Machado de Assis, ‘plagiário’…
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Outrora, vez por outra; agora, parece repetir-se – ao mesmo tempo tema de diálogos com estudiosos literários [dias atrás os mantive, com interlocutores acadêmicos na Inglaterra] – ressurge, qual uma ‘sombra das cinzas’, um assunto ou tópico que se não for devidamente esclarecido e repelido acaba tornando-se recorrente na apreciação da obra de Machado de Assis: o propalado (discutível) ‘plágio literário’ que ele teria praticado em algumas de suas produções. [N. Editor: sobre livro que analisa plágios de Machado, veja aqui e acolá.]
Para começo de conversa, ‘plágio’ – com ou sem aspas – é inerente ao próprio modus operandi do fazer literatura, comum a todo escritor, antes de tudo um leitor, já se consensualizou, no sentido de apropriação de temas e de formas, estilos, linguagens, de uns por outros, apropriação (consentida, benfazeja, alvissareira – digo eu) de resto inserida, integrada e abrigada sob o moderno conceito de intertextualidade, a legitimar ‘saques’ de um autor a outro – sob a noção comparatista do Outro, projeção simbólica do conjunto variado de autores, interlocutores privilegiados, com os quais um escritor dialoga e intertextualiza em sua obra e de quem retira referências – sem constituir desdouro nenhum: praticada no melhor de sua concepção teórica e prática e em sua essência, como ninguém na literatura brasileira oitocentista, por Machado (reitero e não refugo sustentar, em artigos, palestras, na obra ora finalizada “A formação literária de Machado de Assis: fontes para biografia literária” – ainda sem editor).
O trabalho permanente de citação, alusão e recriação de um elenco imenso de referências e modelos oriundos de várias latitudes culturais e geográficas perpetrado por Machado de Assis implica em apropriações – nunca ‘plágios’ [sic] – se dão efetiva e concretamente, em especial com obras, textos e autores estrangeiros, com os quais estabeleceu relações, diálogos, interações e interatividades, por eles influenciado e formado, incorporando-os em seus escritos, com eles recriando e redimensionando intertextualidades, poucas vezes anotadas na historiografia literária, e que constituíram-se em sólidos alicerces de sua formação literária e intelectual.
Só que… neste particular (qual antecipador da antropofagia modernista de 1922 : reporte-se a Oswald de Andrade et allii), Machado assimilou-os, ‘deglutiu-os’, ‘digeriu-os’ e os incorporou à sua obra, sua escrita e sua linguagem literária, dotando estas ao mesmo tempo (como sabemos) de brasilidade e universalidade, de localismo e universalismo – binômio sempre presente e atuante em sua obra.
E nessa apropriação ‘antropofágica’ de autores e obras, quer brasileiros quer estrangeiros, Machado redimensionou a antiga técnica do aemulatio, em seu mais lídimo sentido, o de definir e passar a ter autores como mestres (os denominados auctoritas), retomando-a e atualizando-a com outras implicações e injunções, inclusive sob os modernos conceitos de intertextualidade.
Em Machado, o aemulatio, simbiose do imitatio e do creatio – imitatio que não pode, em hipótese alguma, ser tratado como plágio ou cópia: até porque tem vínculo com o creatio, e no caso de Machado com o recriar – revela-se e se expressa do mesmo modo em sua atividade de notável, esmerado tradutor (a merecer estudo à parte) – muito da suposição de plagiário encontra-se embutida e condicionada à sua atividade de tradutor.
A tradução ocupa um período bastante longo na carreira de Machado: o pesquisador e ensaísta Jean-Michel Massa relaciona entre os textos traduzidos por Machado entre 1856 e 1894: 24 poemas, 19 peças de teatro, 3 ensaios, 2 romances, 1 conto, 1 fábula e até 1 canção – sendo 39 textos oriundos do francês, 4 do inglês, 3 do alemão, 1 texto cada do italiano e do espanhol – de autores como Lamartine, Dante Alighieri, Alexandre Dumas Filho, Chateaubriand, Racine, La Fontaine, Alfred de Musset, Molière, Victor Hugo, Beaumarchais, Shakespeare, Charles Dickens, Edgar Allan Poe, Schiller e Heine (estes, até meados da década de 1880 – quando Machado começou a aprender alemão – a partir de versões francesas).
Machado em sua ação tradutória não compartilhava com seus contemporâneos “o entendimento de cor local, no sentido dado pelo Romantismo”, colocando-se em discordância com o momento cultural do País no século XIX. E ia além, criando e praticando um conceito da tradução – na verdade, um processo criador – que, entre outros aspectos, incorporava em maior ou menor grau sua célebre “teoria do molho” , segundo a qual “pode ir buscar a especiaria alheia, mas há de ser para temperá-la com o molho de sua fábrica”: vale dizer, embora bebesse nas fontes européias utilizadas como ‘comida para seus pensamentos’, ruminava os diversos ‘alimentos’ e os transformava em pratos tipicamente machadianos, pois tirava de cada coisa uma parte e fazia o seu ideal de arte, praticado, reaplicado e reutilizado numa perspectiva de comparatismo e de tradução que consubstanciava no termo “transcriação”.
Como tradutor e crítico-teórico do traduzir, desde o início de sua carreira literária percebeu como nenhum de seus contemporâneos a importância do papel da tradução como geradora e incentivadora do ‘diálogo’ entre textos, ou ‘diálogo entre literaturas’, como propiciadora da hoje extremamente citada e difundida intertextualidade – antecipador de contemporâneos e modernos conceitos e práticas de comparatismo na Teoria Literária e de Literatura Comparada).
Uma citação do próprio Machado de Assis serve para demonstrar o quanto seus pressupostos teóricos e práticos para o exercício da tradução, formulados na época, aproximam-se de muitos dos conceitos contemporâneos e modernos de comparatismo na Teoria Literária e de Literatura Comparada: A literatura, como Proteu, troca de formas, e nisso está a condição de sua vitalidade.
Muito da suposição de plagiário imputada a Machado de Assis encontra-se embutida e condicionada à sua atividade de tradutor. Suposição inexoravelmente diluída pelas ‘antropofagia literária’, emulação, ‘teoria do molho’, ‘transcriação’: tudo, a rigor, resume-se em saber, mapear e avaliar como Machado lidava com suas fontes.
Com essa bagagem instrumental, Machado de Assis apropriou-se de textos, obras e autores que contribuíram decisivamente para sua formação literária e intelectual e os transferiu, ‘transplantou’ (o termo adequado é este), em dinâmico jogo de incidências e confluências, aos leitores, informando-os e formando-os: grande, esmerado leitor, foi grande, esmerado formador de leitores, de seu tempo, dos períodos sequentes, de hoje, de sempre.
A formação intelectual e as constituição, produção e vida literárias machadianas – processadas e realizadas, mister observar, paralela e concomitantemente a notórias e inevitáveis referências brasileiras ( foi o primeiro e único, em sua época, a referenciar, aludir e refletir sobre os escritores nacionais seus contemporâneos) – deu-se de modo e escala precípuos sob a órbita, égide e approach de influências e orientações estrangeiras, a saber, franceses, portugueses, ingleses, alemães, gregos, latinos, espanhóis e italianos – notadamente (como sempre enfatizo e difundo, mormente em meu estudo “Machado de Assis e os portugueses”, a ser livro, no Brasil e em Portugal – também ainda sem editor) os portugueses, de marcante relevância, por seus autores e obras lidos e consultados por Machado, aqueles que com ele conviveram no Rio de Janeiro, aqueles intensamente citados, referenciados em sua obra, absolutamente decisivos na vida, quer pessoal, social e conjugal, quer intelectual, em suas formação e constituição literárias e em sua obra, na edificação de sua linguagem, sua escrita e estilo narrativo, e em seu embasamento político-ideológico-filosófico.
Na seara particular que une Machado de Assis aos portugueses, a se registrar e mencionar dois casos específicos, ou duas influências marcantes, que pontuam as injunções de apropriação literária: Almeida Garret e Camilo Castelo Branco.
Com o “Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa”, de 1827, estudo fundamental para a história da literatura no Brasil, a apontar caminhos da emancipação literária (égide do movimento deflagrado na década de 1830 por Gonçalves de Magalhães e José de Alencar, em prol de um “nacionalismo literário brasileiro”), Garret – além da acentuada influência temática e estilística na poética machadiana e sua obra Viagens da minha terra como uma das peças que moldaram, no teor da sátira menipeica-luciânica a inflexão machadiana no início da década de 1880 – inspirou Machado de Assis nas reflexões acerca da literatura brasileira, expressas nos ensaios “O passado, o presente e o futuro da literatura brasileira” (1858), “Instinto de nacionalidade” (1873) e “A nova geração” (1879).
No “Bosquejo”, encontram-se formulações marcantes nas historiografias literárias portuguesa e brasileira, formulações com as quais Machado de Assis estaria explicitamente dialogando em seus ensaios – entre elas aquelas voltadas para o “nacional”; a estreita interligação entre a língua, enquanto matéria-prima da própria literatura, e a literatura; as reflexões acerca do universalismo clássico vis a vis o “caráter próprio”, a “nacionalidade” da literatura; as referências, condenatórias, ao pendor excessivo de traduzir obras estrangeiras, sem considerar e praticar a “imitação” (no sentido bastante específico do termo), a emulação – e não simplesmente cópia.
Com Camilo Castelo Branco são fortes e explícitas afinidades e semelhanças, um compartilhar de elementos estéticos e estilísticos, que inspiraram Machado em certos recursos narrativos, como as digressões metaliterárias, as interferências do narrador em diálogo com o leitor, o uso da ironia – apontados elementos da novela Coração, cabeça e estômago, de Camilo, em Memórias póstumas de Brás Cubas – similaridades de enredo, citações comuns a um e outro, o pessimismo realista da prosa de ambos, Machado valendo-se de referências literárias na prosa de Camilo como fontes primeiras, antes de ir aos originais que transfigurou.
A pesquisadora e ensaísta Marta de Senna [cá estou eu também a praticar, no melhor estilo, saques intertextuais] aponta, no estudo “O silêncio do Bruxo: Machado de Assis e Camilo Castelo Branco”, certos elementos pontuais entre obras de um e de outro: a “inclítita Ulisseia”, no romance de Camilo A queda de um anjo (1886), apropriado por Machado no Memorial de Aires (1908); o assunto tratado por Tito Lívio e por Alfieri, no conto machadiano “Virginius” (1864), antes disseminado por Camilo em Coração, cabeça, estômago (1862); o caso de Dante em Francesca da Rimini, citado por Camilo em Amor de salvação (1864), lembrado pelo narrador de Dom Casmurro (1899); a referência por Machado acerca dos andrajos com que querem vestir os poetas, feitos maltrapilhos, no conto “Aurora sem dia” (1873), reportando a Camilo em Romance de um homem rico (1861); o “emplasto Brás Cubas”, no romance de Machado, derivado do “antídoto Silvestre da Silva”, em Coração, cabeça, estômago – ambos contra a melancolia.
Interessante observar que, malgrado a relevante influência, Almeida Garret e Camilo Castelo Branco aparecem nas citações e alusões feitas por Machado de Assis em respectivamente 22 e 20 vezes (conforme meu estudo “A formação literária de Machado de Assis: fontes para biografia literária”) – escalas bastante inferiores à marca, por exemplo, do também luso Camões (57): seriam, ambos, Garret e Camilo, objetos da denominada “leitura subterrânea e obliqua” (o termo é da pesquisadora e ensaísta Marta de Senna), a escamotear e camuflar propositadamente do leitor sob o que Harold Bloom define como “angústia da influência” [anguish of influence].
Que se derrubem dúvidas ou ruminações acerca de ‘plágios’, e as abandone-se de vez… Em Machado de Assis, todo o recolher, assimilar e incorporar de autores, obras e textos de outras nacionalidades, devidamente ‘deglutidos’, comungado com a incorporação de referências brasileiras, assimilando-os à sua formação e produção literárias, conforme os mais lídimos conceitos de intertextualidade, alicerçaram sua formação literária e intelectual, em decorrência sua notável ação informativa e formativa de leitores, de seu tempo, dos períodos sequentes, de hoje, de sempre, e constitui-se inquestionavelmente nos sólidos alicerce e vetor de sua obra literária.
Inclusive – e aqui um tópico relevantemente revelador, talvez pela primeira vez posto em texto dado a público, presumivelmente inédito até então nos estudos machadianos e de literatura brasileira (e que a eles sugiro incorporar doravante), mote e leitmotiv para adequadas reflexões e interpretações – no que tange à sua “obra invisível”, ou subjacente [desenvolvo estudo a respeito, para efeito de amplo conhecimento público], justamente construída pelo conjunto de suas citações, alusões e referências contraposta à ‘obra visível’, sobrejacente, sobejamente conhecida e amplamente difundida, publicada, estudada: uma e outra, ambas, igualmente grandiosas em Machado de Assis.
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Mauro Rosso é pesquisador de literatura brasileira, ensaísta, escritor; autor, entre outros livros, de Contos de Machado de Assis: relicários e raisonnés (2008), Machado de Assis, crônicas: “A+B” e “Gazeta de Holanda” (2011), Inéditos de Machado de Assis (ABL-2014); e-books Machado de Assis: contos de mulher (KDP Amazon, 2014), As estranhas fantasias de Eleazar (Nuvem de Livros, 2014), co-organizador (c\Gustavo Franco) da coletânea Machado de Assis e a economia:o olhar oblíquo do acionista (2007). E-mail: rosso.mauro@gmail.com

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