Metacorporeidade
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1. Os conceitos de metacorporificação e philomundus
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Durante o processo de pesquisa e criação de performances, fomos sempre conduzidos a um estado ontológico de ser que nos pareceu constantemente visível e abertamente possível de ser conceituado. A partir de um certo momento do percurso, criamos os conceitos de metacorporificação e philomundus, conceitos elaborados precisamente em virtude da própria investigação de processualidades que nunca se reduziam ao espaço delimitado de uma ação X ou Y.
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Desse modo, todo silêncio, repouso, movimento, gesto ou objeto escultórico se corporificava e se tornava uma metacorporeidade compondo-se assim com outra corporeidade numa dilatada faixa de matéria-tempo onde toda forma se fazia metacorporificável. A palavra metacorporificação (do prefixo grego metá + corporificar) é um conceito estético-filosófico criado em função da necessidade de esclarecer tal processualidade artística. Surgiu a partir da construção das performances coreográficas e da análise de uma certa recorrência de verbos compostos em grego clássico tais como metabaíno (passar de uma situação a outra), metanoéo (mudar de pensamento/sentimento), metarrythmídzo (mudar a medida ou a forma) e metaskeuádzo (mudar de vida, de domicílio). O sentido geral no campo semântico grego é sempre a ideia de mudança, transformação ou participação. O termo metá utilizado frequentemente nas orações gregas pode também funcionar como preposição e significar:
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1) “em meio de”, “com”, “em companhia de”, “de acordo com”, exprimindo a noção de “estar no meio de”, “ir-se” e “mover-se de acordo com”, enfocando a ideia de contato/participação;
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2) o sentido de “em” e “dentro de”, com ênfase sobre o conceito de espacialização;
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3) e ainda, com a ideia de temporalidade, exprimir a noção de passagem/mudança.
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Assim, a ideia fundamental do processo de “metacorporificação” consiste:
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1) na participação de uma corporeidade em seu contato com as outras corporeidades (meu corpo encavalando-se com a escultura de bambu e com as sonoridades perceptíveis/imperceptíveis);
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2) na imersão das corporeidades em sua ambiência (as ressonâncias dos sintetizadores metacorporificando-se com o meu corpo, com as diversas corporeidades como seres moleculares, bambus, piso do chão etc);
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3) e, durante a passagem de uma corporeidade a outra, a mudança de uma forma a outra, consiste na construção de uma imensa textura escultórico-sonora, ou seja, naquilo que podemos conceber como universo philomúndico habitado por seres amantes dos infinitos mundos possíveis.
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Podemos qualificar tais seres precisamente como “amantes”, e nesse sentido, philomúndicos, porque a sua condição ontológica é imersão, naufrágio, estado de quem imerge nas profundezas das interconexões e se entrega “afectuosamente” ao mundo e à vastidão dos seres que nele habitam. A palavra philomundus, cujo sentido é “amante-do-mundo” significa mais a condição de fluidez intrínseca ao ser, e portanto, um modo intuitivo de existir do que um estado premeditado e sustentado por critérios de racionalidade. Por isso, concebe-se tal estado diferenciado como certo modo de contractilidade/expansividade do corpo humano do que deliberada escolha, decisão existencial, atitude fenomenológica, afirmação da potência da diferença, visão metafísica ou posição autorreflexiva da consciência. É, em sentido mais preciso, a condição ontológica de todo ser, seja humano, animal ou planta, isto é, o estado de ser-corpo-aberto suscetível às interconexões e simultaneidades dos diversos mundos que nos atravessam.
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Nesse sentido, todo ser que se faz amante-do-mundo se corporifica, se torna consciente de seu estado-amante, ao mesmo tempo em que se transmuta no que podemos chamar de metacorporeidade, ou seja, uma modulação de ser-corpo-outro (sem deixar de ser si-mesmo), constituindo assim o vasto campo da metacorporificação. Tais metacorporeidades são texturas escultórico-sonoras corporificáveis e corporificadas nesse interstício relacional, nesse espaço que existe entre as interconexões onde se atraem e se repelem, se desfazem e se refazem os seres philomúndicos como formas de espacializar o próprio domínio do espaço. Daí o ato performativo de tornar-se uma corporeidade em meio às outras corporeidades num estado ontológico de “amante-do-mundo”, ao mesmo tempo, corporeidade espacialmente única e plurívoca, a ponto de instalar-se “dentro” de outras forças, criando-se a si próprio como metacorporeidade.
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A imbricação entre música, escultura, poesia, filosofia e dança como campos heterogêneos de intensidades que se encontram e se afetam produz também distintas metacorporeidades, porque não existe um corpo, uma corporeidade ou uma metacorporeidade, e sim plurívocas metacorporeidades constituídas por diversos seres philomúndicos. Assim, o fenômeno da metacorporificação torna-se acontecimento processual autoexploratório que expõe selves alternativos múltiplos e dissemelhantes. Ao invés de realizar algum ato de expressão, o performer se reinstala no espaço pré-expressivo da linguagem, espaço este repleto de metacorporeidades e acontecimentos.
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Ao invés de uma coreografia ou metacoreografia, seria fundamental pensarmos mais numa imbricação e consequente multiplicação de todas as metacorporeidades, visto que a palavra “coreografia” já nos remeteria ao universo dos movimentos da dança enquanto código delimitado e identificável. Logo, a ideia de metacorporificação não poderia ser associada à delimitação prévia de um corpo específico, à formulação de uma cena coreográfica ou à forma sequencial de gestos e movimentos pré-ensaiados. É evidente que o ato de metacorporificar cria gestualidades, movimentos e sons no espaço, mas, estas forças somente adquirem seu caráter ontológico no ato presente da performatividade, pois, trata-se antes da criação de uma textura escultórico-sonora de ressonâncias espacializadoras do que de uma coreografia no sentido tradicional da palavra.
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2. Sobre as performances Philomundus e Medeia: cadáver midiático:
Textura multimídia buscando como material não apenas o corpo vivo do performer, mas também espacialidades escultórico-sonoras, dança, poesia, filosofias e materiais “in natura”, Philomundus é um trabalho que pertence ao LOZ-2962 STUDIO (China-Taiwan-Brasil) cujos integrantes são o escultor-performer brasileiro Irael Luziano (Embu das Artes) e o filósofo-escritor-performer chinês Chiu Yi Chih (Taiwan/Taipei). O trabalho multimidiático, que conta com a participação do músico de sintetizadores Guidival Verde (Embu das Artes), opera com um quadro conceitual de questões relativas à subjetivação (eu/outro), território urbano (territorialização/desterritorialização), linhas de demarcação econômico-social (centro/periferia) e diferenças sócio-culturais (Oriente/Ocidente). Busca-se no projeto em parceria a potencialização desses vetores de modo a produzir relações transversais/plurívocas entre China-Taiwan-Brasil, tornando possíveis a heterogênese dos agenciamentos e a interação dos múltiplos mundos. É fundamental nesse contexto o processo de metacorporificação porque acaba por problematizar a relação Homem-Máquina-Mundo, a noção de Sujeito e a sua ideia correlata de temporalidade homogênea.
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Em Philomundus nada é pré-fixado. Tudo se dá no ato da efetivação, no acontecimento por meio do qual se desdobram pulsações e metacorporeidades. A gramática corporal, nesse caso, com seu repertório de movimentos codificados não funciona como paradigma. Renuncia-se ao estabelecimento de partituras e marcações. Mas tampouco se trata de mero espontaneísmo. Há, na abertura da performance, a presença de uma voz robótica – ressonância reduplicada da voz performática de Chiu que performatiza o texto Philomundus – e o acoplamento metacorporificante de elementos que se atraem e se repelem, formando assim uma consistência intrínseca ou aquilo que poderíamos chamar de “textura escultórico-sonora”. Textura que se revela precária, e ao mesmo tempo, necessária, visto que é a contemporaneidade com suas velocidades e mutações estrondosas. Portanto, não há padrões, e sim dimensões esculpidas por atrações e repulsões como fenômenos subjacentes às interfaces, multiplicidades e interconexões entre Homem-Máquina-Mundo.
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Enquanto o músico Guidival Verde manipula sintetizadores criando modulações sonoras no espaço, o performer Chiu, afetado por tais sonoridades, reescreve caligrafias metacorporificáveis de acordo com o deslocamento flexível da escultura de bambus. Essa escultura construída pelo escultor Irael Luziano com bambus recolhidos na região de Itatuba do Embu das Artes é uma espécie de prótese acoplada ao corpo que lhe permite novos reposicionamentos espaciais. Nessa ambiência criada logo no início da performance, ouve-se a voz robótica: “já que tudo é máquina e não consigo deslocar meus pés desse lugar maldito, DIGO AGORA: / rato rato rato eterno ar maldito”. Tal instanciação performatizante faz com que cada corporeidade – escultura de bambu, homem, sonoridade – se prolongue numa outra corporeidade, tornando possível o fenômeno da metacorporificação e a transmutação dos seres na sua alteridade imanente. A voz robótica então se costura com outras variantes sonoras e metacorpóreas, tecendo um amplo espectro paródico de fragmentos imaginários da própria identidade híbrida do performer (chinês-brasileiro-embuense).
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Numa espécie de autorreflexão irônica, o performer se desconstrói enquanto identidade perpassada por múltiplas temporalidades. Transpondo vórtices, sonhos, maquinarias e simulacros, a identidade se fragmenta e se precipita num processo de dessubjetivação. Nesses lugares do inconsciente philomúndico, acumula-se uma vasta zona de órgãos semi-mortos, estados larvares de sonho, metamorfoses e mitologias aleatórias: “o INANIMADO revestido de brasas de Santo Antônio, e ao lado da leoa combalida e da Nêmesis jubilosa, indiferente, o INANIMADO sulfúrico das rosas infalivelmente castigado pelas tochas de Zeus”. Tal percurso de metacorporificação se distende e se expande na plurivocidade, pois, atualiza-se como translação de múltiplos fragmentos que se atraem e se repelem numa sintaxe espiralada cuja estrutura se redobra numa espécie de fluidez anti-narrativa de tempos variáveis.
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Pode-se vislumbrar tal configuração estética como gigantesca rede de metacorporeidades com suas camadas protéticas, suas espacializações escultórico-sonoras que se contraem e se dilatam em percursos metacorporificáveis. É por esse viés espacializante no sentido da instanciação de uma ambiência de faixas de matéria-tempo que se constroem plasticidades moventes, no sentido de uma filosofia da textura cuja materialidade é o próprio meio com que se performa, meio que acaba se auto-engendrando enquanto ambiência extensiva e intensivamente transdutor. Aqui a palavra “meio” não é simplesmente instrumento, veículo de informação/mensagem que transmite um significado X ou Y, mas, um sistema metacorporificador que remodela e reatualiza o próprio sentido inerente ao ato do acontecimento. Por isso, escultura enquanto campo desdobrável de órgãos pulsantes, música enquanto mapeamento de intensidades plurívocas e poesia enquanto entrecruzamento de materialidades acústicas, porque o que importa não é “o fazer algo”, mas o “deslocar-se com” os eixos do espaço-tempo, entre a enunciação referencial e o estado visível das coisas, entre o plano da expressão e o domínio dos fatos, performativamente em situação, num contra-discurso, num trans-curso experimental. Ser-amante do mundo com os ouvidos à flor da pele. Porque é no nível da experiência que emerge o acontecimento que não se confunde com o fato empírico. Acontecimento-força. Acontecimento que não se refere ao domínio factual, mas se reflete e se redimensiona como campo de processos explicitamente desestabilizadores.
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Através desse processo de dessubstancialização da suposta identidade do Sujeito, apaga-se a aura feitichizada do Eu e, consequentemente, a ideia de constituição de uma identidade estável e homogênea. Nascem assim outros monstros, corpos protéticos, ressonâncias de cadáveres midiáticos, presenças híbridas, fragmentos de eus moleculares, fluxos residuais, espectros estarrecedores, máquinas escultórico-sonoras, simultaneidades perceptivas, intersecções, conexões, transfusões, ossos de possibilidades que reescrevem a noção mesma de Sujeito, o que permite a liberação de um estado de ser-ontológico-philomúndico que estaria aberto aos fluxos descentralizadores. Daí o conceito de estado ontólogico de ser-amante-do-mundo, compreendido não como lugar de representações eróticas, mas como gênese de pulsões e volatilidades metacorpóreas que funcionam à semelhança de texturas escultórico-sonoras na sua produtividade imanente, e o elemento-pulsão como núcleo produtor de sentidos. Ao invés de ser um mero significante a ser “interpretado” num esquema de representações/sublimações, tal núcleo pulsional é constitutivo e inerente ao modo pelo qual se atualiza o “apêndice com a sua estrutura de vértebras e próteses e manivelas enganchadas”, já que não está desvinculado das incrustações escultórico-sociais da sociedade capitalista contemporânea.
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É nesse espaço “cujo centro se refaz a cada explosão” que cada ser metacorporificável se destrói e se reconstrói, “criando-se e recriando-se em inúmeras injúrias inaladas”. Na medida em que ocorrem tais metacorporificações, a própria identidade do ser se desconstrói “no vazio se evaporando vértebra, imagem e conceito” e se transporta para aquele território indescritivelmente inóspito de um “corpo anterior ao início da fala”. O ser se torna outro, múltiplo e se reatualiza numa duração indevassável a ponto de se declarar: “aqui eu escrevo partindo do zero da muda conspiração”. Aproxima-se, portanto, daquela temporalidade fora das significações preestabelecidas, como se pudesse constatar nossa tão precária condição de ser “um corpo indo ao encontro de sua morte / uma imagem indo ao encontro de sua sombra / uma sombra indo encontro de seu corpo / um corpo indo ao encontro de sua imagem.” De certo modo, numa espécie de retorno anti-hegeliano às próprias entranhas da negatividade, “assim como se a chuva lentamente fosse me algemando contra a história e eu fosse a sua negação concreta, o seu índice particular: o pé de Aquiles contra todas as guerras e agamenons”; e, por conseguinte, num processo que nunca se encerra, “com as coronárias alteadas numa relação pouco totalizável, sendo uma totalidade ao lado das partes e não uma totalidade transcendendo-as ou intercedendo nos seus passos”.
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De um polo a outro, de uma extremidade a outra, transmutando-se em diversos mundos e seres, “principiando a cada segundo em vários eus e moléculas, ultrapassando toda mecânica dos conjuntos molares”, a identidade do ser não somente se diferencia no espaço como se dispersa “no fundo das lareiras e no crisol das héstias consagradas”. Adentra certas zonas de neutralidade intensiva, certos limiares de submersão implosiva. É como se tudo passasse nos limbos, nas fronteiras, nos intervalos, no horizonte no qual o ser se propaga, resultando na criação de metacorporeidades com suas características polivalentes.
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Este é o desafio de Philomundus que se produz enquanto conceito midiático e metacorporificante, quando pensa-se a si mesmo na sua proximidade com o meio e com as outras corporeidades, ou seja, na utilização desta materialidade sígnica com o intuito de construir as suas metacorporeidades. O meio é, nesse caso, a própria ambiência sonora, escultórica e coreográfica que se auto-transcende na própria imanência, tornando-se horizonte polifônico de olhares, sentidos e pulsões. Tal proximidade com o espaço reconfigurado por meio da instanciação de gestos, movimentos e sonoridades pode ser vista como o próprio fluxo philomúndico enquanto campo indeterminável, heterogêneo e plurívoco.
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Nesse aspecto, tanto quanto Philomundus, a performance Medeia: cadáver midiático se propõe a reinventar a ambiência no sentido de uma textura escultórico-sonora construída a partir da criação de ressonâncias recíprocas. Ela torna visíveis o vácuo das distâncias e o amplo espectro de atrações/repulsões das metacorporeidades que ali se performativizam. Ao invés de reunificar as séries divergentes e díspares numa unidimensionalidade, ela potencializa suas múltiplas metamorfoses, atravessa campos, insufla o silêncio. Através do prolongamento das disparidades e da dilatação fulgurante das forças, a performance opera com o campo problemático do ser-corpo-mulher e de suas respectivas interconectividades contraditórias: sua relativa autonomia face ao mundo patriarcalizado, sua precarização desencadeada por uma série de fenômenos tais como aborto indesejável, ideal máximo de beleza, desejo do poder masculino, estética consumista, em última instância, opera com a transitivização de questões próprias ao universo contemporâneo do ser-corpo-mulher.
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Parece ser precisamente essa “negra encruzilhada” à qual a percepção do performer deveria se ater: colocar-se não acima da ambiência concreta do mundo numa espécie de sobrevoo imparcial, mas, ao contrário, colocar-se no meio das interconectividades metacorpóreas. Justamente, em Philomundus, pensamos se não seria possível instilar uma tal espacialidade através da metacorporificação desses mundos dissonantes e pluridimensionais. A visão não se dá apenas no local do olho. O tato não se encerra unicamente na superfície carnal. Há uma metamorfose que não é senão a própria mutação metacorpórea entre corpo, espacialidade e ato da percepção. Ao transformar cada movimento em metacorporeidade, a performance Philomundus se constrói, se perfaz, se redesenha enquanto metacorporificação, ressonância e sensorialidade plurívoca. Portanto, não se trata de coreografar o movimento corporal no espaço fisicamente constituído, mas sim de instaurar, instanciar um estado cognitivo-espacializante no próprio domínio do espaço, isto é, metacorporificar a própria linguagem, uma vez que esta última já se revela à luz da percepção como expiração/inspiração, movimento, cor, sonoridade, em última instância, metacorporificação do Ser.
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Nessa processualidade onde as relações se costuram, desarrajando-se e descosendo-se, o Ser não é inteligível ou sensível, mental ou físico, universal ou particular, visível ou invisível. Nessa ontologia espacializante, o Ser não é expressão ou conteúdo. Não é sonoro ou insonoro. Ele é o que poderemos chamar de “amante do mundo”, isto é, uma espécie de modo-de-ser-intuitivo imanente ao mundo e à vastidão dos seres que nele habitam. Tampouco é corporal, incorporal ou inexistente. Nem se poderia dizer que é “virtual”. Ser amante do mundo não é simplesmente uma questão a ser problematizada, um conceito passível de ser formulado ou uma evidência fenomenológica como ser-no-mundo. É, antes de qualquer conceitualização, este estado de ser-amante, esta conjugação de metacorporeidades. Atração e repulsão entre modos plurívocos e dissonantes do Ser.
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Assim como há movimentos de conjunção e disjunção na zona das interconexões, isto é, a infinidade de atributos exprimindo tanto a energia pré-reflexiva que permeia todo estofo do REAL quanto as subtrações/modificações do código genômico, nessa mesma medida ocorrem mutações no nível do código semântico-político do universo philomúndico. Nunca, portanto, numa soma de unidades, mas sempre numa metacorporificação que se processa através de mediações, passagens, capturas, migrações, viagens, trânsitos e metamorfoses. “Em cada propulsão que assinala uma linguagem de inexpressa forma / sendo que qualquer identidade se fará diversa / desdobrada em letras indiscretas”.
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Nesse sentido, as identidades são desmontáveis e passíveis de serem esculpidas como estalactites cavernosas à procura do INANIMADO. “Tal como se estivéssemos num anzol gigantesco de limalhas interconectadas / ora deslizando entre fagulhas eletrostáticas / ora se apoiando na coluna principal”. Donde a plurivocidade de variações em torno da própria identidade do Sujeito: chinês-brasileiro-embuense nas embocaduras da catástrofe geográfica. Cartografia de identidades ontologicamente escorregadias. Territórios estrangeiros. “Aquele deserto por onde o rato de Hamlet / se interroga numa espécie de interioridade artificial / cujo sopro se faz carne / e se decompõe em minúsculas penínsulas”. Percurso aéreo-subterrâneo. “Como o sol / se afogando / magma poroso”. Indeterminação, índice do vazio, silêncio, intervalo, música criando-se em ziguezagues de instabilidade, riscos convexos que se abandonam aos bambus selvagens, escarificações que flagelam o CORPO crivado de texturas escultórico-sonoras.
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Crise da linguagem de um eu não unificado, distanciamento, presença de si a si, imagem não unificada e nem unívoca. É como ser uma, duas, três, quatro, cinco, ou ainda, oito indivisíveis metacorporeidades. Criar ninhos / transmutar sons / formar matérias não-redutíveis. Ser PHILOMUNDUS que é ser AMANTE DO MUNDO, isto é, equivalente a metacorporificar a existência em inúmeras configurações. Ressoá-la e ressignificá-la em infindáveis coordenadas a ponto de dizer “Eu amo” ao invés de “Eu penso”: pólipo poliédrico permutável assim espelhando a potência das ações num acoplamento de séries dissimilares – “aqui eu me movo em permanente proposição à deriva! aqui eu ergo a argamassa de mim mesmo! aqui eu me faço eterno palhaço desdobrando-se nas auroras enrouquecidas”.
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Metamorfose de altíssima e constante fluidificação. “Onde eu sou apenas uma alavanca fuliginosa entre deserto e escombros, imergido em turbinas, espadas e parafusos incandescentes”, ou ainda, “meu pensamento alardeando com as altíssonas chagas / sabendo-se matéria rarefeita / impreciso tufão / de inflamável lonjura / densamente / cerrado em arestas e cubos”. Ser metacorporificável que se costura com a escultura, ou se costura com outra coisa para constituir uma engrenagem numa série de movimentos precisos como “se encavalar”, “se encaixar”, “se desencaixar”, “se desprender” e “se suspender”. Textura-Estridência sem representação. Sem ideia de sujeito. Sem postulação de objeto. “A inverossímil fuga de simplesmente palmilhar o antes inabitável”. Deserto inundado de vozes. Identidade submergida “numa espécie de remota âncora acesa que conspira no além crescente de outras faíscas”.
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Eis aí o processo de metacorporificação onde tudo se vasculariza e se metamorfoseia na infinitude das variáveis, tornando-se flacidez, vazio, dilatação, dureza, atração, repulsão, maleabilidade, onde cada corporeidade pode ser esculpida e reesculpida dando início ao ressurgimento da imensa rede de metacorporeidades que se desdobram então em órbitas, sulcos e desdobramentos. Nesse aspecto, aquele que se torna amante-do-mundo imerge na paisagem-esfarelamento das atmosferas, alça-se às asas do vento para ser assoprado, atravessado e perfurado pelas múltiplas metacorporeidades, pois, é no confronto com o INANIMADO que se empreende o transcurso de Philomundus, performance metacorporificante que se perfaz e se refaz a cada instante de sua performativização. É nesse sentido que se torna incomensurável fissura. Música das palavras metacorporificáveis. Espaço poético preenchido por ondas infinitesimais, em que cada partícula é tecido flexível que se costura e se recostura num processo de metamorfose e metacorporificação do Ser.
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Chiu Yi Chih é filósofo, escritor e performer chinês de origem taiwanesa. Publicou o livro Naufrágios (Ed.Multifoco). É mestre em Filosofia Antiga pela USP. Professor de Filosofia da Arte (Gilles Deleuze) e Oficina Poética no Instituto Mandarim Yuan De. Criador do conceito de metacorporeidade no LOZ-2962 STUDIO (China-Taiwan-Brasil) e das performances Naufrágios e Philomundus. Escreve no http://philomundus.blogspot.com / email: winnerchiu@gmail.com
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