Comédia de Borda


Comédia-de-Borda –

Poesia-Sentença-Ação

…...(Lyn Hejinian)

 

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Publicado em 2001, A Border Comedy extremiza os elos entre prosa, poesia e concepção de livro como ícone cultural (nas suas dimensões materiais e temporalizadas de documento, assim como de testemunho), desenhados no clássico contemporâneo, que é My Life. Saliente-se que esta obra, lançada em português no ano passado com tradução minha, foi publicada inicialmente em 1980, depois completada na edição definitiva de 1987 com os 45 blocos relativos aos 45 anos de uma vida, a da autora mesmo. A partir de aforismos introdutórios a cada um dos textos do seu livro da vida (gradativamente inseridos no corpo dos poemas), Lyn Hejinian podia configurar uma intrigante composição mista de autorrelato e mapeamento especulativo do tempo, adotando a postura de quem investiga a plasmação da escrita – o fator “poesia-de-linguagem” – no pulsar de um arquivamento nada linear da memória de si.

Em um projeto posterior, caso de Comédia de Borda, passa a ser intensificado, no arrolamento (no rolar de um fluxo) de cada frase/sentença, o caráter não somente remissivo de uma vida (pois em infindável retomada e recriação), inseparável do referendo ao traço totalizador constante do modelo-matriz livro. Justamente, atravessa o sentido de súmula, contido no tomo/reunião in totum, o paradoxo/paroxismo de sentenças conjugadas como versos, numa combinatória de compactação e desbordamento. O efeito vertiginoso de prosa sequencial vai culminando por força de uma operação de montagem produzida linha a linha – uma atrás de outra, insemina o que se compreende como verso –, no interior de um processamento capaz de exorbitar o que está sentencialmente dado por escrito. Vêm daí os elementos constantes do título: uma comédia – apreensível tão-somente/através de – borda.

Não à toa, Hejinian faz referência – em um anexo/desfecho – aos 15 livros que compõem sua Comédia. É quando os relaciona a obras de diferentes autorias literárias, filosóficas, teóricas, estéticas, agrupadas sob o toque da mais plena diversidade de concepção (e parceria).

Aforismo – Sentença – Linha poética – Minha vida ainda se escreve, no compasso, porém, dos muitos livros de uma ampla conjunção tomada como comédia.

Sentença – Linha – Ação.

A comédia está em captar a borda de sua condição presente de poesia entre linguagens, entre as quais o texto da vida não se depreende sem intervenção em um vasto corpus. Algo que só pode se dar no compasso – cômico-fronteiriço – de um ingresso na sentença indissociável de uma ação.

Comédia-de-Borda ou O que passa a ser a escrita: a variação da L=A=N=G=U=A=G=EP=O=E=T=R=Y como ato multimotivado, desafiado pela performatividade de um flagrante, um gesto desabrido, não apenas repertoriado de invenção.

Ou ainda, sob a marca e a fronteira de um tempo posterior (traçado finitamente à prospecção século XX do gesto avant-garde): um legado de experimentação só se reativa pela potência de um excedente. À beira de um todo preformado – por meio (pelo meio) de um transcurso não sedimentado (para além da mera recorrência) de livro e vida. É como se qualquer indício de destinação só se sinalizasse por obra de um feito posteriorizado, indestrinchável de um language act, quanto mais se exterioriza uma condição limítrofe, não sustentada por códigos de origem e linhagem.

Curiosamente, o enfrentamento de um dizer integral, à altura de uma cartografia, não se nega ao empenho de uma incursão pelo diverso, pela polifonia dos registros discursivos – da filosofia à música, da neurociência à própria arte da poesia. Observam-se, aliás, endereçamentos impressivos a Dante, por obra do impasse criado entre o dado divinatório e seu entrecho sacrificial, ao alcance do paraíso da comédia (aprendizado suplementar e simultâneo através da poesia, pontualizado pela imagem-guia virgiliana). Experiência potencializada a contar de outro dimensionamento da via mística, na travessia da comédia humana entre planos de linguagem (como bem teoriza a própria Hejinian, em seu ensaio “Language and “Paradise”, integrante da reunião ensaística  The Language of Inquiry).

Compreendendo-se o “meio do caminho” como topos (Hejinian, 2000: 66) – patamar de passagem e reiteração, em Dante –, iniciação e experimentalismo criam um inusitado e incessante intercâmbio. A história da minha vida, nesse sentido, não escapa à dinâmica composta entre meio e caminho. Uma vez que no livro de L. H não ocorre nenhum descarte do impactante desalinhamento da pauta lírica, de um intermitente curso movido por mutação (em gradações de takes rítmico-conceptuais), formados entre linha – frase – referência e borda da literatura. A temerária sentença cria um elo/Pela trilha mais longa – a ronda a circular/Um paradoxo/Paródia/Paraíso da comédia/ O imperativo a permitir que se diga/Tudo deve ser feito

 

 

Segue um trecho da tradução que estou realizando da obra, pertencente ao livro XV – o final – da Comédia de Hejinian: uma longa sequência de suas últimas páginas.

 

Suponho que eu seja a mulher

Porém estou muito menos interessada no autoescrutínio enquanto arte

do que na existência de mim um dia

Conhecimento é, certamente, nobreza

Comédia, contudo, pura cópia, revela-se intrincada

Dura de se analisar

Embora seu personagem esteja curiosamente confiante

Tal como automóveis na estrada, à frente, flamejam

E eu nesse rumo

Destituída de caução,

Veloz, entretanto – feito um homem ferido,

Giro

A adormecer

Assim sinto uma tarde posterior em repetição de formas

Sobre formas

Contrária ao que é turvo, curva para trás

Vagarosamente adiante

Formo algo

Chamado talvez bebê

Movimento

Cujo sentido uma figura acalora

Em chegada, no tempo presente, e de partida

Na dianteira de uma procissão

Dando uma voltinha, a ondular a mão de sujeira

Esse bebê tem a capacidade para o amor e a ação excedente

da permitida front-

eira de sua própria vida

Você pode rir se lhe dá prazer

Se for escrita a mínima palavra a respeito antes que

sete anos tenham se passado

Tudo será mariposa uma semana depois para morrer

Nada remanesce

Não há suficiência no peso levado pelo olhar

Flama de si mesma, neon estourado

Ao alcance do livro

Enquanto apenas eu – nada mais que isso – trato de controle –

A latejar – mais do que anos se vão

O menor encadeamento pende do alto de uma lâmpada

Um lugarcomum

Muro direto através

Eu tenho seguido

Em perambulação, algo parece ir adiante

Cruza uma borda – o outro lado, todavia, falta

As mais estúpidas coisas tomam conta, quanto mais querelante

eu me sinto

Feita de fúria

De que mesmo?

Por que não sei

Deve ser irracional ira

Demasiado isso, de todo modo, sem a menor habilidade mesmo

para lembrar a minha vida

E o que, então, um shopping?

A música está tocando, embora eu fique embaçada – sempre a

instrumentação igual, samples de sempre

É claro que noto o número de pessoas perdendo dedos ou senão

uma orelha, o número

em vermelho, referente a armas, vômitos de desespero

Mundo faz-de-conta

Mas posso frequentemente computar tal melancolia ao lado da invenção

Sou possuída por um espírito de erudição real

Ainda que não seja tal posse o porte para me tornar filósofa

Wittgenstein diz que um filósofo não chega a ser o cidadão de uma

qualquer comunidade-de-ideias

É uma pena

Um rouxinol se contorce

O sodomita agarra a asa desmembrada de sua galinha

Digamos que temos um gosto pela história, em exposição, porém,

de serenidade sonâmbula

Eis minha casa, meu casaco, filha e filho

Ao identificarmos tais coisas como familiares (no geral, “meu” quer

dizer          nesse caso – afinidade) não infundimos simplesmente

algo do tempo que vivemos

Trata-se da questão de volume

Algo a se autoindagar

Quanto dura o último momento (linha) por cima do que se completa

Ao primeiro sinal de pausa deve-se “recair” no que se segue

Stockhausen e os meninos do bando estão anos 50 na sucessão

Queriam a cada momento imobilizar seus feitos e reter afinidades

com tudo o que resta

Set de afinidades correspondentes a “continuidade” (no mais emocional

senso)

Raio solar, pirâmides, linhas em perspectiva se expandem enquanto

se aproximam

Sem mais paralelo

Uma questão de ângulo, de tudo a ser aguardado,

Indo, em proveniência de um humano ponto-de-vista

Sonhos afinados suplementos opinativos das histórias mais sólidas,

de experimentos e obras

As linguagens todas

Quer dizer, provindo, e a caminho

Paralelo nenhum

Fatiado que seja

Não há chance de socorro no corte

A seguir

Senão notar o acosso embora desprovendo-me de palavras

tenho feito microscopicamente movimentos libidinosos

Rumo a seu rosado nebuloso e sempre corpo em retiro

Plumas, à menor menção

Agulhas de uma questão de sempre

Voo entre

Tudo o que terei

A temerária sentença cria um elo

Pela trilha mais longa – a ronda a circular

Um paradoxo

Paródia

Paraíso da comédia

O imperativo a permitir que se diga

Tudo deve ser feito

O bolo tem de se cozer

Diz-se fevereiro não há outro

Nada sob compulsão

Pois corre de todo jeito

Lá deve ter forçosamente alguém a mirar o mar e também

ser visto o que muda e se fixa para trás

Toda-ouvidos fico prisioneira garota à mercê do mais belo conto

E lamento tudo isso pois dito por uma bêbada quase demente

mulher de idade algo a não ser aceito nem repetido

De novo, mais uma

O alguém a ordenar a história para ser escutada

Tomada ao acaso

Por continuidade, de arrasto

Realidades cambaleiam ou murmuram ao ponto de

acúmulo, ocasião

Em que toda chance não passa de súbita semelhança

Uma trilha do conhecimento conjunto das coisas

Faz a razão de cada circunstância

Afinal toda diferença

Juntamente com o que vai deslizando – decisão – as coincidências

À medida de tudo

Da intenção de quem relata – acredite-se ou não

É fortuna concedida

À vida sempre.

 

 

 

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Referências Bibliográficas:

 

HEJINIAN, Lyn. The Language of Inquiry. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 2000.

_____________. A Border Comedy. Nova York: Granary Books, 2001.

_____________. Minha Vida. Trad. Mauricio Salles Vasconcelos. São Paulo: Dobra, 2014.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Mauricio Salles Vasconcelos é autor do ensaios Espiral Terra – Poéticas contemporâneas de língua portuguesa (2013) e Rimbaud da América e outras iluminações (2000), de Stereo(ficções), editado em 2002,  do romance Ela não fuma mais maconha (2011) e das narrativas de Moça em blazer xadrez (2013). Publicou os livros de poesia Sonos curtos(1992), Tesouro transparente (1985) e Lembrança arranhada (1980). Dirigiu, entre outros videos, Ocidentes(2001), tendo por base seu livro-poema Ocidentes dum sentimental (1998), uma recriação de “O sentimento dum ocidental”, de Cesário Verde, e também  Giro Noite Cinema – Guy Debord(2011). Carioca, vive em São Paulo. E-mail: vasconcelosmauricio@hotmail.com




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