CADERNETA-MAQUETE (II)


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Enigmática sobrevida da escrita, as palavras de Sebald, em Os anéis de Saturno, se abrem como limiares, em muitas direções. Em órbitas que o livro encerra e, instantaneamente, pontua como suporte e suplemento de seu próprio vorticismo, composto por marcações móveis. São inseparáveis das trilhas que se talham à altura de um imprevisto campo geofísico e das fontes intermináveis de inscrição em torno dos quais produzem movimento cênico e discursivo.

O filme criado por Grant Gee a partir do romance em todos os seus offs especulativos, reais (situados em referências históricas e territoriais as mais diferentes) e teóricos (com a convocação de estudiosos e leitores do autor alemão), tornam Patience (After Sebald) uma peça-chave de muitas entradas para o ambiente áudio-visual que nos cerca. Por conta de seu espectro narrativo, construído como sinfonia de testemunhos, ativada em compasso com dados incessantes de uma cartografia, o documentário se apresenta como espaço de leitura.  Desencadeia, por seu turno, o ingresso em uma viagem de descoberta e reconfiguração do vivido, do lido (em Sebald, especialmente) e do que pode ser visto numa tela de projeção.

Patience (After Sebald) oferece uma súmula intrigante, insidiosa, para se entender o cinema realizado agora (tendo 2012 como premissa), mas dá, também, as cartas de um jogo interferente nas vizinhanças de outras artes e das muitas culturas implicadas na vida presente das imagens/linguagens. O cinema se põe em estudo. O traço ensaístico se revela imanente a qualquer tomada de foco sobre o que parece mais característico de uma fração de realidade. As linhas, os grafismos, as letras preenchem toda a esfera da visão. Eletrificam-se sobre a organicidade dos depoentes, das citações e dos fragmentos de lugar que envolvem a concentrada análise de um único volume, Anéis de Saturno. Um outro livro se desgarra sob a legenda de uma polifonia referencial, na contraface de espaçamento e trânsito, essencial ao seu modo de narrar.

O que pode parecer como investigação exclusiva ao domínio do literário, no cotejo com outros filmes recentes, expõe o entrelace de motivações em correspondência plena com o painel pontilhado de índices,  cruzado  por  topoi desdobrados entre palavra e registro in loco, escrita enigma da própria visualidade. …sempre que decifro um desses registros admira-me que um rastro há tanto tempo apagado no ar (…) continue visível (Sebald, 2002: 103).

Tudo aquilo que desponta como mapa, a partir de um diálogo em torno de Sebald, escapa do campo/contracampo do padrão doc., assim como do filme-modelo sobre autores literários. A escolha por um livro possibilita, além de um investimento ensaístico, a abertura de recursos para a captação da experiência em curso, em captura/captação. Toda uma artesania a envolver testemunho e temporalidade. E não se esgota no arsenal do mundo tecno. Mas a contar mesmo de seu interior, de sua entourage mediática, recursiva.

O desenho minucioso da rede escritural, mapeadora de muitos outros signos em volta de Sebald/Anéis de Saturno, faz emergir a sobrevida da escrita em andamento tradutório de seu compósito verbal. Uma vez que assinala uma cultura cartográfica, evidenciável nos diversos cinemas da atualidade, não impondo a letra literária como sedimento originário, assim como não se estabiliza na imagem de síntese, capaz de tudo agregar, simular e transparecer.

Muito mais do que tornar legível, fazendo fluente e legitimável o mundo-imagem, o cinema solicita corpos em andamento, em descarte da assinatura autoral feita em nome de uma justeza ideológica ou identitária. A escrita-de-caminhada embalada por Anéis de saturno declara de modo gritante sua formulação física, imbuída das mutações no correr de um percurso/decurso configurado heterodoxamente em campos-de-força, na circulação de bens simbólicos (próprio de uma anti-formação).

À sobrevida da imagem  –  assim como aquela do escrito apreendida por Sebald  –  necessário se mostra desencriptar a cifra visual do mundo regido por dispositivos mecânico-funcionais em sua unidade acabadamente técnica ou simplesmente demonstrativa de um uso/efeito documental, direto, espontaneísta. Não se efetiva uma filmografia do real desprovendo-a do complexo repertório que liga rostos a relevos de inscrição, vozes a cicuitos enunciativos.

Deixa de haver remissão ao verbo, entendido como instância abstrata, soberana, assim como o direcionamento cumulativo de efeitos rumo a uma imagem final. Um corte se opera na supremacia metafísica da visão como patamar de racionalidade e síntese.

Fotogramas são documentos, dentro de uma compreensão arquigenealógica bem sublinhada por Agamben em Signatura Rerum, quando revisita Nietzsche e Foucault. Observável é a contra-efetuação  do  discurso  da  história e da recorrência ao verismo, à origem:   Arché (da Arqueologia) proporciona o sentido de emergência, ponto sempre nascente do passado em co-presença.  Ou, frisando-se o jogo memorial contido na construção imaginária do cinema – “mera aparência, sem volume nem espessura” (como bem rastreia o crítico espanhol Domènec Font, 2012:15) –, a dimensão fantasmática se dá mais como desconstrução, num detalhamento/decupagem capaz de erodi-la “progressivamente até fazê-la perder sua condição originária” (Agamben, op. cit: 141).

Sonhos não são sedimentações. O dado fabulativo deixa de se endereçar a um fundamento oculto, maior e mais atuante do que o corpo vivo em vigília (não em vigilância, presa da codificação onírica). Agamben rompe, assim, com o substrato freudiano quando absorve a noção foucaultiana de arquivo, atrelando a fantasmática fílmica aos dados da materialidade dos signos que a compõem. Evita a ancoragem do sonho na repetição forçosa do passado traumático, uma vez que antecipa o momento da liberação. É presságio da história. Dissolve a proeminência da “cena primária” no curso das imagens em despedaçamento do que chama de “fascínio fusional’.

A genealogia realiza o diagrama das datas, dos dados obsedantes, encapsulados numa remissão sem fim, transmutados que são em cadeia articulada, situacional. Opera, então, a potência imaginativa entre sombra/luz, em um cenário multívoco, alterado por tudo que é posterior, contíguo, por uma multiplicidade de motivos em exibição.

O arquivo de que dispõe o arsenal de imagens se imbui dessa incisão na vida presente, tomada de uma vasta coleção e combinação de planos e séries cambiantes, interrelacionados. A documentalidade do filme embasa-se, pois, em tal postulado de projeção não restituidora do trauma, da causa, apontando paradoxalmente para a “transmissibilidade do não-vivido”, de uma “sobrevida por vir” (Agamben, op.cit: 148). Um passado não-vivido se impõe, então, animado por seu traço de irrupção sempre contemporâneo.

“…no fundo, a história não seria nada mais do que um amplo encadeamento compactado de imagens e filmes que regressam das luzes da noite para convocar a potência, cada vez mais precária, do dispositivo cinematográfico” (Font, op. cit: 20)
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Ensaísmo na trilha vertiginosa de Sebald filmado por Gee ou através da música reescutada na outra ponta do tempo, em um teleférico transportado pelo deserto de neve (PAPIROSEN) – O cinema confronta as suas premissas eminentemente técnicas ao ser apropriado por um senso memorialístico mínimo. Não ao acaso, viagem e documento fazem um intercâmbio. Mas a convocação de uma travessia acaba por se enunciar, na busca de obsessões radicais, de ritornelos-motivos não culturalizados, quanto mais o realizador argentino Gaston Solnicki se atém a um minucioso retrato de sua família judaica.

Em dois filmes latino-americanos – Papirosen e De jueves a domingo –, viajar significa transformar a duração do conhecido num átimo da paisagem móvel. Todo um dimensionamento exterior interfere no projeto de vida íntima, da proveniência nuclear, biológica, de um cerrado agrupamento humano. Em De jueves a domingo, a chilena Dominga Sotomayor frisa o sentido crescente da condição familiar por força da velocidade proporcionada por um trajeto de automóvel (em sincronia com o teleférico que encerra a grande viagem da origem planejada em Papirosen).

Antes mesmo que a jornada chegue ao fim, traços de exposição/exterioridade atuam sobre os viajantes, à maneira de Gombrowicz (aliás, um autor polonês radicado e amadurecido na Argentina), em A pornografia. A idéia de formação sofre um baralhamento no que toca as coordenadas do tempo e a dinâmica do movimento embutida nos percursos. Os sinais se manifestam desde o início do projeto da partida, de modo a desfuncionalizar a perspectiva da cronologia – aprendizagem como processo gradativo, evolutivo –,  da  observação à distância e da meta a se alcançar projetada em linha reta.

É, justamente, através dos mais jovens que o memorial de um século das mais diferentes espécies de guerras e confrontações interpessoais, culturais, se submete a um desenlace. Na cançãozinha infantil entoada no embalo do carro, capaz de contagiar toda a família do filme chileno, assim como na música obsessiva do patriarca de Papirosen, legada ao neto menor, o vestígio da procedência, a marcação afetiva, dada de cor (cantigas de grupo, refrões temporalizados, trilhas sonoras radiofônicas), se lançam a um contato com a desertificação. Bem mostra Solnicki o campo nevado em desmesura, ao inverso do horizonte, e Sotomayor descortina a pista errática, destituída de paisagem, no seio (no trajeto para o reencontro fusional com amigos) de uma pequena família.

Presencia-se um “arrasto” de linhas/vozes/imagens (como bem frisam os autores de Mil platôs no ensaio decisivo que é “Acerca do ritornelo”) a dissolver a lógica do conhecimento, de um mundo sintetizado por imagens através de um transcurso pelo tempo, pressupostamente revelador do documentário da vida íntima (com a aparência de um homefilm) inerente à História. Como, também, poderia acrescentar Sloterdijk, em O estranhamento do mundo, a dinâmica da autoexposição favorece a noção nuclear de clareira, de modo coetâneo com a partilha do desértico, das primeiras pessoas do ser/saber estranhadas em um universo mundializado, mediado, atravessado por discursos não coincidentes com a palavra, a imagem e o tempo de suas figurações.

“Estar no mundo” – pontua Sloterdijk – sinaliza uma dimensão de busca, não de ajuste a códigos predeterminados, monovalentes.

No instante em que o filme vai se materializando, os itens componentes de uma documentação se atualizam como memória a haver. A poeta e crítica portuguesa Silvina Rodrigues Lopes destaca o empenho sempre acrescido, inseparável da linguagem, quando estuda A comunidade que vem, de Giorgio Agamben. A força das imagens como fator de descoberta se apresenta no cinema de agora como dado de um cruzamento entre as presenças e seus universos discursivos. Qualquer possibilidade de transformação crítica, política, no trato de arquivos, materiais dispersos, anônimos, esquecidos, não se abstém de sua experiência de exposição e exterioridade. Ao modo de um surgimento operado pela conjunção de elementos não colmatados, inconclusivos, heterogeneamente compreendidos numa história da emergência.

Daí ser o cinema tomado muito mais como uma esfera especulativa do que uma máquina industrial já definida, por mais que se estabeleça o fórum de premiações, segmentações de gêneros e gostos testados em nome do público, da fluência/fruição de uma linguagem específica. Bem depois de toda espetacularização, dos esteticismos confluentes com a história de dois séculos, fica o potencial da máquina (o dado maquínico, não-mecânico, mas pluralizado por cortes e coextensões) como figura essencial, acoplada, contudo, a uma indissociável contraparte do corpo. Pois são marcas do humano em caminhada, entre os fantasmas da simulação de toda sorte e seus recursos testemunhais, documentais, que impõem um caráter acentuado de urgência, de advento/acontecimento, em tudo o que se vê e se lê, simultaneamente. Como se tratasse de uma autonarrativa (parafraseada de Sebald) referente à enigmática sobrevida do cinema.

 

 

 

 

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

AGAMBEN, Giorgio. Signatura Rerum. Sobre el método. Trad. Flavia Costa e Mercedes Ruvituso. Buenos Aires: Adriana Higaldo, 2008.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980.

FONT, Domènec. Cuerpo a cuerpo. Radiografías del cine contemporâneo. Barcelona: Galaxia Gutenberg, 2012.

GOMBROWICZ, Witold. A pornografia. Trad. Flavio Moreira da Costa. Rio de Janeiro: Expressão e cultura, 1970.

LOPES, Silvina Rodrigues. “A íntima exterioridade”. In SEDLMAYER, Sabrina et al (org). O comum e a experiência da linguagem. Belo Horizonte: UFMG, 2007. p. 71-80.

SEBALD, W. G. Os anéis de Saturno. Trad. Lya Luft. Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 2002.

SLOTERDIJK, Peter. O estranhamento do mundo. Trad. Ana Nolasco. Lisboa: Relógio D’Água, 2008.

 

 

 

 

 

 

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Mauricio Salles Vasconcelos é autor do ensaio Rimbaud da América e outras iluminações (2000), de Stereo (ficções), editado em 2002, e do romance Ela não fuma mais maconha (2011). Publicou os livros de poesia Sonos curtos (1992), Tesouro transparente (1985) e Lembrança arranhada (1980). Dirigiu, entre outros videos, Ocidentes (2001), tendo por base seu livro-poema Ocidentes dum sentimental (1998), uma recriação de “O sentimento dum ocidental”, de Cesário Verde. Inéditos: Brasileira (romance); as narrativas de Alguém, Augusta (Garotas); Espiral Terra – Poéticas contemporâneas de língua portuguesa (ensaio) e Giro Noite Cinema – Guy Debord (video). Carioca, vive em São Paulo. E-mail: vasconcelosmauricio@hotmail.com

 




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