Mallo, um mapeador


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Seguindo-se a Nocilla Dream, publicado no início de 2013, o recente lançamento de Nocilla Experience deixa em evidência o projeto do espanhol Agustín Fernández Mallo, pautado na abertura de trilhas investigativas envolvendo a autoria de uma obra de ficção e a redefinição da literatura hoje. No intervalo composto de uma a outra sequência narrativa, entre capítulos/fragmentos de natureza diversa – bem diz Mallo que o mais interessante em sua arte se encontra num comics, através do espaçamento essencial de um a outro quadro (o que promove a sucessão, e não os “quadrinhos” em si). O autor espanhol, físico de formação, inaugura antes de tudo um plano livremente especulativo para suas figuras e motivos em espiral a contar da quadratura dos gêneros e do contorno de fábula reservada à chamada “escrita de ficção”.

Segundo volume da importante trilogia Proyecto Nocilla, o livro se encontra no processo de uma sondagem, à altura de seus personagens nomádicos. Algo que está em total acordo com o que o escritor define como literatura móvel, em Blog Up (reunião de seus artigos disseminados na web, publicada na Espanha em 2012). Importa mais a cartografia de uma rede em estado de fomentação e inter-relação sequencial do que o erguimento de um esquema cumulativo de causa/efeito a se encerrar no código romanesco. Mesmo quando se pensa na desmontagem de modelos do gênero por força de estratégias hiper-referenciais e autoposições de linguagem, na tentativa de ser validada uma vaga noção pós-moderna a se estirar pelo milênio afora, Mallo surpreende. Em total sincronia com quem compreende nossa época, timbrada, já, pelo ethos de um pós-modernismo tardio (é o que ele atesta no empolgante ensaio Postpoesia, de 2009).

Em consonância com sua visão expandida da física, A. F. Mallo lida com a narratividade ficcional no dimensionamento de um sistema aberto, no qual os paradoxos do espaço-tempo, o acidente da arte (para dizer com Paul Virilio) ou a escrita como um errar – ab-errância –, fazem do segundo volume do Projeto Nocilla uma pulsante experiência. Se há autorreflexão (ou autorrefração) do literário em suas páginas, deflagra-se, no mesmo movimento, o deslizamento de fronteiras entre imaginação, ciência e tecnologia.

Desponta uma encruzilhada multitópica por onde as imagens de degelo, desterro, ruína, sinalizam, também, para a radicação do autor em uma geografia bem precisa e atualíssima, localizada no que se concebe como mundo na conjuntura mundializada. Para se falar em termos de física, o livro volátil, veloz, que é Nocilla Experience – não obstante a carga multiplicada de linguagens e diferentes áreas do conhecimento – insufla um horizonte de eventos, tomado aqui num sentido filosófico instigantemente atual, capaz de apreender a arte narrativa como forma evenemencial por excelência. Uma vez que se encontra implicada na modulação do acontecimento na passagem do tempo (de uma História, aliás, contextualmente bem demarcada) por força de sua potência fabulatória colhida entre campos discursivos diversificados, não obstante a hegemonia granjeada pela tecnologia – pela tecnociência, frise-se – como a mais impressiva face dessa era nova, pós-milenar e finita, em pleno curso.

Se há algo de nitidamente indagativo sobre a matéria que se cria, tal especulação não se afasta do traço performativo – da escrita enquanto é produzida –, da dimensão de um ato embasado em trajetórias erráticas. Percursos que pontuam, por exemplo, o personagem Harold (como que inspirado no burlesco radical de Harold Lloyd), arremessado de um jogo solitário com as bolas de um dispositivo vintage de imagens rumo a lugares intermitentes, num lance ao infinito – um “lado de fora” que explora as fronteiras imateriais de um mundo tecno, que é, também geopolítico, eminentemente territorial em toda sua desnorteadora diversidade.
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O console de 1979 conectado à televisão. A tela totalmente preta, um ponto quadrado e branco que serve de bola, duas linhas brancas verticais que se movem de cima para baixo e simulam cada jogador. Silêncio de meio-dia, as pessoas dormem ou se banham, as persianas abaixadas, e após cada golpe de raquete ouve-se um esponjoso doing. Depois de chegar ao mar do Alasca e ter de fazer a volta após cinco anos correndo sem descanso, Harold desceu o Canadá, entrou nos Estados Unidos vestindo sua calça de brim com pregas, sua polo vermelha e sua jaqueta tipo aviador, e o estrito acaso de sua trajetória errática ainda demorou outros três anos para levá-lo de novo até a porta de sua casa. Ninguém tinha entrado. Nem um mínimo saque. Nem uma só carta na caixa do correio. Tudo intacto. O mar, ao fundo, uma pele de mercúrio, o console ligado, na tela milhares  de  partidas perdidas.  Encomendou de novo todo o estoque de Corn Flakes com aquela data de validade, porque entendeu que já não podia viver sem aquela recordação, sem aquela fuga, sem aquela recordação, sem aquela fuga. Como quem escutasse o trovão ao mesmo tempo em que vê seu correspondente relâmpago.

(Mallo, 2013: 177)

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Se pulsam, em Nocilla experience, as matrizes borgianas – refeitas, em El Hacedor (De Borges) – Remake, de 2011, impedido de circular por intervenção judicial da viúva do escritor argentino –, Mallo, por sua vez, as conjuga com uma incursão pela dinâmica lógico-espacial de Rayuela. Torna a obra de Cortázar um componente (constitutivo de um núcleo de capítulos) essencial ao longo do livro. Fica sem remissão a um culto, a um culturalismo em torno de Borges, o constructo de humor e heterodoxia proporcionado pela Experience de Mallo.

Justamente, um sentido experimental se suplementa, sob uma acepção renovada (proveniente do âmbito científico, da física mais precisamente), na qual o exame não se exime de um arcabouço conceptivo estendido para vizinhanças filosóficas e estéticas as mais aguçadas. Toda uma voltagem concentrada em torno do legado da literatura no presente – não à toa, Borges soa como um forte referendum – é acrescida a um propósito meramente reverencial (ou referencial).

Revisita-se toda uma história recente de narrativas (uma história pós-borgiana, diga-se), que passa dos “espaços nocionais” da cyberfiction às gravitações de vida/linguagem orbitadas no território norte-americano por Foster Wallace, à maneira de um inventário do saber contemporâneo. O autor reencena o também espanhol Vila-Matas (uma espécie de antecessor posteriorizado numa outra codificação do espaço literário, tal como remapeia o Projeto Nocilla), assim como o italiano Giorgio Manganelli, com seus romances-rios elaborados a partir de formas mínimas.

A imantação deixada pelo rastro de suas pontuações-percursos vitaliza a compreensão do tempo presente por meio de uma vasta correlação de entrechos e figurações conceituais. Para um autor que se nutre de arrojadas formulações da ciência simultaneamente às coordenadas que lança a Land Art (principalmente as desbravações de Robert Smithson), aliadas ao cinema de Antonioni e Lynch, assim como se incorpora a dimensão pop do single perfeito (Mallo é um aficionado das sonoridades de seu tempo), assinalado pelo caráter singular e repetível de uma celebração do instante, a arte de  narrar  se  reconfigura através  de camadas em superposição e propagação de ondas. Quanto mais os indícios textuais e culturais se revelam, mais se intensifica a paixão da leitura, que vem a ser, de modo curiosamente renovado, a literatura como aventura, como descoberta.

 

 

Nocilla Experience, de Agustín Fernández Mallo.
Trad. Joana Angélica d’Avila Melo.
Companhia das Letras, 2013.

 

 

 

 

 

 

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Mauricio Salles Vasconcelos é autor do ensaios Espiral Terra – Poéticas contemporâneas de língua portuguesa (2013) e Rimbaud da América e outras iluminações (2000), de Stereo(ficções), editado em 2002,  do romance Ela não fuma mais maconha (2011) e das narrativas de Moça em blazer xadrez (2013). Publicou os livros de poesia Sonos curtos (1992), Tesouro transparente (1985) e Lembrança arranhada (1980). Dirigiu, entre outros videos, Ocidentes(2001), tendo por base seu livro-poema Ocidentes dum sentimental (1998), uma recriação de “O sentimento dum ocidental”, de Cesário Verde, e também  Giro Noite Cinema – Guy Debord(2011). Carioca, vive em São Paulo. E-mail: vasconcelosmauricio@hotmail.com




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