Não chores por mim, Carminha
Uma mitologia de punhais
No esquecimento aos poucos se desgasta.
E dispersou-se uma canção de gesta
Em sórdidas notícias policiais.
(Jorge Luis Borges – O Tango).
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Nos caminhos que cortam as metrópoles latinas um diálogo raro. Avenidas tão distantes tornam-se paralelas com encontro marcado. Cruzamentos que pareciam impossíveis de ser transpostos, estancados por cristalizados sinais vermelhos, são furados, brusca e surpreendentemente, pela imaginação de um ousado ficcionista da tevê brasileira.
A trombada entre telenovela e literatura é inevitável. Ao volante, João Emanuel Carneiro, autor da novela Avenida Brasil, maior sucesso do gênero dos últimos dez anos, exibido na Rede Globo de Televisão. Batida, capotamento, imprudência ou apenas uma derrapada, não importa. O choque provocado pela incrível intertextualidade acontece num dos lugares mais improváveis e inóspitos à subjetividade, e faz a rasa dramaturgia televisiva brasileira ser atropelada por entrelinhas da mais alta literatura.
Acredito que, em Avenida Brasil, Carneiro não só ensaiou uma tímida tentativa de diálogo com o território geográfico, mas também flertou com uma pequena parte do corpus literário de Jorge Luis Borges. A história de Nina, heroína de Carneiro, interpretada pela atriz Débora Falabella, nos remete ao drama vivido pela personagem borgeseana Emma Zunz.
Encontrei Emma Zunz no conto que leva seu nome, publicado no primeiro volume das Obras Completas de Borges, lançado no Brasil pela Editora Globo. Assim como Nina, Emma também vive obcecada pela ideia de vingar a morte do pai.
O conto de Borges se passa em 1922. Emma Zunz, ao voltar da fábrica de tecidos Tarbuch e Loewenthal, encontrou no fundo do vestíbulo uma carta, datada do Brasil, pela qual soube que seu pai tinha morrido (…) Emma deixou cair o papel. A primeira sensação foi de mal-estar no ventre e nos joelhos, depois de cega culpa, de irrealidade, de frio, de temor; depois, quis já estar no dia seguinte.[1]
Segundo a carta, o pai de Emma tinha ingerido, por engano, uma forte dose de veronal e falecido no hospital da cidade de Bagé, no Rio Grande do Sul. Um seu companheiro de pensão assinava a notícia. Assim como o pai de Emma teria morrido “envenenado” com uma overdose de sonífero com propriedades hipnóticas, na novela, a “mãe do lixão” que cuidou de Nina até ela ser adotada, a misteriosa mãe Lucinda, também, no passado, matou a mãe da vilã da história com uma dose de veneno. Crime que teria marcado o destino dos principais personagens da trama, ou seja, levados todos para o “lixão”.
Suicídio ou assassinato, Emma se revolta ao saber da morte do pai, que, nos velhos dias felizes, fora Emanuel Zunz. A jovem recordou veraneios numa chácara, perto de Gualeguay, a casinha de Lanús, o auto de prisão, as cartas anônimas sobre o “desfalque do caixa”… Emma guardava um segredo compartilhado por seu pai de que Aaron Loewenthal, antigo gerente, e agora um dos donos da fábrica, era o ladrão.
Mas a trama do autor argentino se aproxima do folhetim brasileiro especialmente na grande loucura da protagonista, que não mede esforços para concretizar seu plano de vingança. Nina chega a correr o risco de perder o grande amor para atingir seu objetivo final: acabar com Carminha, a mulher que destruiu a felicidade da sua família.
Emma vive uma noite como prostituta até as últimas consequências e dorme com um marinheiro escroto no porto da cidade de Almagro, onde vivia só para destruir Aaron Loewenthal, o vilão, uma versão masculina da “Carminha”, e, com isso, vingar o nome do pai.
Anunciada por luzes e despida pelos olhos famintos (…) Entrou em dois ou três bares, viu a rotina ou os modos de outras mulheres. Por fim, deu com os homens do Nordstjarnan. Temeu que um deles, muito jovem, lhe inspirasse alguma ternura e optou por outro, talvez mais baixo que ela e mais grosseiro, a fim de que a pureza do horror não fosse diminuída. O homem conduziu-a a uma porta e depois a um turvo saguão…” (BORGES, cit., p. 629).
Notamos que Borges trabalha não só com a metáfora do labirinto mental, como também com a metáfora do labirinto espacial. Ao chegar ao prostíbulo, Emma se vê num verdadeiro labirinto de espelhos, luzes, vidraças, corredores, escadas, portas, janelas. Um labirinto também é a mansão de Tufão e Carminha para Nina. Isso sem falar no labirinto mental em que a heroína de Avenida Brasil vive mergulhada, afogada em memórias, misturando fatos e pessoas, passado e presente, como ingredientes de uma obsessão alucinada..
O narrador borgeseano continua construindo os sentimentos da vingadora. Conta que Emma pensou no pai na hora em que se entregou ao desconhecido, e que, logo depois de se deixar tocar pela violência sexual, consolava-se acreditando que, assim como ela tinha sido um instrumento para o marinheiro, ele também foi usado por ela. Ela serviu para o gozo. Ele, para justiça.
Aparentemente “violentada”, Emma, então, marca um encontro com o assassino do pai no escritório da fábrica, e o mata com dois tiros de revólver. Para a polícia, disse que atirou em legítima defesa, porque estava sendo abusada sexualmente pelo patrão.
Vinguei meu pai e não me poderão castigar. (…) Aconteceu uma coisa inacreditável… O senhor Loewenthal me fez vir com o pretexto da greve… Abusou de mim, eu o matei (…) Verdadeiro era o tom de Emma Zunz, verdadeiro o pudor, verdadeiro o ódio. Verdadeiro também era o ultraje que padecera; só eram falsas as circunstâncias, a hora e um ou dois nomes próprios (BORGES, cit., p. 631).
Em Avenida Brasil, a heroína que tem dois nomes, Nina e Rita, cria e se envolve em múltiplas circunstâncias falsas, inventadas por ela para destruir a mulher que enganou, roubou e acabou, de certa forma, causando a morte do seu pai.
Assim como a Nina da novela, o pai de Emma Zunz também tem dupla identidade. Ele cria um nome falso seis anos antes de morrer para se livrar da prisão e da acusação de ter sido responsável pelo desfalque no caixa da fábrica. Emanuel Zunz foi obrigado a fugir do país e se transformar em Manuel Maeir. Na última noite junto com a filha, jura inocência e acusa Aaron Loewenthal , antes gerente e depois dono da fábrica, de ter cometido o crime pelo qual tinha sido acusado. Certa de que seu pai tinha se suicidado, Emma decide vingar a morte dele.
Emma demora 6 anos para por em prática seu plano de vingança. Nina cozinha sua obsessão durante 12 anos.
Na novela também há outras passagens que nos remetem ao conto borgeseano. Nina, depois de ficar órfã, ainda criança, é adotada por uma família de argentinos e vai morar no interior daquele país. Depois, já adulta, volta ao Brasil para realizar seu plano de vingança. O pai de Emma Zunz, como dito, também deixa a Argentina para morar no Brasil, mais exatamente em Bagé, no Rio Grande do Sul.
Uma jovem capaz de tudo para vingar a morte do pai; heroína e bandida, sabotadora dela mesma, mestre em inventar e reinventar realidades; a Argentina como cenário e pano de fundo; grandes segredos, golpes financeiros, trapaças, assassinatos… Impossível o atento leitor de Borges não se lembrar do conto Emma Zunz ao acompanhar a novela de Carneiro. Será que ele se inspirou mesmo no conto de Borges para escrever a novela?
Assim como a novela, é importante ressaltar que o conto Emma Zunz também se abre a múltiplas leituras. Ë pontuado por lacunas e ambigüidades e permite ao leitor imaginar outras possibilidades narrativas não desenvolvidas. Se a personagem Emma Zunz pode ser lida como uma filha destemida e sofrida, que vinga a morte do pai; ou como uma astuta manipuladora de situações e pessoas, obcecada pela figura paterna e assim como Nina, enlouquecida pela “culpa” de não ter conseguido evitar a morte do pai.
Se Emma se prostitui para se punir pela morte do pai, Nina se infiltra na mansão e se sujeita a ser humilhada ao trabalhar como empregada na casa da sua pior inimiga, da mulher que mais odeia.
Coincidência ou não, esse encontro torna-se ainda mais eletrizante quando as cenas de Avenida Brasil são marcadas pelos acordes do tango Infiltrado do grupo Bajofondo, formado por vários músicos contemporâneos argentinos e uruguaios. A mesma banda de tango eletrônico que também foi responsável por “Pa” Bailar, canção usada na abertura da novela A Favorita, do mesmo autor.
Não bastasse o tango, ainda tem o futebol. Tufão, o “Maradona” do bairro do Divino, um dos personagens-chave da novela, também tira o chapéu para o capital literário do povo argentino ao aprender com Nina o gosto pela leitura. A heroína, que cresceu na terra de Evita Perón, estimula o jogador brasileiro a ler clássicos, como Metamorfose, de Franz Kafka, Madame Bovary, de Gustave Flaubert, Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Braz Cubas, de Machado de Assis, A interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud, entre outros.
Nunca tantos livros consagrados ganharam tamanho espaço em horário nobre na maior rede de televisão aberta do Brasil. E como deu audiência! Salve, Borges! Só está faltando um romance ou um conto de Borges na biblioteca de Tufão. Quem sabe no último capítulo ele não apareça lendo Emma Zunz.
Agora, a pergunta que não quer calar: será que no conto do autor argentino está a chave para descobrir o final da heroína e da vilã de Avenida Brasil? Hola, hola, hola…
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Lucius de Mello é escritor , jornalista, mestrando em Literatura e Cultura Hebraica (USP), pesquisador do LEER – Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da Universidade de São Paulo, pesquisador do ARQSHOAH- Arquivo virtual do Holocausto e Antissemitismo. Foi finalista do Prêmio Jabuti em 2003 com a biografia Eny e o Grande Bordel Brasileiro,- Ed. Objetiva. Também é autor do romance histórico A Travessia da Terra Vermelha – Uma Saga dos Refugiados Judeus no Brasil e do romance Mestiços da Casa Velha. E-mail: luciusdemello@uol.com.br
2 outubro, 2012 as 12:45
11 outubro, 2012 as 13:25