CRACK, METONÍMIA
O crack se alastra não apenas como vício. É reiterado de um modo surpreendente para fora do esquadro da marginalidade e da indigência onde parece se concentrar socialmente. No arrasto dessa ponta-mix refinada da coca ou misturada a partir de uma pasta-base, não se assiste apenas ao grupo urbano deambulatório sem-residência. Vem um excesso à altura do rumor das pedras que se queimam: cal, cimento, acetona, soda cáustica (a depender do valor pago). Entre o fumo e a aspiração do comprensado tóxico de tudo que rola no tráfico onipresente. O foco se propaga entre a lavagem-de-dinheiro em que se reproduz, mas também, se dissolve o capital em ações crescentes, difundidas em todos os setores produtivos, e a cidade pós-industrial onde um bando fundou um enclave no centro do que seria a arquitetura, o móbile-modelo de um site contemporâneo para SP.
O crack dimensiona um conjunto de tráfico e tráfego. Desde que o desmonte da Crackolândia, em janeiro último, marcou data, estabeleceu marco, só se contempla um vazamento de fatores anteriormente lançados a uma miséria atribuída de forma distante, invisível, ao circuito vicioso do “social”. Algo capitaneado, nos últimos dias, pelo tratamento de uma erradicação do composto fatalista de inferno psi e sufoco da vida real. Os discursos se emparedam diante de um corpo irrefreável de hospedeiros da droga, até então locados na zona central em ruína, agora deambulante, incisivamente espalhado em novos polos do que pode ser a cidade.
De um lado, a programação imobiliária desenha um plano entramado pelos percursos previsíveis da administração pública e do localismo mais fisiológico da política. Por outra via, o assistencialismo ganha visibilidade e computa resultados, no mesmo momento em que a circulação do crack toma contornos fora da lógica do controle. A droga-limite continua a vazar. Expõe mais do que antes sua cena exterior. Não refuga mais o ponto escaldante, metálico, do ser ao vivo impossibilitado de produzir delírio para além da demarcação miserável que o crack parece conter. Todo um corpus é tragado em volta do cachimbo de alumínio e tóxico residual.
Quando detidos, os cracos exibem o paradoxo do confronto perante a lei, obrigados que são ao encarceramento, mesmo sendo réus primários e com pouca droga nas mãos, pelo fato de não possuírem comprovante de residência. Outros casos apontam para o desinteresse por moradia tendo-se em mira a manutenção do vício. E por conta deste – do atrito infindável das pedras no fogo, em jogo –, a subsistência impõe as ruas (não necessariamente na órbita da Cracolândia, fantasma depois do nome, depois de cada homem possuído pela droga e pelo regime subsequente formado por operação-limpeza, serviço de cura e mais tráfico, em outra camada subterrânea, subjacente).
Temos de fumar andando, é o mote do usuário vigiado por policiais que presidem a dissolução da Cidade-Crack. Uma extensão de componentes contíguos, simultâneos, sem síntese sem trainspotting, mostra mais do que nunca sua mistura indiscriminada de elementos colhidos na tópica circundante, envolvendo urbanismo, globalidade e o acesso a consumo/crédito viabilizado pela política brasileira às classes mais despossuídas.
Enquanto raia o minuto pleno, laminado, da orbitação ao ar livre, se articula a face real, vivenciada por cada-um (incluído o mais avesso ao efeito-crack), de um todo capturável tão-somente de modo imaterial, reincidentemente sem endereço, nem endereçamento. Uma pertença vagueante, em vigor, faz-se adjacente ao uso e à economia da droga, diferentemente daquelas dadas em relax – recursivas da terra, do naturalismo (como a usual, ubíqua maconha) – ou em alta taxa de produtividade tanto pessoal quanto empresarial (lady coca). Declara seu traço de lugar (público, deâmbulo). Quanto mais se direciona ao ar livre uma conjunção espacial contamina seu desejo/ intransferível/ devaneio.
Não constitui metáfora, no compósito dado em compressão, a pedra compactada. Fica sem reunir ali, nos meandros urbanos, no ar de uma época, o vestígio agônico do socius em cada tragada cada vez bem dentro, a cada segundo mais aditivada pelo que está fora. Impraticável de ser fruído de modo solitário, contemplativo – fruto que é da fuga, da fomentação mais efêmera –, o crack deixa de se encaminhar, no entanto, para um ponto de pouso, um locus favorável à reunião, à formação continuada de um gueto.
Como bem sublinha Avital Ronell, em seu indispensável Crack Wars, apenas com o surgimento desta droga a guerra contra todas as outras tomou um dimensionamento logístico, conduzindo ao que a filósofa chama de “abertura do horizonte apocalíptico da política das drogas” (Ronell, 1992: 18.19). Tal combate ganha alcance de totalização, sob a forma montada de uma operação, por conta desse vício circulante, traçado nas franjas da rua. Em sua orla, assoma a adjacência, o lado sempre anexo, dobrado sobre sua condição parcelar, desprovida de sustentação para além dos pontos barrados que a delimitam como uma espécie de síndrome societal. Não há tempo para a duração do efeito, já que o delírio se difunde tragando tudo de um só átimo, feito um poder de posse que logo encapsula a intensificação da morte num corpo vagante. O espaço, sim, ganha o primeiro plano, justo onde se movem sombras humanas e miríades do pó de todas as coisas, no exato instante do brilho e da dissolução da viagem e sua economia subreptícia, mais que concreta, erguida no centro da cidade-soma de nossos modernismos.
Tudo já vem disperso em sua origem envenenada, e se mantém assim na mescla generalizada de seus desbaratados aditivos – o abrigo possível é ruína, não entoca ninguém. Quanto mais perigoso se revela seu consumo mais passíveis de seus usuários serem jogados “pra fora” (em nome da assistência, do controle dirigido pela observância policial, engatada num Procedimento a transbordar toda logística progressivo-linear que se traça no rastro da “coisa” e de seus cacos/cracos ao vivo). Não se sabe sobre a necessária e mais que urgente reconfiguração do centro paulistano para além desse despovoamento operacional, embasado em salvaguarda.
Inexiste um transporte (na etimologia da figura-metáfora) rumo a um campo unificado, agregador de sinais e elementos díspares em combustão, uma vez (e mais outra num encadeamento gradativo e desagregador para quem o segue) que sua parte-todo já vem detonada. E continua a acentuar um mecanismo dilacerador, acoplado à ingestão e à operação erradicadora, não à toa contido na palavra crack.
Homófona de craque, em sua veiculação vernacular, o vocábulo personifica um ponto-de-voz para o chamamento de oferta e a dissolução daquele que fala e aspira sua parte na pedra giratória do lucro agarrada à mesma face em que o despedaçamento do entorno se torna mais intenso. Torna mais urgente a adição/aditivação. Na real, uma subtração do sujeito/cidadão do centro/craque do negócio em fluxo, na onda aberta por um vício muito bem situado. Sitiado, de vera, no local onde habita e hospeda o elemento devastador.
Crack: Quebrar a um só tempo o movimento do que chega ao topo (dinheiro momentâneo do tráfico imediato, ladeado por sua instalação urbana no centro de ganhos, no momento histórico em que o englobante mundializador do livre trânsito comercial repercute em todas as esferas e locais do glomus/aglomerado/conglomerado econômico). Entre o rachar e o corte em seu ápice, a palavra passe par tout do social pode se traduzir como partilhar.
Sem outro horizonte humano, metropolitano, senão trafegar sob efeito da suspensão da cidadela do crack, cada passante circula no espaço-tempo coetâneo das ocupações propagadas pelo mundo desde 2011, inclusive no Vale do Anhangabaú, de uma forma pontual, despotencializada, porém, por seus vizinhos distantes/próximos e pelos comentaristas da imprensa com base numa flagrante “descontextualização” do ato. Enquanto o crack se alastra, não apenas como vício, deixa superexposto o chamado a uma dimensão integral da cidadania (termo oficializado, operacionalizado para fins discursivos e orçamentários dos projetos mais variados). Há uma materialidade do ser cidadão/citadino no transitar pelo território com sua, viva, cruzada topologia. O transporte ocorre para aqui mesmo, com seus pontos incidentes, proliferados.
O que se injeta, também se dissemina na vida imediata do habitante da cidade (no apagamento de dentro e fora da rua). Não ao acaso, o vício, reiterado em vários segmentos – setores – de informação e disciplina, toma as páginas e as palavras cabíveis a Costumes Cotidiano Geopolítica Cultura Global Lazer. Partilha-se do efeito do crack como satelização de um universo variável, em troca, entre seus mínimos componentes.
Diferentes signos e domínios em compartilhamento deixam à mostra o fio-terra de uma situação coletiva e mundial de desabrigo no centro das cidades. Bloco errante exterioriza a pedra de rua compacta. Adstrito conexo cohabitado,
Crack, um lastro.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
RONELL, Avital. Crack Wars. Literature. Addiction. Mania.
Lincoln/Londres: University of Nebraska Press, 1992.
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Mauricio Salles Vasconcelos é autor do ensaio Rimbaud da América e outras iluminações (2000), de Stereo (ficções), editado em 2002, e do romance Ela não fuma mais maconha (2011). Publicou os livros de poesia Sonos curtos (1992), Tesouro transparente (1985) e Lembrança arranhada (1980). Dirigiu, entre outros videos, Ocidentes (2001), tendo por base seu livro-poema Ocidentes dum sentimental (1998), uma recriação de “O sentimento dum ocidental”, de Cesário Verde. Inéditos: Brasileira (romance); as narrativas de Alguém, Augusta (Garotas); Espiral Terra – Poéticas contemporâneas de língua portuguesa (ensaio) e Giro Noite Cinema – Guy Debord (video). Carioca, vive em São Paulo. E-mail: vasconcelosmauricio@hotmail.com
6 maio, 2012 as 13:00