a poesia ta-ga-re-la, onde um passo deriva em outro laço, que inventa sentido, inventa sentido, inventa sentido: a direção do poema é ritmada pelos desvios e pelo acúmulo deste desvios: o mundo é tão grande, há tanta coisa sendo dita: se eu tivesse boca, queria uma com três mandíbulas, que era pra digerir muito. Então, na-na-ni-na-não: não pensem que o excesso de cultura fará nascer uma raça de bebês grisalhos, a poesia de Érica não tem o cinismo da poltrona, mas a agilidade de uns cílios longos, feito pernas.

Ao levar Camões do cânone literário pro Guinness, ele perde não só o olho em Ceuta, mas uma letra. Comida pela pronúncia, o apóstrofo é o tapa-olha que nos faz ver melhor: os conservadores vão levando C’mões para o livro dos recordes e Érica Zíngano mostra como seleções de os-melhores são uma coleção de latinhas de refrigerante. Conservadores de alumínio, armaduras de vestígios: nosso herói era caolho; todo poeta merece seu apóstrofo, a sua mandíbula, etc.
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[continua]

 

 

 

 

 

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Júlia Hansen nasceu em São Paulo, em 1984. É poeta e estudante. Vive em Lisboa. E-mail: juliadecarvalhohansen@gmail.com




Comentários (4 comentários)

  1. Marcelo Ariel, Júlia ‘Todo poeta é nadador’ e nada até em piscina com fogo, como é o caso da Érica, uma das vozes mais instigantes da poesia brasileira da atualidade. Hoje, sinto vivemos ainda no ‘feudalismo cultural’ mas a existência de poetas como a Érica é algo a ser comemorado com um toque de trombeta no terreno baldio da literatura brasileira contemporânea.Ela tem uma singularidade ímpar.
    21 junho, 2012 as 17:09
  2. jeanne, a água sempre fez bem a versos e alma de gente. Obrigada, não conhecia.
    22 junho, 2012 as 10:06
  3. júlia, marcelo, fico contente que você considere a poesia da érica como eu considero: instigante, singular, comemorável. é isso aí, vamos nadando em piscinas com fogo, e facas afiadas não faltarão! jeanne, legal que você curtiu.
    13 julho, 2012 as 11:20
  4. carla menezes, sempre gostei de poesias, na adolescencia declamava Cecilia Meireles na escola, em gincanas, hoje mãe de três meninas não consigo me dedicar, as vezes tenho otimas ideias mas não anoto.
    16 abril, 2014 as 13:51

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