Moça em Blazer Xadrez


 

Alguns textos do livro:

 

Foi um pouco antes da febre da computação. Do micro no mundo, em sua casa. (Bem concebe Kaufman, o ensaísta, o arranjador de sinfonias e ambientes onde quer que pousem a máquina sonora e seu olhar composto de casa, casal, piscina, sobre o horizonte).

Diz e logo escreve minha amiga, e maior namorada que tive, ao reler seu caderno portátil eletrônico, na verdade a mesma peça em que Kaufman dispôs os arranjos musicais unidos a fotos através de links. O marido morto de Lela criou elos diversos entre som e imagem capazes de formar um Sítio, o nome em português para o sightseeing informático, bem ali onde o americano se revela como pesquisador do desenho sonoro contido entre pessoas e cenas. Um pensador, talvez, da música no tempo, depois de estourar em filmes nacionais com os maiores sucessos no gênero, assoviáveis peças populares hoje espalhadas por todas as vidas, todos os comércios (sem que ninguém identifique a autoria). Pelos bajos fondos o muzak de motel ou tema-abertura de TV Produto A Cabo.

De certa forma, a passagem de Kaufman pela vida ressoa com um sentido abrupto de fim, um corte no pano-de-fundo sonoro tecido sobre as coisas mais dispersas e efêmeras. Entretanto, as composições não param de ser executadas, à maneira de um contínuo motivo lançado por suas trilhas filme após filme, pertencentes hoje ao andamento cotidiano das existências menos conhecidas.

Logo depois sofrem mutação o cinema e a idéia de vida em comum, como rito de reunião e assistência, algo que também envolve a música. Artes, técnicas, se tornam bens domésticos, pela reprodução, pela representação de uma idéia coletiva de finalidade geral humana lançada ao infinito. –  Do Site Kaufman, construído por ele antes de morrer.
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O que mais quero é reencontrar Lela, o mais rápido que puder. Assim começará meu próximo texto para ela. Sem mais querer saber do tempo, do fim, de Kaufman, esse nome ainda em circulação. Demoro para terminar com o café. Como se estivesse conversando com alguém. E com mais de uma pessoa.

Ela havia trabalhado em uma livraria. Até o meio da tarde dos sábados, envolvia-se com os livros como se tratasse de pessoas, pois estas achavam-se implicadas na oferta de indicações e no passar de folhas a maior parte das vezes sem compras. Era aí que entrava como uma vigilante a proteger os volumes, os autores, a zelar pelas sugestões. Havia se preparado para conversar acerca dos álbuns de Arte, os mais procurados e os menos vendidos. (Já estava solitária naquela época, agora pensa. Já passava como uma sombra pelos sábados, pelos circuitos culturais, próprios da nova época que vivia a cidade).
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Era uma moça, dentro de um blazer xadrez de anos, carregada de uma pequena mala e do rastro sutil de pouca coisa deixada para trás. Compacto xadrez de mala, mulher, sorriso-batom à larga, um vulto a deixar a sala de cinema (desacompanhada).

Sozinha, depois de um filme de arte, um filme da noite, bem tarde – “Rumo para o Belas-Artes, rondo o Panorama” (escrevera na caderneta de anotações antes de ir para o sábado, em direção ao ponto escuro da sala seleta e apertada).

Estava saindo de um filme finlandês, exibido numa capital do Brasil (soletrou e repetiu mentalmente o nome Kaurismäki), em luta com a mala a pesar em sua mão, impossibilitando-lhe o movimento para outro lugar. (Não deixo coisa de valor no chão, de jeito nenhum).

NENHUM LUGAR – Encostou-se em uma pilastra para ler as anotações (uma dissertação de Mestrado que nunca acabava, mesmo tendo sido desligada do curso de Pós-Graduação; uma lista de coisas urgentes e outras mais demoradas, necessárias, mesmo distantes, de serem demarcadas).

Havia largado o microapartamento dividido com uma mulher afeiçoada a um cão pequinês e a mais nada. Igual a uma outra (por apenas quinze dias) que lhe recitava, dentro do quarto comum, nomes de batons e de gente com quem nunca mais viria a se encontrar. O olho da companheira de quarto queria segui-la, enquanto estabelecia códigos de convivío em conversa muito “chegada”, dentro do oco do espelho carcomido de ferrugem, flagrando-a de viés. O rosto da moça recusava a ver-se do prisma a um só tempo comum e alheio do espelho, e, assim, ela mesma resolveu partir.

Fechou a valise. Decidiu retornar ao café da sala de cinemas, como se seguindo um conselho soprado, assim, da voz ao léu. (“Não costumava escutar ninguém”, quem lhe disse mesmo isso?)

Rodelas de espuma bem crua do café expresso, já no final, e por cima de tudo a boca aberta. Entre o que não disse para a mulher do quarto e o que resolverá sobre si com um texto bem soletrado, cerzido, pronto para ser carregado, juntamente com a bagagem. Boca aberta, entre um gole de expresso e a vontade de dizer algo, em seu formato de secura e comissura (rachaduras de batom) pelo que vem de fora – outras vozes, novos juízos sobre passar pelas pessoas e morar com elas, de um jeito e de outro, nessa vida. De outro café alguém facilmente se serviria nesta e em outras tardes. Qualquer um, sozinho como ela. “Era preciso ver alguém de perto”.

O que lhe restou da passagem por terapias, massagens do mais físico ao mais impalpável de si, e também da convivência, cara-a-cara, com uma infinidade de gente na partilha de quartos e, mesmo, casas, era o sorriso lançado ao infinito. Sorrir, sorrir – provação e exercício. Até não ser mais do que o ar respirado, concentrado somente no ponto de abertura e fechamento para o mundo em sua boca. “Era preciso criar alguém”.

 




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