À Sombra do Presente
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No ensaio[1] de Giorgio Agamben sobre o contemporâneo, nítida fica a compreensão da face sempre potencial, não de todo revelada, das palavras e das coisas em circulação no tempo presente. Sob o impacto de inúmeras teorias que tentam definir a hipermodernidade (caso de Lipovetsky, de volta agora com as modulações da cultura-mundo) em adendo à já estiolada noção de pós-moderno, mantendo ainda um vínculo inevitável com o século XX, perde-se a configuração complexa, mas muito precisa do milênio dia-noite adentro, já em sua segunda década. O instante multiconfigurado, complexamente posteriorizado, não cabe na genérica sigla oferecida pelo prefixo post ao infinito. Valeria intensificar esse sentido último, desbordado e desdobrado, afirmador da finitude e da passagem para um momento em que memórias recentes de um outro século deixam-se morrer e se resituam na conjunção de novas forças. Tudo o que ocorre por obra de um outro ethos com visíveis recomposições geopolíticas e sutis refigurações do ambiente (do mais imediato àquele dimensionado pela noção atualizada de mundo).
Nas órbitas da arte e da produção cultural, observa-se entre nós uma grande dificuldade, nos meios destinados à reflexão (imprensa, universidade, espaços diversos de saber), e mesmo à informação, de captar o que se passa. A tentação de dar um passo para trás em busca de algum fundamento, de alguma ordem em retorno, tendo-se pela frente os desafios do que não se nomeia e desenha um campo controverso de atitudes e enfrentamentos é tão gritante quanto o chamado à aderência, ao decalque de uma imagem da hora.
Ao lado da rejeição de um quadro geral de domínio econômico, da tecnificação em todos os segmentos produtivos e áreas do conhecimento, do que descreve Tony Judt como mundo plano[2], ganha terreno, dentro de uma formulação dualista, num contraponto linear, o elogio da tecnociência como horizonte inaugural e onipresente. Horizonte monovalente, se tomado no interior de tal corte dicotômico, hegemônico. Capaz de fazer desfilar em seu rasto os valores reincidentes do consumo, do desempenho meramente funcionalista do poder-saber, a interface não se ramifica de modo plural. Deixa emergir apenas o contorno da visibilidade, assinalada que está por uma coloração monocromática, mecanicamente interativa com o momento histórico. Provêm de tal esquema aplainado de forças e formulações, as idéias reiteradas sobre o fim do livro, do humanismo, do coletivismo concebido ainda em macrocategorias e pela massificação de seus componentes heterogêneos. Sob a égide da opinião, arte e cultura, política e cotidiano se enlaçam num contexto planificado, à distância do que pensa, entre muitos, Bruno Latour sobre as mutações de sujeito e objeto numa relação que é, ao mesmo tempo, real, discursiva e social.[3]
Talvez Félix Guattari é quem venha a oferecer a engrenagem não-mecanicista de uma conjunção de elementos tanto estéticos quanto políticos, assim como semióticos e tecnológicos, simultaneamente epistemológicos e comunitários, ativados na vasta extensão do tecido social desse século-milênio dia a dia ressurgido e insurgente entre o datashow e o pop-up que contornam corpos, mentes, pelos espaços, através de temporalidades recombinadas. Pode-se ler em artigos e livros do autor o ingresso polivalente em uma cultura digital, potencializador dos mais diversificados domínios e interrelações. Encontram-se envolvidas as mais variadas artes, linguagens, áreas do conhecimento e de uma humanidade nada abstrata, nutrida da vida material não-mais refém do credo humanista, unidimensional em suas figurações de destino e origem.
Para além do ato de acoplagem ao mondo techno, algo muda na ação sobre o dia após dia e nos nossos modos de ser, pensar, produzir cortes entre o que se escreve e o que se inscreve em órbitas coetâneas de sentido e criação. Tudo induz a uma gênese. Gramofone, filme, máquina de escrever, como formula Friedrich Kittler[4] ao elaborar a semiótica dos media entre os séculos XIX ao XX para tratar das mutações da história e do timing da escrita instalada na esfera dos sistemas de informação. Justo agora. Celular/cassete/romance, numa investigação ao contrário, da voz satelizada em qualquer lugar-planeta à dimensão do sujeito inquirido pelo remanescente e, a um só tempo, possante livro-romance. Nada se lineariza, põe-se a eclodir para fora dos enquadramentos do que se passou e não pode refutar a urgência de agora.
À sombra do presente – Há muita opinião, plataformas e palanques para a assinatura on-line do poder de transparecer através do simulacro-celebrity da palavra manifesta. Tudo pela aura one-way da simples difusão quando mais árduo se torna lidar com um espaço conexional que não deixa de ser construtivo, cognitivo, e não se sustém pelas projeções do ego, do mesmo lugar das coisas, facilmente concebidas do papel à página volante, imaterial.
Na retaguarda do tempo veloz – Se por um lado, o velocímetro da informação encegueia, barra os pontos vivos, relacionais, do traçado dos tempos e dos espaços contidos no agora, vive-se, contudo, o controle e a corporação no que toca a relevância e a variedade criativas desse momento (aquilo que só é de agora, ou melhor, aflui ao dia de hoje como dado e evento imprescindíveis, não dizendo apenas sobre essa hora).
Muitos são os livros, os pequenos e grandes acontecimentos – todos essenciais – omitidos por uma imprensa atrelada aos ditames do mercado, resumida a espaços jornalísticos nada permeáveis ao debate, sequer ao registro “do que se passa”. À celeuma facciosa, meramente opinativa, sim, é concedida uma extemporânea moldura de “atualidade”. Espanta ficar sem notícia o lançamento, por exemplo, da Biografia Cruzada de Deleuze e Guattari[5], produzida por François Dosse, um estudioso da escrita biográfica, que se revela um arguto analista do trabalho filosófico dos autores de Mil platôs, a obra mais influente nas ciências humanas (e não só, como atesta Dosse) dos últimos 30 anos. A ausência de reflexão se deve ao fato da editora Artmed correr por fora do pool favorecido pela grande empresa-imprensa? Da mesma forma, ensaios seminais como aqueles contidos em O cosmopolitismo do pobre (Belo Horizonte: UFMG, 2004), de Silviano Santiago, não foram debatidos, devidamente analisados, deixando de ser incorporados ao pensamento brasileiro contemporâneo como chave da problemática cultural que se dá em todas as esferas, envolvendo mesmo as camadas menos “favorecidas”. Isso para não se falar na universidade, onde supostamente o livro de Santiago teria um “lugar-de-honra” para sua recepção. Só que acaba por não repercutir da forma potente e intensa como merece, uma vez que as instituições de ensino só realizam pesquisa como item de uma produção concebida quantitativamente, centrada no desenvolvimento do perfil técnico-administrativo de seus agentes pedagógicos.
Por conta mesmo de um academicismo remanescente, quando não é por força de um alinhamento mercadológico a “novidades” que não passam de reciclagem, muito aquém da complexidade dessa época, a cena se move pelo simples cumprimento de faturas burocráticas, reguladas por um mínimo de inquietação – sob o compasso da grande voz da cultura (como concebe Laymert Garcia dos Santos no ensaio ainda fundamental que é “A experiência da agonia”)[6]. A chamada “produção intelectual” e mesmo o espaço de “criatividade” reservado à arte se encontram a mercê de uma conjuntura de funcionalidade, desprovida de investigação e lastro conceitual. Curiosamente, isso se dá numa era timbrada pelo signo da informação e da multiplicidade de acessos. Já não vale dizer que por imposição capital da tecnologia deixa-se de criar e de pensar.
Depois de ler por muitas horas as peças recém-publicadas de José Vicente, vivo me vem um título não incluído nos dois volumes que reúnem sua produção. À sombra do inferno. Neste texto ainda inédito, muitas surpresas surgem. Um traço premonitório desponta muito além da quadratura em que o dramaturgo ficou afixado como porta-voz de uma geração (teatral, inclusive). Na peça escrita em 1975, pulsa o espaço cênico como arena de embates encarnados por força de sua historicidade e da inquietação que os deslocam da contingência epocal (ponto definidor do teatro como linguagem e ato). Vibra algo que não se comporta apenas em um determinado período e o ilumina de um modo insuspeitado, vindo talvez daí o ineditismo ainda desse texto (e de muitos outros do teatrólogo mineiro).
A oportunidade de ler e projetar a escrita de José Vicente 40 anos depois de sua criação põe em pauta as inquirições de Agamben sobre a história e a noção de contemporaneidade. O presente passa a ser visto pelo que tem de sombra, pelo que apresenta de impensado no jogo de virtualidades sempre acionado em cada época. Muito diferentemente do que se vive e pensa sobre arte e cultura entre nós, tantas vezes em reverência ao mais aparente e no controle das possibilidades mais provocadoras, não legitimáveis, nem legíveis, no momento em que vivemos e pelo qual passamos. Tudo o que nos preserva à sombra do presente quanto mais nos aferramos ao efeito-luz da transparência, da ordem do dia.
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[1] Agamben, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.
[2] JUDT, Tony. Reflexões sobre um século esquecido. 1901-2000. Trad. Celso Nogueira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. p. 20.
[3] LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. 2.ed. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: 34, 2009.
[4] KITTLER, Friedrich. Gramophone, Film, Typewriter. Trad. Geoffrey Winthrop-Young e Michael Wutz. Stanford: Stanford University Press, 1999.
[5] DOSSE, François. Gilles Deleuze & Félix Guattari – Biografia cruzada. Trad. Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2010.
[6] SANTOS, Laymert Garcia dos. Tempo de ensaio. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
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LIVRO (S) EM LEITURA –
VICENTE, José. Primeiras obras. (Org. Cida Morais). São Paulo: Imprensa Oficial, 2010.
______________. Outras obras. (Org. Cida Morais). São Paulo: Imprensa Oficial, 2010.
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Mauricio Salles Vasconcelos é autor do ensaio Rimbaud da América e outras iluminações (2000), de Stereo (ficções), editado em 2002, e do romance Ela não fuma mais maconha (2011). Publicou os livros de poesia Sonos curtos (1992), Tesouro transparente (1985) e Lembrança arranhada (1980). Dirigiu, entre outros videos, Ocidentes (2001), tendo por base seu livro-poema Ocidentes dum sentimental (1998), uma recriação de “O sentimento dum ocidental”, de Cesário Verde. Inéditos: Brasileira (romance); as narrativas de Alguém, Augusta (Garotas); Espiral Terra – Poéticas contemporâneas de língua portuguesa (ensaio) e Giro Noite Cinema – Guy Debord (video). Carioca, vive em São Paulo. E-mail: vasconcelosmauricio@hotmail.com
16 março, 2012 as 13:07
2 abril, 2012 as 13:26
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28 junho, 2013 as 5:26