Jornalismo cultural



UMAS PALAVRINHAS SOBRE TUDO ISSO
Por Jotabê Medeiros

 

Oscar Wilde escreveu que a diferença entre a literatura e o jornalismo é que a literatura ninguém a lê, e o jornalismo é ilegível.

Como todo mundo saudável & gaiato, adoro as boutades de Wilde, mas tenho grandes razões para discordar disso que ele disse. É desculpável: foi há muito tempo. Mas se a literatura ninguém a lê, como é que o Quixote é tão influente ainda hoje? E por que tantos poetas ainda emulam Whitman? Como é que tanta gente se armou contra os Versos Satânicos?

E se o jornalismo é cronicamente ilegível, então como se explicaria a delícia & o espanto que é ler Deus Salve a Rainha e evite engarrafamentos Anseios de Jornalismo Cultural, coleção de artigos, ensaios, críticas, reportagens e dossiês culturais de Ademir Assunção, publicados entre 1985 e 2007?

Vivemos um tempo em que publicar vulgarizou-se. Publicam-se livros apenas para dar “lustro” ao personalismo, criando-se âncoras de prestígio. Editar virou uma ação de marketing. Os jornalistas criam correntes de ações entre amigos — o editor de uma revista publica algo, seu subordinado escreve sobre aquele algo, seus articulistas (que são também jurados daquele conhecido prêmio literário) o premiam. Isso é péssimo, porque fragiliza ou exclui as verdadeiras forças criativas, e premia a mediocridade.

Prefiro acreditar que haja uma força dinâmica inerente ao ato de escrever e de publicar, algo tão misterioso e incendiário que (ainda hoje) pode, por vezes, encantar e assombrar.

Assunção cultiva essa força com rara e dolorosa integridade. Digo dolorosa porque ele se dispõe sempre a selecionar, a escolher, o que pressupõe coragem de dizer não. A mediocridade segrega quem se nega a participar do seu jogo.

O filósofo uruguaio Eduardo Subirats escreveu algo revelador sobre isso tudo: “Neste mundo da democracia comunicativa, quanto mais informação houver sobre cada coisa, melhor. Não há possibilidade alguma que se produza uma síntese, nem se compreenda um processo. É a censura ao avesso: não proíbem que se diga nada. O que conseguiram é fazer com que tudo que se diz se perca na insignificância”.

Daí a alegria de ver que alguém se preocupa em escrever coisas que não se percam na insignificância. Ademir buscou isso nos últimos 25 anos como jornalista de cultura, seja em seu trabalho na Folha de S. Paulo, na Folha de Londrina (onde o conheci), no Estado de S. Paulo, na revista Marie Claire, na revista Somtrês.  Dessa jornada, ele nos traz textos sobre Will Eisner, Bram Stoker, Lou Reed, Laurie Anderson, Gil, Jim Morrison, Itamar Assumpção, Leminski, Tom Waits, Tom Zé, Mário Bortolotto, Mário Quintana, Yukio Mishima, John Lydon, entre outros.

O Brasil é exposto a um olhar de rastreamento, de depuração. Um olhar inimigo da elitização, um olhar que emparelha Cego Aderaldo com Mário de Andrade. Ademir vai longe: do Mosteiro Zen Morro da Vargem (uma montanha aconchegante no meio da Mata Atlântica, no Espírito Santo), a uma rede num barco batizado como Cisne Branco, de Belém do Pará a Manaus, pelo rio Amazonas.

Não pára. Vai cada vez mais longe: visita o último brasileiro na última fronteira do País, um artista de restos que vive a apenas 100 passos do Uruguai, Hamilton Coelho. Faz uma viagem no ônibus dos Titãs nos tempos de Tudo ao Mesmo Tempo Agora, com uma maleta cheia de teoremas, koans zen, chistes, gags.

Principalmente, Ademir mostra aos recém-chegados ao mundo do jornalismo cultural, para quem não há hoje outra literatura específica que não a dos rufiões e farsantes, que a experiência pessoal é a base de toda boa reportagem. É preciso fugir das fórmulas, dos especialistas arrogantes, dos donos da verdade. Desaprender para aprender. Ademir banca os custos de sua opção: um esforço concentrado para entender Godard, o devastador de mitos; um esforço de grande fôlego para trazer Paulo Leminski a uma compreensão desopilada.

As armas? Ademir esgrime com reportagem, crítica, crônica, ensaio, às vezes com algum gênero híbrido. “Não há saídas, só ruas, viadutos e avenidas”, como disse Itamar Assumpção. Quando critica, ele mostra que não é preciso adotar aquela atitude fascista de “se você não gosta do que eu gosto é um estúpido”. O principal é aprender a distinguir entre o artista que busca alargar as fronteiras da linguagem e da percepção e aquele que só dá lustro nos sapatos da tradição.

Muito se fala em “jornalismo literário”, como se a segunda condição tornasse a primeira mais nobre, e como se a primeira ajudasse a segunda a se tornar mais “popular”, coloquial. Não parece algo que tire o sono de Ademir Assunção: ele não concebe a escrita a partir de um cânone, de uma idealização, de uma vontade externa, mas de sua própria inquietação. Ele também não teme a verdade — e ele a busca em qualquer lugar, seja no morro com Bezerra da Silva, seja caminhando pelas ruas de Porto Alegre a bordo de Mário Quintana.

Ademir também escreve ficção, e os pressupostos — não as ferramentas — são parecidos com os de seu jornalismo. Em janeiro de 2004, com Adorável Criatura Frankenstein, esculachava os ritos de legitimação de ídolos, marqueteiros, intelectuais e modelos-atrizes-apresentadoras do circo midiático brasileiro. Ele parece crer que a literatura (e também o jornalismo) age no mundo, muda o mundo e não está aí para fixar ou cristalizar as convicções, mas para sacudi-las, abalá-las, estremecer a árvore dos fetiches.

O poeta beatnik Gary Snyder disse, certa vez, que a poesia é como um grande corvo sentado num fio de alta tensão, entre dois postes. “Ninguém presta atenção nela, mas ela vê tudo.” O jornalismo cultural praticado pelo Ademir é como aquele corvo do Snyder. Está lá, em todos os fios, com seu olhar escrutador. Os farsantes vão ficando pelos meio-fios. Assunção vai enchendo todos os fios.

 

Jotabê Medeiros é repórter especial do Caderno 2 de O Estado de São Paulo

 

***

Confira um trecho bem generoso do livro:

 

SUBINDO O AMAZONAS NUMA GAIOLA MUITO LOUCA

 

“I don’t Amazonas. Don’t Amazonas. I sergipano and este é my friend. Conheci now. Now, agora”, diz um negro baixinho, troncudo, sorriso simpático no rosto redondo. “Yeah, my friend. Amazônia is beautiful”, retruca o australiano magro e branquelo. Enquanto os dois tentam levar adiante a conversa, misturando um inglês macarrônico, portunhol e muita mímica, o barco Cisne Branco afasta-se lentamente do cais de Belém do Pará, avançando a todo vapor (o que significa uns 20 km por hora) pela imensa baía do Guajará, com destino a Manaus. São 1.600 quilômetros separando um porto do outro. Cinco dias e cinco noites de viagem pelo maior rio navegável do mundo, o lendário Amazonas — uma gigantesca estrada de água, por onde circulam milhares de embarcações, transportando madeira, automóveis, alimentos e passageiros.

Blake Pendlebury, o australiano, tem 19 anos, é estudante e está viajando pela América do Sul com o amigo Ben Jackson. Naquela base: mochila nas costas e poucos dólares no bolso. O sergipano Edmilson Batista dos Santos, 22, vai a Manaus buscar uma bicicleta. Há dois anos está pedalando pelo Brasil, de norte a sul. Em Brasília, sua Splendid Two Hard foi roubada. Por isso tomou o barco: na capital amazonense, uma outra magrela o espera. Cortesia da fábrica que patrocina sua epopéia ciclística.

Com Blake e Edmilson viajam outras quase 300 pessoas no Cisne Branco, entre homens, mulheres e até crianças de colo. Dormem em redes amarradas nas vigas de ferro do convés, enfileiradas lado a lado, acima, abaixo, à esquerda, à direita. Há todo tipo de gente: garimpeiros falidos em busca de um novo Eldorado, casais em lua-de-mel, evangélicos que seguem o chamado de Cristo para catequizar novas ovelhas, aventureiros com muitos planos de viagem e pouco dinheiro no bolso, estrangeiros em visita ao “pulmão verde do planeta”, ou simplesmente famílias que vão visitar parentes rio acima.

Navegando contra a correnteza pela noite estrelada, pouco a pouco o barco vai ganhando feições de um caótico e divertido bazar persa. Em pé, ao lado de sua rede, o pastor da Assembléia de Deus Rafael Testa lê passagens da Bíblia e canta hinos de louvor a Deus. No pavimento superior os alto-falantes do pequeno bar entoam Raul Seixas a todo volume: “O diabo é o pai do rock / O diabo é o pai do rock / Enquanto Freud explica, o diabo dá o toque”” Em uma das mesas espalhadas diante do bar, o subtenente do Exército José Pinheiro Lopes, 52 anos, conta que há alguns meses um livro apareceu misteriosamente em sua escrivaninha.

— Não sei explicar como ele foi parar lá. Só sei que narra como as almas pecadoras são punidas no inferno. O pecado mais leve, que não tem quase castigo, é numa praia, onde as almas estão todas nuas. Tudo em silêncio. Você já viu um silêncio que você sente um barulho no ouvido? Tanto silêncio que faz tiiiiiimmmmmmmm no ouvido da gente? Assim diz o livro.

— Que livro é esse, tenente?

O Inferno.

— Quem escreveu?

— Dante. É um livro que só tem em São Paulo. Está escrito bem na capa: O Inferno. Dante.

— Dante Alighieri?

— Esse mesmo. Você conhece?, pergunta, com ar de espanto.

— Conheço.

O subtenente continua me olhando com espanto, quase incredulidade.

— Mas o senhor achou um livro fácil de entender?

— É, é em português. É fácil de entender mesmo. Tem ilustração — diz, com uma estrondosa gargalhada.

Não há muito o que fazer no barco, a não ser conversar. Ao passar das horas e dos dias, as histórias vão se misturando. E elas são muitas, às vezes trágicas, às vezes divertidas, mas sempre longas e cheias de aventuras.

 

 

A loira fujona

 

Esticada em sua rede no porão, ao lado de sacos de batatas e cachos de bananas, Lucinete Silva Ferreira, 20 anos, tem olhos azuis tristes e um braço enfaixado. Linda, voz macia, conta que está fugindo do noivo, Roberto. Há duas semanas ele tentou matá-la. “Foi ciúme. Me empurrou do carro em movimento. Sorte que não estava correndo muito. Só machuquei o braço e a coxa.”

Falando baixo, com o ruído dos motores quase encobrindo suas palavras, ela conta que trabalhava em um salão de cabeleireiro em Belém, muito freqüentado por homens. O noivo fervia de ciúme. Chegou a proibi-la de continuar na profissão, sem resultados. Mas conseguiu convencê-la a abandonar seu grande sonho. “Eu fotografava para revistas alternativas. Era modelo, ou pelo menos poderia ser. Até fui convidada por um fotógrafo de Belém para posar nua para a Playboy.” Do fotógrafo, só lembra o primeiro nome: Gerson. Da recusa, guarda um profundo arrependimento: “Roberto não deixou. Eu tinha certeza de que poderia ganhar muito dinheiro e subir na profissão. Já tinha feito umas fotos de biquíni, com a camisa molhada, sem sutiã. Fui obrigada a queimar tudo.”

Sem que ninguém suspeitasse, o romance que quase termina em tragédia despertava terrível ciúme também na empregada que morava no quarto dos fundos. Na surdina, ela botava mais lenha na fogueira do noivo ciumento. “Ela dizia para o Roberto que um rapaz viera me trazer de carro em casa. Fofocas desse tipo. Quando resolvi romper definitivamente o noivado, ela disse para uma amiga que o seu grande sonho estava enfim se realizando.”

O que Lucinete nem sequer imaginava é que a empregada agia por paixão. Não pelo noivo, mas pela noiva. “Ela teve a coragem de dizer na minha cara que sentia desejo por mim. E mais: contou que havia levado uma calcinha minha em um terreiro de macumba e feito um trabalho para que eu me apaixonasse por ela.”

Traumatizada com a tentativa de assassinato e com as revelações da empregada, Lucinete embarcou no Cisne Branco disposta a não retornar tão cedo de Manaus. Seus planos: abrir um salão de cabeleireiro, voltar a posar para revistas e tratar de esquecer o noivo. “Apesar de tudo, eu ainda o amo”, confessa, meio cabisbaixa. “Alguns rapazes já me deram conselhos aqui no barco para eu tirá-lo da cabeça. Não sei; talvez consiga esquecê-lo quando aparecer um outro homem que eu realmente ame.”

De Belém, ela levava alguns hematomas, uma amiga que seria manicure em seu novo salão e pouco dinheiro. “O pior é que eu e Roberto tínhamos uma conta conjunta. Depois da briga, ele transferiu tudo para a conta dele.”

Os planos de Lucinete, no entanto, foram interrompidos exatamente no meio da viagem. No porto de Santarém, ao conferir as passagens, um tripulante do barco descobriu algo errado: Lucinete realmente tinha um bilhete até Manaus, mas a amiga manicure somente até Santarém. Com um desfecho um tanto confuso, e com duas versões para a mesma história, ambas foram obrigadas a saltar na cidade. Segundo Lucinete, o bilhete havia sido emitido errado em Belém. “Tentei explicar isso para o Antônio Rocha Júnior, o filho do dono do barco. O cara falou que resolveria tudo se eu dormisse com ele. É claro que não aceitei, e por isso ele resolveu se vingar.” A versão do gerente do Cisne Branco, Tadeu Meirelles: “Nós tentamos conversar e ela já foi soltando os cachorros. Acho que estava querendo aplicar um golpe. Se a gente entrar nessa, vai à falência. Toda viagem tem histórias desse tipo.”

 

 

O baiano teimoso

 

            Ronald Fleury Leite nasceu em Salvador há 43 anos. Com o braço direito atrofiado, supenso numa tipóia, foi um dos curiosos que acompanharam o episódio da expulsão de Lucinete do barco. Seu veredicto: “Essa loura de farmácia é o maior 171.”

Aventureiro nato, Ronald tem uma fazenda de 70 hectares em Rui Barbosa, a 120 km da Chapada Diamantina, na Bahia, e cinco filhos — “talvez seis”. Isabela, uma das filhas, ele só veio a conhecer há quatro anos. Separou-se de Monique, a mãe da garota, quando ela estava grávida. O sogro nunca o deixou ver a filha. “O velho achava que eu era muito porra-louca. Era mesmo. Agora estou melhor.”

A fama de maluco vem não apenas dos tempos em que freqüentava a comunidade hippie de Arembepe, onde conheceu Janis Joplin. “Ela fumava maconha o dia inteiro e vivia rindo. Se tivesse ficado só no fuminho não teria morrido.” Desde os 16 anos Ronald enche a cara. Ou melhor: enchia. Há dois anos, jura, não bebe uma gota. (Ou melhor: não bebia. No Cisne Branco, teve uma recaída). Conta que torrou duas heranças em festas homéricas e destruiu dezenas de carros.

O braço atrofiado é seqüela do último acidente. No dia 1° de janeiro de 1985, foi atropelado com sua moto em Salvador e sofreu um rompimento na segunda cervical. “O pior é que não estava molhado (bêbado). Estava de ressaca.” Durante dois anos seguidos só conseguia dormir completamente mamado, “quase em coma alcoólico”, devido às dores. Depois de uma cirurgia no Rio de Janeiro as dores passaram, mas um formigamento constante o acompanha dia e noite. “É um inferno, fico tenso o tempo todo. Quero arrancar esse braço, mas os médicos se negam, dizem que é mutilação, vai contra a ética.” Mostra profundas cicatrizes no antebraço e diz que ele mesmo retalhou com caco de vidro, na tentativa de sensibilizar algum cirurgião.

Ronaldo embarcou no Cisne Branco sem a menor idéia do que iria fazer em Manaus. “Sei que não volto para Salvador sem entrar na selva.” No meio do rio, resolveu que daria uma esticada até Boa Vista, em Roraima, e de lá seguiria para a Venezuela.

 

O lobo solitário
 

            “Ô, Bahia, deixa de ser teimoso. Eu com a minha teimosia já me ferrei muito na vida”, aconselha Luís Carlos Mendonça. Como uma metralhadora giratória, não fez a menor cerimônia para começar a contar sua vida: “Eu sou garimpeiro, tenho um barranco em Serra Pelada. Vou fazer 40 anos em janeiro. Nunca tive paz na vida. Tenho cinco filhos com cinco mulheres, uma em cada Estado. São as minhas andanças. Cada lugar que eu chego, tenho que arrumar uma mulher para cuidar de mim e nessa cuidação ela fica tendo um filho meu e depois eu levanto vôo e quando ela acorda eu já estou longe.”

Luís Carlos nasceu em Cachoeiro do Itapemirim — “terra do Roberto Carlos, meu conterrâneo”. Aos 14 anos saiu de casa para trabalhar em uma fazenda em Ponta Porã, Mato Grosso do Sul. De lá, a ambição pelo ouro o levou aos garimpos às margens do rio Tocantins, Redenção e Serra Pelada. “Cheguei a tirar 30 quilos de ouro. Livre. Perdi quase tudo. Era puta uma atrás da outra. Garrafa que custava isso aqui (tira da carteira uma nota de 100 dólares) era fichinha. Acontece que Serra Pelada é o inferno, cara. Nunca derramei sangue, mas o Márcio — o apelido dele era Rambo — matava por prazer. Um infeliz. A Polícia Federal deu tanto tiro nele que tiveram que sair catando os pedacinhos.”

O que sobrou do ouro, diz ele, deu para comprar uma lancha, um apartamento de um andar em Vitória e um rastreador australiano XT 17000, aparelho parecido com uma vassoura, capaz de detectar ouro sem causar danos à natureza. Pelo menos, é o que diz o manual de instruções. “Por isso estou indo a Manaus. Vou visitar um filho e de lá sigo para a Venezuela. Se eu achar bastante ouro, vou comprar uma fazenda, construir cinco casas — tudo no mesmo terreno — para as minhas cinco mulheres criarem meus filhos perto de mim.”

Apesar das cinco mulheres, Luís Carlos se considera um “lobo solitário”. É essa solidão que o leva a beber vodca polonesa — “Wyborowa, não outra”. E foi um porre homérico que o lançou numa espetacular conversão religiosa em plena viagem no rio Amazonas.

Em Santarém, onde o Cisne Branco passa um dia inteiro atracado, reabastecendo e trocando de carga, o garimpeiro tomou todas. Na manhã seguinte, deu de cara com Otacília Freitas, 60 anos — uma crente de carteirinha da Assembléia de Deus —, cantando hinos religiosos com o pastor Rafael Testa. Sem pestanejar, começou a desfiar seu rosário: “Dona, eu preciso encontrar a paz. Ontem à noite eu estava bêbado igual um cachorro. Vomitei no banheiro, minha dentadura caiu e eu deitei em cima do vômito. Diga pra mim: Deus, que é tão piedoso, cura do vício da cachaça?”

Foi a senha para dona Otacília e o pastor Rafael iniciarem um longo sermão contra as forças do demônio e encaminhar mais uma alma pecadora para a estrada de Cristo. Ouvindo as preces do pastor, Luís Carlos jogou-se de joelhos no convés do navio, chorou como um bebê, ganhou uma Bíblia de presente e disse que finalmente encontrara a paz.

Na mesma noite, conversando com o subtenente José Pinheiro Lopes, comentou seu ingresso no reino do Senhor. Em seguida, contou novamente que havia ganhado muito dinheiro no garimpo mas gastado a maior parte com mulheres. “Eu adoro puta. Quer dizer, adorava, até hoje de manhã.”

 

As gringas e a vovó on the road

 

“Quando falei em Berlim que viria para o Brasil e que passaria pelo Rio de Janeiro, meus amigos disseram: ‘Você é louca. É muita violência.’ É, sei que precisa tomar cuidado, mas o povo brasileiro é extremamente gentil. Muito mais que os alemães”, diz Christel May, 40 anos, admirando a selva amazônica às margens do rio. Professora de psicologia e pedagogia em Berlim, ela viaja sozinha e, apesar de não falar português, não se sente insegura. “Mas gostaria de conversar mais com os passageiros do barco. Percebo que são pessoas muito diferentes umas das outras.”

Não é a primeira vez que visita o país. As férias anteriores passou em São Paulo — “uma cidade como qualquer outra do mundo.” Viajando pela Amazônia, aí, sim, diz, está percebendo o que é o Brasil, e suas enormes diferenças. “Contudo, é difícil, para mim, entender a situação brasileira. De um lado, vejo uma terra imensa, com grandes riquezas naturais. De outro, crianças maltratadas, famílias extremamente pobres. É muito difícil compreender.”

Quem entendeu menos ainda certos aspectos do Brasil foi a jornalista Margarita Font, 26 anos, espanhola de Barcelona. Coordenadora de redação da revista Integral, especializada em ecologia, antropologia e arte, com 60 mil exemplares de tiragem, ela veio conhecer as favelas de Belém, com um grupo de outras seis mulheres, através de um intercâmbio sociocultural Brasil-Espanha.

Margarita hospedou-se em um barraco no bairro da Cremação. Certa noite, ao voltar para casa, encontrou várias pessoas tocando atabaque e o chefe da família tomado por um santo. “Ele falava como outra pessoa, tinha uma voz diferente, dizia que era um rapaz turco. Tinha bebido muita pinga, mas creio que algo sobrenatural estava realmente acontecendo. Nunca vi nada parecido. Fiquei com muito medo.”

Dormindo em redes, como os outros passageiros, Christel e Margarita se espantaram com a alegria dos brasileiros e, em particular, com a vitalidade de dona Juraci de Araújo Santos, 71 anos. Ela passava lua-de-mel com o segundo marido, o marceneiro Manoel Agra Barbosa. Estava viajando havia quatro meses, “de avião, ônibus e barco.” Estivera em Brasília, para fazer um check-up, depois levou o marido para conhecer o Ceará. Saltaria do barco em Santarém, onde visitaria os oito filhos de Manoel, passaria por Monte Alegre, para assistir à festa de São Francisco, seguiria para Alenquer, chegaria a Manaus e de lá voltaria para Boa Vista, em Roraima, onde mora. “Vai ser só o tempo de acertar as contas da casa e partir para a Venezuela. Minha vida é assim, viajando o tempo todo.”

Bedel de escola pública aposentada, dona Juraci conta que viveu 50 anos com o primeiro marido. Teve duas filhas — uma morreu de sarampo ainda pequena; a outra de derrame, aos 37 anos, mesmo mal que vitimou o marido. “Ainda não o esqueci; 50 anos não são 50 dias.” Mas não faz o gênero viúva enlutada e vencida pela idade. Desde 1992 está de casamento novo. “O pessoal da jovem guarda critica os velhos. Querem que a gente se acabe para eles ficarem com tudo. Qual é? Para mim, a vida é bela e estou feliz.”

O segredo de tanta disposição? “É o amor. Você não sabe que coco velho é que dá bom azeite?”, indaga, sempre com uma estrondosa risada.

 

Lula, o torneiro mecânico

            Adenilson Dias tem R$ 35 no banco e uma pequena mala com suas roupas. “É tudo o que tenho na vida.” Vai a Manaus tentar um trabalho como torneiro mecânico. Pretende juntar R$ 15 mil, comprar um torno — “velho, feio, mas meu” — e tomar um rumo na vida. “Desta vez tem que dar certo. Eu já me arrebentei demais. Vou fazer 27 anos no dia 8 de dezembro: é muito tempo de vida pra tu não ter nada.”

É sua segunda tentativa na capital amazonense. Na primeira, ficou quatro anos, guardou o máximo de dinheiro que pôde e voltou para Imperatriz, no Maranhão, onde morava com a mãe. Queria trabalhar num negócio próprio. Virou muambeiro. Comprava produtos no Paraguai e revendia na cidade. Não deu certo. Antes disso, havia passado dois anos em um garimpo em Itaituba, no Pará. “Achei muito ouro mas também torrei tudo. Eu tinha 16 anos, não conhecia nada da vida. O que eu trouxe de lá foi uma malária falsípara, a pior que existe, e a certeza de não voltar nunca mais.”

O apelido Lula ele ganhou no barco. Não só por ser torneiro mecânico, mas porque tinha certeza de que só com Lula na Presidência o Brasil teria jeito. Bem articulado, contou que a violência do garimpo foi um choque. “Uma vez vi um cara agonizando durante 20 horas, esperando um avião que o tirasse dali. Para roubar seus 35 gramas de ouro, um outro sujeito deu nove tiros nele, tudo no bucho. É comum eles dizerem isso: ‘Não vou te matar depressa. Vou atirar só no bucho, que é pra morrer falando.’ Quer dizer, se o cara morre rápido, já é uma vantagem. Já pensou passar 20 horas seguidas falando quem te matou, por que te matou? E com nove carocinhos dentro da tua barriga? Deve ser meio chato, né?”

Em Manaus, Lula ainda não tem endereço certo. Quando o barco atracar no porto, vai tomar um café com leite, comer um pão com manteiga e sair à procura de trabalho. “Sou de uma família que todo mundo resolveu tentar e ninguém conseguiu nada”, conta. “Tenho quatro irmãos, um em cada canto. O que mora em Macapá está bem. Mas não vou bater na porta dele. Independente de ter orgulho. Se precisar, eu vou. Porque sei que ele me serve. Mas não estou precisando ainda. Tenho R$ 35. Dá para segurar uma semana. Almoço, não preciso jantar. Tomo uma Coca-Cola e está tudo certo. É assim que funciona.”

Mirando o imenso rio Amazonas, que mais parece um oceano, Lula comenta: “Vista de cima, é a coisa mais linda essa Amazônia. Mas lá dentro, o crime, a prostituição, é o que mais existe.”

 

 

Guiness, o ciclista

 

Quando está na estrada, Edmilson Batista dos Santos pedala das 5 da manhã às 8 da noite. Já rodou o Brasil de norte a sul — de bicicleta. Seu grande sonho, agora, é conhecer 180 países em 15 anos e entrar para o Guiness, o livro dos recordes. “Tem um americano que fez 157 países em 16 anos. Vou superar essa marca”, diz, sempre com ótimo humor.

A epopéia sobre duas rodas começou em 1992, em São Paulo. Trabalhava na loja de móveis São João, morava com um tio e havia algum tempo pensava em cair na estrada. Faltava um empurrãozinho. “Um dia minha avó, que morava na mesma casa, chamou minha irmã de puta. Fiquei injuriado. Disse que puta era ela. Meu tio ficou uma arara e me expulsou. Foi então que decidi voltar para Aracaju, onde mora minha mãe, de bicicleta.”

Passou 27 dias pedalando, numa Monark comum, sem marcha. Marinheiro de primeira viagem, teve que pedir abrigo numa casa em Governador Valadares, norte de Minas Gerais. “Cara, eu estava com a bunda em carne viva.” Em Aracaju, descansou duas semanas e resolveu esticar até São Luís do Maranhão, já com uma Caloi 10, emprestada de um amigo. Na volta, cruzando o sertão da Bahia, passou dois dias bebendo o próprio suor. “Estava tudo seco, não encontrava água em lugar nenhum. Vim por umas estradas sem movimento. Tinha que torcer minha camiseta e beber.”

Novamente em Aracaju, conseguiu patrocínio da Golden Cross, comprou uma bicicleta nova e desceu para São Paulo, depois Rio Grande do Sul, e começou a subir para o norte do país. No caminho, foi notícia de vários jornais, como a Folha de São Paulo — recortes que ele leva numa pasta toda amarrotada —, e mereceu duas reportagens na Rede Globo, uma no Globo Esporte e outra no Esporte Espetacular. A epopéia, no entanto, foi bruscamente interrompida em Brasília. Dois assaltantes encostaram um 38 na sua cabeça e levaram a bicicleta e os 108 dólares que trazia no bolso. “Por isso estou neste barco”, comenta, estirado em sua rede. “Vou até a fábrica da Two Hard em Manaus, empresa que me patrocina, buscar outra magrela. Aí volto a Brasília e venho pedalando de novo até Belém, onde vou pegar esse mesmo barco, novamente com destino a Manaus. De lá, subo até a Venezuela, passo pela América Central e chego à Califórnia. Depois dos Estados Unidos, o mundo me espera.”

E que ninguém ouse tentar tirá-lo dessa aventura. “Já disse e repito: só volto para casa com o Guiness na mão. Se alguém da minha família morrer — tenho pai, mãe e seis irmãs —, paro uma semana para rezar e sigo viagem. Minha namorada queria que eu desistisse. Caiu na besteira de dizer: ‘Você escolhe: ou eu ou a bicicleta.’ Fiquei com a bicicleta.”

 

 

ALÔ, ALÔ, RÁDIO PEÃO

 

Na Amazônia tudo é gigantesco: a visão se perde entre o céu, a água, a floresta e a linha do horizonte. Subindo ou descendo o maior rio navegável do mundo, é comum encontrar transatlânticos carregados de madeira, balsas rebocadoras transportando dezenas de automóveis, postos de gasolina ou óleo diesel flutuantes e centenas de gaiolões levando pessoas. Nos trechos mais largos o Amazonas parece um oceano de águas barrentas. Visto de cima, o Cisne Branco, com seus 41 metros de comprimento, certamente não passa de uma minúscula mancha do tamanho de uma mosca rangendo seus motores nesse cenário colossal.

Ali dentro, no entanto, a infra-estrutura também não é nada desprezível. Só para alimentar os cerca de 300 passageiros, no trajeto Belém-Manaus, são consumidos quatro bois, 200 kg de galinha, 180 de arroz e 190 de macarrão, segundo o auxiliar de cozinha Giomar Martins Ribeiro. A alimentação — café da manhã, almoço e jantar — está incluída no preço da passagem (R$ 79 para quem dormir em rede e disputar o banheiro coletivo, e R$ 154 por vaga em cabine para duas pessoas, com banheiro). O cardápio é sempre o mesmo durante os cinco dias e cinco noites: arroz, feijão, farinha, macarrão e carne de boi ou galinha.

Emparedada pela floresta, a paisagem ao redor do leito do rio quase nunca se altera: uma contínua muralha verde de árvores, com esparsas casas isoladas, aqui e ali. Em comunidades um pouquinho maiores, o contraste é chocante: ao lado de rústicas palafitas, repentinamente florescem futuristas antenas parabólicas.

Quanto mais se avança em direção a Manaus, mais o calor equatoriano se torna dantesco. Para suportar, só tomando muitos banhos durante o dia. Quatro chuveiros ficam constantemente abertos na popa do barco, no pavimento superior, onde homens, mulheres e crianças, vestidos com calções ou biquínis, se refrescam debaixo da água puxada do próprio rio.

Cinco dias e cinco noites de convivência constante são suficientes para que se crie no barco uma espécie de comunidade flutuante. Saímos de Belém numa sexta-feira à noite. Na manhã seguinte, quase todos os tripulantes e passageiros já sabiam que o fotógrafo Juvenal Pereira e eu estávamos fazendo uma reportagem. Instantaneamente nos transformamos numa central de informações. Todos vinham nos contar novos acontecimentos e saber das últimas notícias. “Bom dia, Rádio Peão, quais são as novas?” — era a senha matinal.

A convivência diária acaba criando também um clima de sedução, especialmente entre os mais jovens. Mas a aglomeração humana nas redes não possibilita muito espaço — físico, inclusive — para que rolem amores mais febris no barco. A tentativa de um casal terminou em vexame. Numa rápida parada em Monte Alegre — cidadezinha perdida no meio da floresta —, na noite de segunda-feira, Lula trouxe as informações fresquinhas para a “Rádio Peão”: “Rapaz, rolou a maior sessão erótica agora mesmo. Um cara e uma garota estavam transando na rede, no meio de todo mundo. Um senhor percebeu o vaivém, puxou o lençol e flagrou a cena. Apareceu um tripulante do barco, passou o maior sabão nos dois e ficou por isso mesmo. Poxa, também, no meio das velhinhas e das crianças não dá.”

Isso não impede, no entanto, que floresçam alguns namoros ocasionais. Luís Carlos, o garimpeiro, gastou saliva com Lucinete, a loura fujona, mas não conseguiu nada. Tomou um porre em Santarém e acabou se convertendo ao rebanho da Assembléia de Deus. Guiness teve mais sucesso: caiu de amores por uma morena. “Quando chegarmos a Manaus, cada um vai para o seu lado. Mas até lá a gente pode aproveitar um pouquinho. Não faz mal nenhum, né? Os cientistas dizem que namorar evita que as pessoas envelheçam mais cedo”, diz o sergipano, com um sorriso.

Até mesmo o australiano Blake Pendlebury, nas últimas horas de viagem, se engraçou com uma paraense de 16 anos, mãe de um lindo bebê de seis meses de idade, que também viajava no Cisne Branco, aos cuidados da avó. A garota saíra da Ilha de Marajó para visitar três irmãos em Manaus. Sem falar uma palavra em português, o australiano jogou seu charme. “Eu não entendo nada do que ele fala. Ele também não entende nada do que eu digo. Fica tudo certo”, dizia a garota.

Ao desembarcarmos no porto flutuante de Manaus, na noite de quarta-feira da semana seguinte, cada um dos membros dessa louca, divertida e eclética comunidade tinha os olhos descansados pela maravilha da paisagem e um rumo diferente a seguir pelo mundo. Luís Carlos seguiria com seu rastreador em busca de ouro na Venezuela. Lula tentaria novamente fazer a vida como torneiro mecânico. Guiness se apressaria em apanhar sua bicicleta para retornar a Belém no mesmo Cisne Branco. O pastor Rafael continuaria sua catequese, esperançoso de ter plantado a semente da fé no coração de mais uma ovelha desgarrada: “Ademir, você ainda vai ser da Assembléia de Deus.”

Mas tudo o que eu queria naquele momento era chegar o mais rapidamente possível ao hotel. Estava com uma diarréia que já durava dois dias.

 

Marie Claire n° 44, novembro de 1994

 

 

 

 

 

 

 

Ademir Assunção é essencialmente poeta, mas também escreve ficção e trabalha como jornalista. Publicou vários livros de poemas: LSD Nô (1994), Cinemitologias (1998), Zona Branca (2001) e A Musa Chapada (2008 – este em parceria com Antonio Vicente Pietroforte). Dois de ficção: A Máquina Peluda (1997) e Adorável Criatura Frankenstein (2003). Venceu o Prêmio Jabuti (melhor livro de poesia do ano) com a A voz do ventríloquo (2012). Lançou ainda um cd de poesia e música: Rebelião na Zona Fantasma (2005). É editor da revista literária Coyote, junto com os poetas Marcos Losnak e Rodrigo Garcia Lopes. E-mail: zonabranca@uol.com.br




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