Matéria de poesia
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oetas e leitores têm em comum o interesse que dedicam à poesia. A bem dizer, só o objeto é comum, já que interesse e propósitos diferem, em cada caso. Para aqueles, a poesia interessa como repertório de exemplos ou “modelos”, a serem seguidos ou evitados. Os poetas leem por dever de ofício, em proveito próprio, para desenvolver e aperfeiçoar suas habilidades como poetas. Os leitores também se aproximam da poesia em proveito próprio, mas para extrair daí o possível prazer que a experiência lhes proporcione. Se assim é, haverá leitores do tipo “amador”, que encaram esse prazer como experiência íntima, intransferível, que a ninguém mais diz respeito, e os do tipo “profissional” (o crítico, o teórico, o professor, o pensador), que intentam explicar o porquê do prazer e das demais implicações da experiência, dando a conhecer a algum interlocutor os resultados de suas tentativas.
Com isso, o interesse propriamente dito pode voltar a ser comum, conforme os poetas afinem seus propósitos pelo primeiro ou pelo segundo tipo de leitor. Haverá um tipo de poeta que prefigure ou pressuponha o leitor amador (e vice-versa), assim como haverá outro tipo de leitor, o profissional, que prefigure ou pressuponha outro tipo de poeta (e vice-versa). Nesse esboço de classificação, esquemática e artificial, a dificuldade maior consistirá, se insistirmos na simetria, em explicar o que viria a ser o poeta “profissional”
Para o amador (leitor e poeta?), poesia é dom inato, o poeta já nasce feito; para o profissional (poeta e leitor?), poesia é uma habilidade que se adquire. Todos, concordam em que “dom inato” e “habilidade que se adquire” não são compartimentos estanques: poesia será a soma dessas duas dimensões. O “dom”, meramente dado, é pouco, precisa ser aperfeiçoado, e a “habilidade” será um exercício estéril se não for amparada por algum talento. Dom é a predisposição para a poesia, é a poesia virtual ou potencial, latente nos indivíduos contemplados com a suposta dádiva. Mas nada disso terá existência enquanto não estiver atualizado em palavras – tarefa que exige um mínimo de habilidade. Só saberemos que o poeta tem um dom inato quando o poema já tiver sido convertido em palavras, sobre o papel. À “habilidade”, portanto, temos acesso direto, efetivo, e podemos lidar com ela objetivamente, ao passo que “dom” é só uma conjectura de efeito retroativo; não temos como deter nele próprio a atenção, salvo por via especulativa, que não raro conduz ao reino do imponderável e da fantasia. Só diante dos efeitos materiais – o poema – é que podemos admitir ou inferir a existência prévia dessa imaterialidade a que chamamos “dom”, à qual atribuímos a condição de causa.
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e que matéria é feita a poesia? Matéria de vida, ocasionalmente expressa em palavras, dirá o amador; matéria verbal, palavras, não mais, dirá o profissional – acrescentando, malicioso: vida, matéria de vida? Que vem a ser isso?
O fato de todos concordarem em que dom e habilidade não são compartimentos estanques é logo posto de lado e esquecido. Na prática, a pergunta pela matéria da poesia suscita, sempre, respostas radicais. E a pergunta subjacente, “Que relações as palavras entretêm com a realidade que se estende para aquém e para além do poema?”, mal chega a ser formulada. A quem caberá, aliás, formular tal pergunta? A quem interessa a resposta? Ao leitor ou ao poeta?
De que matéria, afinal, é feita a poesia?
Digamos que nosso interesse não se detém nas palavras, isto é, não estamos interessados em saber, por exemplo, que significados tem ou pode ter a palavra “poesia”. Não estamos no encalço de conceitos e definições, de resto utilíssimos para atuar na vida prática, incluindo a vida prática de versos e estrofes. Se estivéssemos interessados em definições, poderíamos ficar com: “A poesia é o estado rítmico do pensamento”. Belas palavras, não é mesmo. E poderíamos, ainda, acrescentar dezenas de outras definições, tão esplêndidas como esta, de Fernando Pessoa – todas, aliás, formuladas por poetas e não por críticos ou teóricos. Mas nosso propósito não aponta nessa direção. Nosso foco se concentra nas relações que as palavras entretêm com a realidade etc., por isso não estamos interessados nelas, as palavras. Mas dependemos delas para tudo. Como lidar com a matéria de que é feita a poesia sem se deter nas palavras?
“De que matéria é feita a poesia?” é só uma formulação possível. Poderíamos perguntar, também, “Qual é a essência da poesia?” ou “Qual é a especificidade do fenômeno poético?” ou “Qual é o atributo exclusivo em razão do qual poesia é substancialmente poesia e não outra coisa?” e assim por diante. É isso o que procuramos saber. Mas ter uma definição na ponta da língua, extraída dos verbetes de qualquer vocabulário técnico, ainda não é saber. Saber, no sentido nada canônico e certamente ambicioso em que empregamos o termo, consiste em dominar determinado conhecimento, constituído a partir do nosso interesse pessoal pelo assunto em causa, um conhecimento que resulta simultaneamente da prática de determinada atividade e da consciência que tenhamos de nós mesmos, assim como das coisas em redor – um conhecimento que resulta também do que pretendemos fazer com o conjunto de dados e funções implicados nessas três dimensões.
Esse conhecimento não repousa nos livros, ou em qualquer outra fonte fora de nós, à espera de que o assimilemos e o utilizemos. Saber, assim entendido, esse saber que só se realiza na alma de quem de fato aprende, como assegura Sócrates, exige o empenho total do que somos, antes, durante e depois de determinada experiência – no caso, a experiência de ler ou escrever um poema.
O contato com a poesia implica operações extremamente complexas, que nos põem em relação com um número surpreendente de graus e níveis de realidade. Ler um poema (com as devidas adaptações, valerá também para escrever um poema) significa acionar mecanismos de percepção que, de forma mais ou menos elaborada, captam os vários estratos do texto – o visual, o sonoro, o semântico, o sintático –, aos quais adere, por associação ou analogia, uma quantidade de referências de ordem psico-afetiva, biográfica, histórica, geográfica etc., que todo poema, por elementar que seja, contém. São tudo palavras, dirá o profissional. Mas palavras que provêm de fora, passam a integrar a nossa mais recolhida intimidade, e imediatamente refluem para o lugar de onde vieram, em permanente e dinâmica relação com a realidade em redor, antes, durante e depois de lido/escrito o poema.
Poesia: enredamento circular. É matéria de vida e isso pode não ser nada; é mera virtualidade, mas tem a ver com a nossa vida e busca naturalmente a forma da expressão verbal, para nos dizer que ainda é mas já não é mais, e logo em seguida se desdobra em mais matéria de vida ou de poesia, e assim indefinidamente. Só chegaremos a formular a pergunta se envolvermos, no enredo, a totalidade do que somos, se permitirmos que a poesia nos impregne e não se limite à condição de mais um dado arquivado naquele compartimento onde recolhemos definições ou onde se alojam habilidades.
Poesia implica uma cadeia dinâmica de eventos e situações, carregados de uma só e a mesma energia, que à falta de outra palavra (enredo circular) continuamos a chamar poesia. O polo firme, inquestionável, da cadeia é o objeto material, o poema. Do lado de lá (coloco-me agora na posição do leitor), a intimidade do poeta, seu dom, sua inspiração, a mistura de sentimentos, impressões, ideias, emoções, desejos, pensamentos etc. que se esforçam por encontrar sua expressão verbal ou sua fixação em palavras. Do lado de cá, a consciência alheia, que tenta apreender ou adivinhar a cadeia toda.
Determinado estímulo, provindo quase sempre do mundo exterior, aciona a sensibilidade do poeta, que então fixa a atenção em certo objeto, certa forma, um som, uma cor, uma lembrança, o que seja. Nada definido, só uma impressão, que em seguida é livremente associada a outras impressões, presentes ou passadas, e também a sentimentos e desejos. A indefinição prossegue e, aos poucos, a pequena massa de ecos e reverberações começa a se articular em segmentos, sequências finitas e fragmentárias: esboço de ritmo. Concomitantemente ou não, essas sequências vão-se impregnando de sentido e passam a buscar a expressão verbal, sua comunicação em palavras inteligíveis – de início, para o próprio poeta, que só então as descobre, latentes na massa que se formou.
O poema não é efeito direto daquele estímulo-causa inicial, mas resultado de uma progressão complexa, regida pelo mecanismo básico da analogia, combinada com a metamorfose. Aquele núcleo denso de sensações e impressões, que forma a intimidade do poeta, vai sendo progressivamente metamorfoseado em outras relações, por meio de associações livres. Tal metamorfose é função da imaginação e não do encadeamento lógico-racional – que os versos poderão abrigar, mas não necessariamente, e sempre cum grano salis.
Quando o amador (o profissional não perde seu tempo com bisbilhotices) pergunta ao poeta em que ele se inspirou para escrever o poema, este costuma dizer ou que a coisa nasceu de uma banalidade qualquer ou que ele não faz a menor ideia. Se for um poeta muito pretensioso ou muito distraído, confundirá inspiração com intenções e aproveitará o pretexto para discorrer sobre os altos propósitos de sua arte.
O poeta não tem como controlar todos os mecanismos que interferem nas metamorfoses e analogias que resultarão no poema, mas isso não impede, ao contrário recomenda que ele exerça o máximo de controle possível sobre certos níveis do processo criador, que dizem respeito à palavra, à escolha das palavras e aos efeitos a serem extraídos delas. Só o poeta saberia dizer, depois de realizado o poema, se é possível e se de fato interessa estabelecer limites rígidos entre arte e técnica, ou entre engenho e arte.
De que matéria é feita a poesia? Daquele quase-nada que oscila entre matéria de vida e matéria verbal.
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20 setembro, 2012 as 16:21