CADERNETA-MAQUETE (I)



.

Um mix dos filmes vistos nesse 2012  em pleno escoamento, repassa formatos e o teste incessante do fotograma por segundo do mundo-imagem, para além da fórmula do entretenimento e da grife-arte. Por entre imagens download baixadas da cinematografia universal , acessível em cada casa, à volta do corpo-móbile das máquinas, e uma ida e outra às salas públicas, toda uma revisão do áudio-visual se impõe.

Alguns projetos se destacam em meio à profusão impensável de festivais, canais privês de filmes, passagens breves por lugares do mundo e desses lugares pelo local, redistribuído em olhar e modo-de-ser no presente (como bem poderia formular Bruno Latour[1] ao esquadrinhar a rede, a criação cotidiana e a socialidade, num mesmo movimento investigativo)

De modo pontual, pulsante, são redesenhadas as filmografias de muitos países orientais como eixo ativo de uma construtividade seminal compatível com a entrega ao registro da vida imediata, muito além do amoldamento a esquemas, gêneros e pactos prévios de produção (como vige regiamente no Brasil internacionalizado e imobilizado por padrões sociais de abordagem em cima de um tratamento world do localismo periférico). Sem planificação do atributo “asiático”, todo um cinema recente aponta para a relativização da arte de ver/narrar/fabular bem para fora do monopólio há poucas décadas observável ao redor do mainstream administrativo-empresarial que os estados das coisas nos States podiam servir como senha da visão (visão-de-mundo, inclusa).

EXTERIOR. MUNDO – Ou CADERNETA-MAQUETE – O cinema não se demarca como arte e atividade meramente técnica. Insurge-se contra o modelamento ao ajuste narracional entre a projeção e a recepção, entre ver e sequencializar. Nem se trata mais da estratégia de adesão a nichos, a localismos rentáveis ao sistema-mundo. Os filmes filipinos de Lav Diaz e Raya Martin, por exemplo, apontam para um sentido de corte com as circulações de forças presentes, não adstritos à demanda dos cidadãos-espectadores-consumidores. Especialmente, quando se busca uma imagem para as mutações de corpos, afetos e dos referenciais geopolíticos/territoriais, para o que envolve a duração no cotidiano mundializado, repercutido nos mais distantes lugares.

Não é por acaso que The Great Cinema Party, de Raya Martin, se imponha como flagrante insurgente da imaginação fílmica, nesse vazante 2012, por conta de seu interesse conjunto de produzir gênese e registro da contingência num só projeto. Justamente, quando se dispõe a captar uma festa mundial das imagens, mais o sentido heterodoxo do cinema se articula.

A partir da memorabilia ancorada em fontes impensadas sobre o lugar e os legados possíveis da história, o filme filipino engata a dimensão da epifania como horizonte de investigação. Arqueologia e imediaticidade acabam por criar um vínculo que a narrativa ultracinematográfica de Raya Martin persegue como o senso do mundo – de que um estudioso como o filósofo Jean-Luc Nancy trata à maneira de um empenho a um só tempo descentralizador do foco monolítico, autorecorrente, quanto propiciador da historicidade. Tudo (o sentido, o mundo, o movimento das imagens) se dá pela via de um contato desarmado, de um olhar capaz de baralhar espaços e temporalidades. Como se o cinema começasse a todo momento, desde um envolvimento direto com uma paisagem aparentemente momentânea, num clicar entre máquinas de alta definição e a massa corpórea sensorial do olho-homem posto em exame e incessante exercício.

O cinema se volta, em engendramento intempestivamente documental, sobre quem o faz. Ou como concebia Godard, só se assiste ao relato sobre a história de uma produção. De uma autoria/produção, frise-se, extensiva à fotogramática atualizadora de Glauber em outros, simultâneos, territórios, quanto mais o Brasil ganha o grão da imagem. Tornam-se essenciais ao fazer filme a filosofia, a psicanálise, a antropologia, a poética, a semiótica dos media, numa vasta cartografia espácio-temporal, podia vaticinar nosso cineasta até hoje onipresente, um pouco antes de morrer, numa entrevista ao Globo. Não se trata de um adestramento técnico ao que se chamava até certo tempo de “específico fílmico”.

Tal visão converge com a do cientista político camaronês Achille Mbembe[2] quando propõe na conjuntura pós-colonial um cosmopolitismo a partir da disseminação da África no planeta. Através de uma nítida ruptura com o círculo vicioso, ao infinito, do parricídio colonialista, Mbembe lança a possibilidade da transformação continental através da convivência entre irmãos, da vizinhança experimentada na vida material, dos elos comuns ativados para fora dos dualismos reprodutores de uma subserviência imorredoura contida na dialética senhor-escravo. Tudo o que se aferra a  uma estratégia regressiva, reivindicadora de uma depuração monologicamente atribuída às “fontes”, a uma idealizada origem, demarca muito claramente o modelamento ocidental da africanização. A posterioridade em relação ao dado colonial é que radicaliza, em novo solo tático, as formulações do autor de Pós-Colônia.

Confluente com Mbembe, já bradava Glauber sobre a urgência de um ato investigativo de pensamento, uma insurgência cultural desalinhada  do compromisso ideológico, partidário, ainda em alta por aqui. A imaginação política ganha relevo, em descarte da busca de um fundamento macrológico de ação e visão, mesmo quando se filma no continente-Brasil.

No Brasil, atua como radar do que se vive e se vê o monopólio da high-fiction serializada.  Para “todos os gostos” dos consumidores de bens simbólicos, entretidos com a espetacularização Avenida Brasil ou a TV-Globo como Arte através dos “projetos especiais” de Luis Fernando Carvalho, reeditado em 2012 com o tratamento cada vez mais clean do cinema-de-autor, dessa vez clipado da blackexploitation, em Suburbia.

Sob tal orbitação dominante do televisual, as produções cinematográficas, numa mecânica contraposição, se mostram devedoras ainda do ideário do cinema novo sob as mais diferentes acepções regionais (da mais recente Escola do Recife ao polo-plataforma Brasília). O que é bem contrário à prospecção e crise em estado contínuo promovidos pela passagem de Glauber desde Barravento pela Idade da Terra. Na contramarcha do que, também, mobilizava Reichenbach em estado crescente de desmontagem dos discursos em vigor sobre cinema e país, sob o andamento de uma erótica e de uma política, desde o ingresso na Boca do Lixo até a feminização e pluralidade do ABC.

Um foco social monolítico prepondera, sem investigação à altura da complexidade política e cultural que move nossos estados insulares ao redor de um eixo problemático em desmesura chamado Brasil, sem mais síntese dialética da história. Sem que possa haver, contudo, a demissão do dimensionamento histórico do fazer imagens, ficções e percursos narrativos numa voltagem confrontadora e relacional em nosso território fronteiriço, desmarcado já das pedras fundamentais, não mais simplesmente condutoras a portos seguros de documentação e a fábulas nacionalistas retomadas com olhos livres (como consta do “Manifesto Antropófago”). É mais do que hora de “devorar” o próprio império brasílico – tudo o que o colmata ao lado ou em negação dualista, dentro da ótica de um poder central – sob o influxo de sua polifonia e diversidade reais, atuais. A ideia-substância Brasil nos coloniza.

Filmes engrenados na apreensão panorâmica do Recife, como A febre do rato e O som ao redor, deixam de sustentar, no correr do tempo da película e de uma época multiconfigurada por diferentes fontes e campos de imagens/palavras/linguagens, as captações criativas da vida em comum, do coletivo cotidiano. Um sentido de revanchismo regionalizado, de catarse encadeada em endereçamento unidimensional, reduz a pulsação crítica de um sem-número de personagens emergentes dessa hora que passa em favor de um monotemático discursar contra os poderes (da polícia, das milícias montadas sob diversos uniformes, dos eclesiásticos, inclusive, como se vê em outro filme nordestino, o baiano O homem que não dormia, presa de igual previsibilidade).

Observável é o encaminhamento a um mesmo ponto-fixo oligárquico, mandatário, instituído de poder e contrafacção, como se o alcance de tal denúncia fosse alguma espécie de auge, quando é um ponto-de-partida já definido, mais do que conhecido por qualquer brasileiro desinteressado pelo pacto com visões seguras, nada provocadoras de criação e pensamento. Não surpreende a folhetinesca revelação final de que os seguranças e seu síndico-patrão são egressos da guerra de sangue travada pelo jaguncismo em terras ancestrais – tal como exibe o protocinema fotográfico na abertura de O som ao redor –, repercutidas agora em cerrado solo urbano.

Na mesma linha, há, em A febre do rato, uma espécie de cerzidura umbilical dos cortes e cicatrizes socioculturais, como mostra no final a imagem-da-mãe nas águas do tanque doméstico, represado ali tal qual um bolsão de sexualidades e encontros afetivos tomados no calor da hora, entre o fervor erótico-poético de uma comunidade insurreita e a reincidência raivosa das palavras-de-ordem, numa bem delimitada região placentária, autorremissiva. Firmam-se, em tal convergência, as tensões de O som ao redor, surgidas em um condomínio/bloco de imagens encapsuladas em uma questão regressiva, fundamental. Algo bem diverso de um corte genealógico, a busca do fundamento (embasada numa questão prévia, reconhecível desde o início) imobiliza os desdobramentos que atravessam o cerco de arame farpado da atuação política, da potência áudio-visual em mais de um modo de estar e ver, de maneira que se movam o estado presente das coisas, das vozes ao vivo e as imagens ao redor.

E o cinema, em volta, em mais de um lugar, mesmo aqui, vem se revelando como controversa tela capaz de dar a face global da atividade fílmica e do ativismo contemporâneo. Apreende as modulações variáveis, as mais microscópicas, colhidas na vida diária, em seus cumes e confrontações mais incisivos, para além das planificações nacionais e transnacionais dos transportes de som/imagem.com.

SuperNada, segundo longa de Rubens Rewald, se mantém, sem tese, no correr de sua metragem, na anotação do cotidiano de um ator anônimo.  Penetra na existência miúda dos habitantes da metrópole paulistana dentro de um tom menor radicalizado em todas as variações do jogo e da farsa.

Chega, assim, a documentar um espaço não só mental como social de uma nova e pequena classe-média subsistente em nossas grandes cidades, virtualizando um painel de projeções que passam por afetos/rituais de sexualidade, trabalho (melhor seria ver a mudança na idéia de “emprego”), família (o fim da família, seria melhor dizer), pelas potências da arte e do falso, entre a banalização diária e a mínima épica adotada gradativamente pelo filme.

Interessante é ver o fio de sutilidade criado por SuperNada a partir da matéria residual do dia-a-dia, vinda de uma tv ligada num canal aberto tipo z, sem efeito de zapping, de cine-técnica. O que há de pulsante na noção de cinema pobre, formulada por Comolli, ganha força para lá de qualquer filiação ou apologia. Provém da atenção concedida pelo realizador a uma concepção de experimentalismo nascida do embate com um universo tópico muito bem situado no contexto milenar, sintonizado com o ethos global. As filmografias dos chineses Jia e Hou, do coreano Hong Sang-Soo, do tailandês Kar-Wai (em seus melhores momentos), e, certamente, aquelas dos filipinos citados aos quais se acrescentariam John Torres e instantes de impacto do primeiro Brillante Mendoza, são testemunhais e, simultaneamente, inventivas no aporte de um estado das coisas e dos signos (para se dizer em compasso com Foucault). Imagens-signos-coisas timbrados por ambiência maquínica, economia transnacionalizada, culturas do corpo, comunitarismos heterogêneos, numa partilha pós-ideológica, pós-ocidental de afetos, bens imateriais e consciência planetária de convívio (poderia suplementar o filósofo brasileiro Peter Pal Pelbart).

Em outra via, Selton Mello dirige Sessão de terapia, um seriado-franquia, originalmente produzido pela TV israelense, adotando como cineasta – já celebrado por O palhaço – o foco centralizador televisivo, decisivo em nossa cultura, num continuum narrativo. Selton imprime na tela (que foi um dia chamada no diminutivo) de amplas proporções do ambiente doméstico um modo cinemático de sequencializar, de redistribuir as segmentações do audiovisual na atualidade.

Empolga assistir a um sentido experimentador do formato serial pelas mãos do extraordinário ator brasileiro – um cineasta-ator, tão fortemente quanto um cineasta-autor. Como que passando para o outro lado da tela que se revela obsedante para o pequeno ator/espectador do “lixo” televisivo” de Supernada, o diretor da versão nacional de Sessão de terapia incursiona pela estética do estúdio, do espaço interno/internalar da media-TV tornando-o uma extensão do consultório psi.

É todo um ludismo de espelhamentos, não ao acaso reconfigurador do cinema bergmaniano, que impregna de episódio a episódio o seriado.

Com um elenco primoroso tocado pela argúcia do ator Selton, Selma Egrei tem seu momento soberano como a terapeuta do psicanalista-protagonista para o qual todos os demais personagens convergem. Drª Dora permanece ali, no último dia da semana (Dora –sexta-feira, 19 h ) – que vem a ser o mesmo dia a que assistimos o segmento/sessão –, como uma referência confluente, “aranha-velha” a reinar sobre todo o processo, a realizar a súmula intrigante de todos os pacientes a contar do psicanalista central posto em análise.

O encerramento – a arte de cortar, de passar de um plano a outro como uma questão moral mobilizadora (JLGodard) – do seriado pôde revelar o altamente elaborado trato da telenovelização de certo cinema (o nacional, sem dúvida), da serialização dos streamings imagéticos em curso entre o fim e o início de uma nova arte do cinematismo. O analista Teo é capturado numa encruzilhada indesviável, que o coloca ao mesmo tempo atraído e interditado pelo desejo, por sua lei (um portal para Lacan), quanto mais parece cumprir os desígnios da ética da psicanálise. Uma teia de aranha, sem dúvida, que Doutora Dora observa à distância, mas na qual se vê enredada, tantalizada pelo psicanalista sob sua guarda: como um quarto escuro das imantações do desejo tomadas no fim de um percurso, no ápice de um tratamento, à maneira de uma cena aberta ao gozo – fogo do final, diria a poeta Ana C. –, indevassável, contudo. Poucos momentos do cinema brasileiro em 2012 chegaram nas franjas do take da TV cinemática de Selton na sequência em que o terapeuta vaga pelas ruas/luzes de São Paulo, ao ar livre, que é câmara cerrada de seu tributo à lei do desejo (Almodovar bem flagrava em seu melhor filme tal aporia, numa clave gozosa, bem-humorada e, também, trágica).

Enquanto Selma efetiva sua postura hierática, anteriormente ornamentada pelo cinema de Walter Hugo Khouri (chamado pejorativamente de Bergman dos Jardins), Selton investiga cada ruga, cada esgar de seu belo rosto, fazendo-o monumental quanto mais flagra-lhe a finitude e o traço composto de inquietude e vigilância (na figura da psicanalista de psicanalista, numa espiral de papéis e imagens do tempo).

Um estúdio de rostos em câmara analítica, então, se forma, através de desvãos de sentido/camadas superpostas de implicações interpessoais –

todo o desenvolvimento da série de sessão a sessão, de personagem a personagem. Tudo se efetiva à altura do entramado psicanalítico em pauta, com vários focos subjetivos, sociais e mesmo etários, levado a um ponto extremo e bem desdobrado de intelecção e encenação. Em alta (e) afetividade.

A TV reencena o cinema, enquanto o cine premiado se legitima, se faz legível por instituições, jornais e jornadas mundo afora. Cinema corrente, muitas vezes refém do esquema televisual, ainda que não traga atores reconhecíveis (e queira timbrar uma aura indie), com a logomarca Globo sobre a complexa globalidade em trânsito mais do que em trâmite. O cinema se refigura, intrigantemente, na televisão do ator/diretor Selton. Não seria outra dobra, outro episódio efetuado pela sessão-terapia da cultura serializada, dos fragmentos de cinema “baixados” e remontados ao léu, ao redor?


[1] LATOUR, Bruno. Reagregando o social. Uma introdução à teoria do ator-rede. Trad. Gilson Cesar Cardoso de Sousa. Salvador/Bauru: EDUFBA/EDUSC, 2012.

[2] MBEMBE, Achille. De la post-colonie. Essai sur l’imagination politique dans l’Afrique contemporaine. Paris: Karthala, 2000.

 

 

 

 

 

 

.

Mauricio Salles Vasconcelos é autor do ensaio Rimbaud da América e outras iluminações (2000), de Stereo (ficções), editado em 2002, e do romance Ela não fuma mais maconha (2011). Publicou os livros de poesia Sonos curtos (1992), Tesouro transparente (1985) e Lembrança arranhada (1980). Dirigiu, entre outros videos, Ocidentes (2001), tendo por base seu livro-poema Ocidentes dum sentimental (1998), uma recriação de “O sentimento dum ocidental”, de Cesário Verde. Inéditos: Brasileira (romance); as narrativas de Alguém, Augusta (Garotas); Espiral Terra – Poéticas contemporâneas de língua portuguesa (ensaio) e Giro Noite Cinema – Guy Debord (video). Carioca, vive em São Paulo. E-mail: vasconcelosmauricio@hotmail.com

 




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook