Montagem ideogrâmica


…………………Montagem ideogrâmica em Valêncio Xavier

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A novela O mistério da prostituta japonesa & Mimi-nashi-Oichi, escrita por Valêncio Xavier e publicada pela primeira vez em Curitiba, em 1986, pode ser considerada a obra “japonesa” do autor. As duas narrativas contêm elementos do universo cultural japonês e  valem-se de recursos constantes na obra de Valêncio, como a hibridação entre texto e imagem e a inserção de elementos de mistério/fantásticos. Através do processo de montagem ideogrâmica, que une os conceitos de montagem cinematográfica de Sergei Eisenstein e composição ideogrâmica, de Ezra Pound, Valêncio convida-nos a percorrer os labirintos de seu pensamento inventivo, buscando uma via que concilie a visão e outros sentidos.

A mitologia grega, a literatura francesa, o cinema japonês. E o folhetim, a história em quadrinhos, o almanaque, os “catecismos”, o programa policial de tevê. Tudo era inspiração para Valêncio Xavier Niculitcheff, o escritor que montava narrativas com palavras e imagens no papel. Aficcionado por artes visuais, foi assistente do dadaísta Jean Arp. Apaixonado por cinema, fez pesquisa de imagens para Silvio Tendler, Sylvio Back e Eduardo Escorel. Criou o projeto da Cinemateca do Museu Guido Viaro de Curitiba, do qual foi diretor. Como cineasta, dirigiu Caro signore Feline (1980), O corvo (1982), O pão negro – um episódio da Colônia Cecília (1993) e Os 11 de Curitiba, todos nós (1993).

Em literatura, publicou O mez da grippe, (1981), Maciste no inferno (1983), O minotauro (1985), O mistério da prostituta japonesa & Mimi-nashi-Oichi (1986), Meu sétimo dia (1998), Rremembranças da menina de rua morta nua (2006),Crimes à moda antiga (2004) e Minha mãe morrendo e O menino mentido (2008).

Sua obra inspirou os cineastas Pedro Merege e Beto Carminatti a produzirem o curta-metragem O mistério da japonesa (2005) e o longa Mystérios (2008). Valêncio Xavier morreu aos 75 anos e 8 meses, de complicações de uma pneumonia, a 5 de dezembro de 2008, em Curitiba.
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Valêncio japonês

Depois da Segunda Guerra Mundial, as vanguardas no cinema não vinham só da França ou da Rússia. O cineasta japonês Akira Kurosawa (1910-1998) ganhou o Leão de Ouro em Veneza, em 1951, com o filme Rashomon, adaptação do conto homônimo de Ryonosuke Akutagawa,  autor que adaptou narrativas da tradição oral japonesa. Kurosawa se tornou o cineasta japonês mais célebre no Ocidente na modernidade.

Valêncio arriscou fazer a sua versão de Rashomon para o teleteatro em Curitiba. E aí começou a paixão pelo cinema japonês. Em 1960, o cineasta Masaki Kobayashi lança o filme Kwaidan, traduzido no Brasil como Kwaidan – as quatro faces do medo. O filme era uma adaptação de quatro narrativas fantásticas da tradição oral japonesa.  Essas histórias cativaram Valêncio por trazerem elementos de mistério: fantasmas, demônios, cegos, templos, cemitérios. Tipos e ambientes originários do Kaidan banashi – a coletânea de narrativas fantásticas japonesa. Valêncio leu  Kwaidan – Stories and studies of strange things, traduzido pelo escritor irlandês Lafcadio Hearn, fonte da adaptação de Kobayashi. Foi aí que traduziu o conto Miminashi Hoichi.  Seu conto leva o título de Mimi-nashi-Oichi, seguindo a versão francesa.

…………………….FIGURA 1 – CAPA DA 1ª EDIÇÃO

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Hoichi é um trovador japonês, um biwa hoshi[1], e canta o Heike monogatari, poema épico que descreve a derrota de um poderoso clã guerreiro, os Taira (também chamados de  Heike), no século 12, no Japão medieval. Valêncio encontrou o fio para tecer seu labirinto hipertextual. Sua versão não é uma tradução linear: entremeia imagens, poemas e narrativas.

Valêncio já havia criado uma história com uma protagonista japonesa, O mistério da prostituta japonesa. Era uma breve narrativa, que tratava de uma estranha relação de uma prostituta japonesa com um homem ocidental, ambientada no Brasil. A história passaria como uma crônica de circunstância, não tivesse, também, elementos hipertextuais. Ou seja, como Mimi-nashi-Oichi, é narrada, além do texto, por imagens e poesia.   As duas narrativas são montagens ideogrâmicas. Isto é, foram compostas seguindo a lógica do ideograma.

O ideograma – um conceito representado por um desenho icônico à imagem da realidade concreta – estabelece algumas regras de composição.  Por exemplo, para formar um novo conceito, justapõe duas imagens diferentes para criar relações inusitadas entre elas, propondo uma terceira imagem de efeito inesperado.  Um exemplo  é a expressão 明るい (brilhante), que reúne os signos do sol 日 (hi ou dia) e da lua 月 (tsuki ou guetsu). Também é dessa forma que se compõe o haicai, o teatro Nô e várias artes no Japão.

Sergei Eisenstein estudou o processo de montagem do ideograma para criar seu conceito sobre montagem cinematográfica, adaptando-o em seus filmes. Eisenstein criou uma relação poética entre as imagens, não óbvia, combinando elementos de caráter material e psicológico. Para Eisenstein, na justaposição entre duas imagens deve haver conflito. Conflito de direções gráficas, de linhas, de escalas, de volumes, de massas, de profundidades, entre um objeto e suas dimensões, entre um acontecimento e sua duração, para que haja poesia.

Para explicar como a composição de cenas acontece no cinema, Eisenstein dá como exemplo a técnica de ensino de desenho nas escolas japonesas. Lá, ele diz, o aluno corta a imagem de, por exemplo, um ramo de cerejeira, através de um quadrado, círculo ou retângulo e tem uma unidade de composição:

……………………….FIGURA 02  –DESENHO DA ESCOLA JAPONESA.

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Para compor uma totalidade é preciso antes fragmentar o objeto em partes menores. Esta fragmentação da composição está no cerne de todas as manifestações artísticas japonesas.

Em O mistério da prostituta japonesa & Mimi-nashi-Oichi, a montagem ideogrâmica é feita através do encaixe da narrativa (descrição e diálogos) com as imagens e os poemas. No cinema, a montagem entre uma e outra imagem contrastiva que não obedece a uma sequência linear narrativa provoca um determinado efeito dramático. Por exemplo, a cena da escadaria de Odessa, em Encouraçado Potemkim, o clássico de Eisenstein: em meio a cenas da multidão fugindo dos ataques do exército imperial russo, depois de ser mostrado o drama de uma mãe vendo uma criança ser pisoteada, um carrinho de bebê desce em alta velocidade. O efeito dramático é causado pelo conflito entre a inocência do bebê, da criança e da violência do exército.

As imagens e os poemas que Valêncio usam a ideia do conflito de informações de Eisenstein para provocar um efeito no leitor. A ideia de que a beleza da forma está na oposição, na diferença, no desequilíbrio, ideia que também está no conceito japonês wabi sabi, a beleza imperfeita – a beleza como é apresentada espontaneamente na natureza e na vida. Desconstrói-se, assim, a ideia de uma harmonia ou equilíbrio estético que deforma a natureza humana.

 

Exemplos nas narrativas

Como exemplo, na narrativa O mistério da prostituta japonesa, a ilustração do quarto,  com a descrição textual e minuciosa dele, cria uma conexão em terceira dimensão:

…………………..FIGURA 03 –  ILUSTRAÇÃO DO QUARTO DA PROSTITUTA

 

A imagem é mostrada a partir de uma tomada aérea. Como um diretor de cinema, Valêncio escolheu o ângulo por onde o leitor devia ver a imagem. A ilustração do quarto não funciona na narrativa como uma complementação do texto. A escolha do ponto de vista do observador é relevante. De cima, como um voyeur, podemos ver o quarto em todos os detalhes. Mas não só isso. O uso simultâneo da palavra e da imagem cria uma conexão entre elas. Com a descrição textual e a descrição visual, o “pequeno quarto” pode ser visualizado duas vezes e criar essa conexão, não redundante. A escrita japonesa, o haicai e o Nô usam o mesmo recurso de juntar dois elementos diferentes para criar relações inusitadas entre eles, criando uma imagem de efeito inesperado.

A perspectiva pela qual olhamos o quarto é a mesma usada no ukiyo-e

FIGURA 04  – “Névoa Noturna”, Geni Monogatari. Museu de Arte de Tokugawa.

 

Na imagem acima, temos uma vista aérea de uma cena de A narrativa de Genji. Essa  perspectiva era usada pelos gravuristas japoneses para dar profundidade a uma cena, já que desconheciam a técnica do ponto de fuga. A retirada do telhado da casa tinha como objetivo mostrar a intimidade na casa japonesa.  Além da perspectiva axiométrica, lembremos que os personagens centrais de muitas gravuras japonesas são as yûjo. As “mulheres do prazer” eram representadas de forma sublime pelos artistas do ukiyo-e. No Japão medieval, o sexo com as esposas era convencional. Apenas com as yûjo era possível ter prazer e os maridos as usavam, comprando seus favores sexuais. Já os artistas de ukiyo-e também obtinham favores sexuais das yûjo, por conviverem com elas.

Já em Mimi-nashi-Oichi é a palavra que desencadeia o choque de ideias. Estruturada sob justaposição de planos narrativos – o dos amantes, de Oichi e da história dos Taira – alterna os tempos presente, passado e o tempo imemorial. A palavra nuvem indica estes planos: o signo nuvem representa a delimitação entre espaços e tempos, como o recurso do kumo-gata (forma de nuvens), usado no Ukiyo-e:

………………………………FIGURA  05 – GENJI MONOGATARI

 

Esse recurso era usado tanto para indicar a simultaneidade de lugares quanto a mudança de cenas, lugar, tempo ou perspectiva. Exatamente como faz na narrativa de Valêncio, com três cortes. O primeiro acontece na abertura da narrativa de Oichi, quando aparece o poema:

 

Minha mão, uma nuvem
Pousada no teu seio, redondo
Como a Lua.

(XAVIER, 1998, p. 196, grifo meu)

 

É quando surge o primeiro indício de que são amantes. Logo depois, o homem compara a visão dos cegos à cor preta da televisão:

– O que eles enxergam é uma mancha esbranquiçada. Como na televisão. Já reparou que o preto da televisão nunca é preto, é nuvem branca? Branca-cinza? (XAVIER, 1998, p. 196, grifo meu)

E alguns parágrafos depois, as nuvens aparecem como estandarte dos Minamoto:

A batalha seguia feroz. O fogo, a fumaça dos canhões, o assobio metálico das espadas nos combates das abordagens. Os Taira ainda mantinham a esperança da vitória. Nuvens, a princípio, quando viram o branco flutuando nos céus, pensam em nuvens. (XAVIER, 1998, p. 196, grifos meus)

Aqui há uma justaposição de imagens, da mão como uma nuvem pairando sobre a paisagem do corpo da amada; a visão enevoada do cego, que não é totalmente sombria, segundo o homem; e a bandeira branca dos vitoriosos na batalha de Dan-no-ura.

Em minha pesquisa demonstro que Valêncio usou a montagem ideogrâmica para indicar signos das artes japonesas em O mistério da prostituta japonesa & Mimi-nashi-Oichi. É como se quisesse recriar um Japão em miniatura em  duas narrativas sintéticas. O resultado foi extraordinário: na literatura brasileira tivemos poucos autores que entenderam tão bem o Japão sem adaptá-lo às idiossincracias locais. O mistério da prostituta japonesa & Mimi-nashi-Oichi continua sendo um mistério para a maior parte dos leitores brasileiros, que não conseguem ler o jogo narrativo das imagens.  A pesquisa As narrativas japonesa de Valêncio Xavier busca desanuviar parte desse mistério.

 

 


[1] Hoshi = monge e Biwa = alaúde. Os biwa hoshi eram músicos cegos e nômades que peregrinavam pelas aldeias japonesas cantando poemas épicos, como o Heike Monogatari.

 

 

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Referências bibliográficas
LIVROS

CAMPOS, Haroldo. A Arte no Horizonte do Provável. São Paulo, Editora Perspectiva, 1977.

______. Ideograma – Lógica Poesia Linguagem. São Paulo: Edusp, 1994.

______. Hagoromo de Zeami – O charme sutil. São Paulo: Estação Liberdade, 1993.

HASHIMOTO, Madalena. Pintura e escritura do mundo flutuante: Hishikawa Moronobu e ukiyo-e Ihara Saikaku e ukiyo-e. São Paulo: Hedra, 2002.

HEARN, Lafcadio. Kwaidan, Assombrações – Seguido de Estudos de Insetos. Trad. Francisco Handa. São Paulo: Editora Claridade, 2007.

______. Kwaidan: Stories and Studies of Strange Things. Los Angeles: 1905.

JUNIPER, Andrew. Wabi Sabi. The Japanese art of impermanence, Boston: Tuttle Publishin, 2003.

KLINGSÖHR-LEROY, Cathrin. Surrealismo, Taschen, 2010.

KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.

SUSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1993.

XAVIER, Valêncio. O mez da grippe. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

______. O mistério da prostituta japonesa & Mimi-nashi-Oichi. Curitiba: Gráfica e Editora Módulo 3, 1986.

 

FILMES

KWAIDAN: As quatro faces do medo. Direção: Masaki Kobayashi. Produção: Shigeru Wakatsuki. Adaptado de Lafcadio Hearn por Yoko Mizuki. Tóquio: 1964. (183 min.)

O MISTÉRIO da japonesa. Direção: Pedro Merege e Beto Carminatti. Adaptado de Valênxio Xavier. Curitiba: 2005. (16 min.)

UGETSU monogatari. Direção: Kenji Mizoguchi, Kenji. Produção: Daiei Estúdios. Roteiro: Yoshikata Yoda e Matsutarô Kawaguchi (adaptação). Tóquio: 1953. (94 min.).

 

JORNAIS E PERIÓDICOS

XAVIER, Valêncio. Revista QUEM. Curitiba, 2ª. quinzena de maio de 1986.

 

FONTES NA INTERNET

GENETTE, Gerard. Palimpsestos. Trad. Luciene Guimarães e Maria Antônia Ramos Coutinho. Belo Horizonte: UFMG, 2006. Acesso em 3 nov. 2010.

REIDER, Noriko. The Emergence of Kaidan Shu. Oxford, Miami University, 2001. Disponível em http://www.scribd.com/doc/22612999/Reider-Noriko-t-The-Emergence-of-Kaidan-shuu. Acesso em 03 fev. 2011.

 

 

 

 

 

 

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Marília Aiko Kubota (Paranaguá/PR, 1964) é escritora e jornalista. Integra as antologias Pindorama (2000), Antologia da Poesia Brasileira do Início do Terceiro Milênio (2008), Blablablogue (2009) e Todo Começo é Involuntário –Poesia Brasileira no Início do Século 21 (2011), entre outras. Em 2008 publicou o livro Selva de Sentidos. Organizou a antologia Retratos Japoneses no Brasil – Literatura Mestiça e o Concurso Nacional de Haicai Nempuku Sato, em 2008. É editora do JORNAL MEMAI – Letras e Artes Japonesas – WWW.jornalmemai.com.br. Escreve no blogue micropolis: WWW.micropolis.blogspot.com. E-mail: marilia.kubota@gmail.com




Comentários (1 comentário)

  1. Joba Tridente, Análise Brilhante do autor e da obra! Linda! Limpa! Lúcida! Ah, adoro as não-perspectivas, porque não acredito nelas.
    26 novembro, 2012 as 22:15

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