Mundo fora da ordem
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Alguma coisa está fora da ordem
por Fábio Fernandes
Os contos do Daniel me lembram as narrativas do saudoso Victor Giudice. Esse escritor carioca, que nos deixou cedo demais, era mestre da narrativa fantástica. Mas não era qualquer tipo de fantástico: era algo que só poderia ter nascido no Rio de Janeiro dos anos 1970, sob o tacão da ditadura. Romances como Bolero, que parece um episódio da clássica série “Além da Imaginação”, e contos como O Arquivo (que durante anos permaneceu um dos contos brasileiros mais traduzidos no exterior), que narra a lenta transformação de um burocrata medíocre num arquivo metálico, nos dão a condição dos humilhados e ofendidos (para usarmos a expressão de Dostoievski tão cara a Nelson Rodrigues) naqueles tempos.
Tempos que, ao fim e ao cabo, não são (não mais) tão diferentes de hoje, em que vivemos à sombra de novas ditaduras e de um fascismo que mostra seus dentes, dos quais nenhum de nós está livre.
As narrativas de Daniel nos revelam uma condição dupla que é muito pertinente a estes tempos sombrios: se por um lado, o frescor de uma voz nova e cheia de fúria e indignação, por outro, o peso imenso da sombra autoritária que esmaga corações e mentes. Impossível não identificar no protagonista de João Gabriel, por exemplo, o homem sufocado e transmutado de O Arquivo. E no homem sem nome do conto que dá título à coletânea, o homem cercado por todos os lados de Bolero – homens todos esses que descendem diretamente de Josef K.
Além de Kafka e Giudice, reconheço nele também um pouco de José J. Veiga, outro mestre do conto fantástico. Só não vejo Osman Lins nem Murilo Rubião na prosa de Daniel porque estes dois últimos tinham uma base mística em suas obras que falta a Daniel. E isso não o diminui, pelo contrário: se falta misticismo, é porque não há mais como ser místico ou religioso, não no retorno de tempos autoritários. Não há esperança para seus personagens, e isso é apenas natural.
Porque estes são tempos novos, ainda que tragam em seu bojo o sabor amargo do passado recente. Além do autoritarismo e um estado de exceção nem mais tão velado assim, temos agora uma pandemia – que, para piorar a situação, não está sendo tratada com seriedade pelo governo brasileiro. No momento em que escrevo isto, mais de 200 mil vidas já foram ceifadas pela COVID-19 em nosso país, e infelizmente um número bem maior terá sido dizimado no momento em que vocês, caros leitores, estiverem lendo estas linhas.
Não há salvação possível num mundo que está fora da ordem, e os contos de Daniel Osiecki nos mostram isso com uma lucidez devastadora.
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Confira um conto do livro:
ESTÃO À SUA ESPERA
Recebi a ligação de madrugada. Não fazia ideia de que alguém naquela cidade que, é bom frisar, eu nem sabia o nome, pudesse saber de minha existência. Sabia das origens de minha família. Sabia que meus pais vieram do interior, mas nunca ouvi histórias de meus primos, tios e outros parentes mais ou menos próximos. Era como se eles não existissem e depois de algum tempo percebi que a origem de meus pais era um tabu aqui em casa. Meus pais já morreram há alguns anos e seja lá o que for que escondiam, morreu com eles. Eu também nunca tive o menor interesse em buscar saber algo, até a ligação em que um homem me avisa sobre a morte de alguém. A ligação não era clara o suficiente, mas parece que ouvi a palavra avô.
Meu núcleo familiar sempre foi reduzido a pai e mãe. Mais ninguém. Desde criança nunca tive relações com primos, pois não tínhamos ninguém da família na cidade. Na verdade o meu conceito de família durante minha infância e adolescência não era muito bem definido. Lembro de colegas da escola dizendo que não poderiam brincar pois iriam dormir na casa dos avós ou dos primos. Aquilo passou a me inquietar por um período, mas desisti de pensar nisso. Nunca tive coragem de perguntar nada para meus pais por algum motivo que até hoje não faço ideia qual seja. Talvez eu achasse que tivesse algo a ser escondido e que era melhor continuar assim. O que acho hoje? Será que saberia responder?
Tudo que ouvi durante a breve conversa ao telefone às três da manhã foi uma explicação de como se chegava ao local do velório. Só. Nem tive tempo de perguntar quem havia morrido e quem estava falando. Pude perceber que se tratava de uma pessoa de idade e que era voz de homem. Definitivamente era uma voz que nunca tinha ouvido antes. Olhei pela janela de meu quarto e a neblina havia se intensificado. Seria inviável viajar àquela hora da madrugada, mas minha curiosidade era maior do que qualquer outra coisa. Nesse momento senti o peso da solidão que nunca havia sentido, senti seu peso em minhas pernas. Senti-me só, pois não tinha ninguém para quem eu pudesse ligar e avisar que alguém (não sabia quem) da família tinha morrido.
Tomei um banho para conseguir acordar definitivamente, tomei um café puro e forte e desci para a garagem. Fazia tempo que não dirigia, mas não podia esperar mais. Na verdade eu não conseguia esperar mais, estava ansioso para chegar logo nessa cidade que era próxima mas completamente desconhecida pra mim. Quando o senhor me passou o endereço pelo telefone, na mesma hora fui buscar na internet. Não encontrei a cidade, mas, curiosamente, encontrei o endereço do local do velório. Estava lá, com o número e nome do local, mas nenhuma cidade com o nome que ele me passou.
Durante o trajeto que duraria cerca de duas horas pelos meus cálculos, pois a distância era de 115 km, já não havia quaisquer resquícios de sono, apenas o nervosismo que comecei a sentir logo depois da ligação, mas ali na escuridão da estrada o nervosismo já havia se tornado medo, e o medo estava prestes a virar desespero.
Depois de quase duas horas dirigindo, ainda estava escuro e a névoa havia baixado ainda mais e pude concluir que se tratava de um local mais alto. Parei no acostamento para olhar o gps mais uma vez. Tudo indicava que o trajeto estava correto. Aproximadamente 200m adiante pude identificar uma placa com algo escrito. Àquela distância não podia enxergar, apenas via que na parte de baixo da placa havia uma seta indicando para virar à esquerda. Segui até a placa e me pareceu que tinha algo escrito, provavelmente o nome da cidade ou de alguma localização, mas havia sido apagado. Podia-se perceber que a placa tinha marcas de que havia sido raspada. Como não tinha mais nada pela frente e o GPS indicava aquele mesmo caminho, segui em frente. Não tinha postes de luz. A escuridão seria total se não fossem os faróis de meu carro.
Depois de rodar por aproximadamente vinte minutos, vi uma luz ao longe. Parecia que era uma fogueira, depois se apagou. Nesse momento me dei conta que estava quase entrando com o carro em um barranco. Pisei no freio de repente e pelos socos e solavancos notei que era uma estrada de cascalho, ou de terra, muito comuns pelo interior. Estava suando nas mãos e no rosto. A névoa estava mais intensa. Dei marcha à ré e continuei pela estrada, agora com total atenção ao caminho. Dirigia a 30 km/h, talvez menos.
Percebi que eram muitas curvas, por isso a luz que tinha visto há pouco aparecia e sumia, pois ficava por trás dos morros e árvores dependendo das curvas que fazia. Finalmente vi uma pessoa a poucos metros de distância. Era um homem, parecia ter certa idade e era bastante alto. Estava parado em frente a um galpão de madeira. Pude perceber que mais pessoas vinham do lado oposto de meu caminho. A maioria era idosa e, curiosamente, homens. Havia poucas mulheres.
Quando cheguei perto daquele senhor alto e vestido com um terno puído, antes que eu falasse qualquer coisa, me disse que todos estavam me esperando. Eu não consegui compreender direito, pois a frase não fazia sentido algum. Notando minha perplexidade ele repetiu que todos estavam à minha espera. Nos conhecemos?, perguntei. Siga por ali, apontou o caminho e não disse mais nada. Depois de ignorar minha pergunta, foi embora pela estrada pela qual chegara até ali. Segui até a porta do galpão. Estava aberta.
O espaço interno era grande, mas claustrofóbico. Não conseguia compreender o que estava fazendo ali. Tinha muitas pessoas sentadas nos bancos que estavam dispostos como se ali fosse uma espécie de igreja ou templo. Quando avancei pelo corredor central, todos se viraram e olharam pra mim. Durante todo o trajeto de minha casa até ali, eu tinha mudado da curiosidade para a perplexidade, e do medo para o desespero, mas não podia parar de andar. Continuei até o que talvez fosse o altar. Percebi que bem ao centro desse altar improvisado havia um retrato de uma homem, usava terno e chapéu, mas seu rosto estava borrado. Parecia que alguém tinha apagado seu rosto. Durante minutos olhei para aquele retrato, para o contorno daquele homem que eu não fazia ideia de quem fosse. Percebi que era um velório mas não havia corpo. Não vi caixão, nem flores, nem coroas, nem velas. Apenas aquele retrato pequeno no centro do altar. Virei para trás e vi que todas as pessoas do galpão, que antes estavam sentadas, haviam se levantado. Tive um sentimento estranho. Olhei mais uma vez para o retrato do homem com o rosto borrado e levei as mãos ao meu rosto. Toquei em meu próprio rosto e senti minha pele como nunca havia sentido antes. Queimava, como se meu rosto estivesse derretendo. Perguntei onde estava o corpo, já que era um velório. Em uníssono todos responderam, estão te esperando.
Esperei alguns segundos enquanto nos olhávamos fixamente nos olhos. Voltei pelo corredor em direção à porta e não olhei mais pra trás. Entrei em meu carro, dei a volta e fui embora pela mesma estrada. A névoa havia se dissipado quase que completamente. Na saída dessa estrada para a rodovia principal, bem ao lado da placa que vi quando cheguei, estava o senhor alto e com roupa puída que me recebeu. Nos olhamos por alguns segundos e segui na rodovia de volta para casa. Notei que seu rosto estava borrado.
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Mais sobre o livro, aqui, na Ipê Amarelo.
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Daniel Osiecki nasceu em Curitiba, 1983. Editor e escritor, publicou os
livros Abismo (2009), Sob o signo da noite (2016), fellis (2018), Morre
como em um vórtice sombra (2019) e Trilogia Amarga (2019). É mestre em
Teoria Literária. Organiza o sarau-coletivo Vespeiro – vozes literárias.
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