JAZZ! – Interpretações


[Belo Horizonte: s.ed., 2011]

 

NAIMA1

Com as testas luzindo na escuridão, McCoy, Jimmy e Elvin2 construíram o tema em suspenso, desenharam sua arquitetura no vazio, lançaram ao ar e subitamente o abandonaram, um último acorde em quartas superpostas. Montado em Zepelim, mas com os pés no chão, na emenda inconsútil e imaterial Trane3 deu início ao improviso. Aproximando-se da paleta de um pintor, os sons que emergiam do saxofone dourado se exprimiam em profundo tom de azul, acentuado por manchas amarelas, brancas, vermelhas e alaranjadas.

Fechei os olhos e sorri, aceitei o convite vindo de fora, tornei-me irmão gêmeo, cúmplice silencioso, amigo para sempre. Relaxei, estiquei as pernas à frente, escorreguei o corpo para baixo, apoiei a nuca no espaldar da cadeira e mergulhei no oceano musical munido de pincel e uma tela enorme que, ao fim da noite, terá se transformado em registro emocionado de um momento único na vida daquela centena de seres humanos, sendo quatro deles músicos, artistas plásticos de abstratas sonoridades.

― Nesta noite, aqui, agora, não vou parar nunca mais de tocar.

Coltrane parecia estar fugindo de alguma coisa, tocava com raiva, e fiquei me perguntando o que poderia ter acontecido.

― Naima e eu discutimos minutos antes do show, o tipo da briga boba, por nada que valesse a pena, a briga. As brigas de sempre, que faziam doer todo o meu corpo, um desacerto muito mais do que físico, como uma agulha de aço moída e pulverizada nas veias, rasgando a pele por dentro, tirando o calor do sangue, o sabor de tudo, o querer viver.

Um calafrio passou por mim, estremeci, sofri um incômodo generalizado.

― Sinto-me inviável, desarticulado, em pedaços, inútil.

Sentado bem próximo, em uma mesa colocada a apenas dois metros à esquerda do centro do palco, abri os olhos para observá-lo melhor. Sob o foco branco direcional de luz, os brilhos e reflexos do instrumento disputaram por instantes minha atenção, mas acabei me decidindo pelas gotas de suor que já começavam a escorrer por sobre a pele escura do seu rosto. Nesse momento, um dos pensamentos que me chegou foi o de que os deuses da música são, de fato, tão somente isto, deuses da música. Fora de cena, à luz do sol, eram seres comuns, como todos nós que, espectadores, com eles, em especial com John Coltrane, na penumbra desse Olimpo nos surpreendíamos.

― Embora estivesse assim, em ruínas, desejando sumir no negrume em que me enfiara durante a viagem, o palco do Village4 é um dos poucos lugares onde consigo ficar à vontade. Uma sensação parecida com a de estar em casa, mas trocando o calção, a camiseta larga e os pés descalços por paletó, camisa de colarinho, calça comprida, cueca, meias e sapatos. Quer dizer, é um parecido bem diferente. Especialmente na hora das palmas. É bom. Outro tipo de bom.

E talvez fosse justamente esta a beleza contraditória de suas vidas de titãs: esses músicos eram grandes, gigantes em sua ínfima condição de humanos.  Nossa ínfima condição humana.

― Ao amanhecer, juro que pego o carro e parto para a travessia que desde menino quis fazer. Saída: Nova Iorque. Destino: Los Angeles.

Puxa, esses acordes da mão esquerda do McCoy são uma beleza!

― Desafio principal: sozinho, cruzar o deserto de Mojave, o Vale da Morte. Desejo mais fundo: no meio do nada, no eixo empoeirado da desolação, sacar o sax da maleta e, sem ressentimentos, conseguir criar, soprar uma canção para Naima.

Peço mais uma dose dupla de rum com limão, saboreio a mistura, percebo o calor, o vapor quente da bebida a ocupar, do topo ao hall, os vários degraus da ermida.

― E enviá-la nos ventos.

Coltrane, agora, parece ter acabado de descer do metrô na Estação da Paz. Está concentrado, os olhos fechados, e toca de maneira doce o seu sax tenor. Uma vez mais, cerro os olhos. E ouço. Sobretudo, ouço:

NNNNNNNNNNNNNNNN
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm
a

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De olhos fechados, viajante, só retornei à realidade quando as palmas explodiram. Com os pelos dos braços arrepiados, tive a certeza de que essa música era a minha música. Dividido, contradição ambulante, eu me sentia atormentado e feliz, o corpo trêmulo e o coração batendo forte no escuro, um tempo fora do tempo, tempo suspenso no tempo, espaço de descoberta e inquietação. Passagens. Menino a crescer, menino a adolescer, adolescente a amadurecer, adulto a sair do casulo, olhos em busca de luz, o mundo a transitar veloz, túnel de néon, albatroz no ar à procura de um mar azul.

Coltrane agradeceu os aplausos e se retirou. Tive vontade de me levantar e ir encontrá-lo nos bastidores, apertar suas mãos, olhá-lo nos olhos e dizer um punhado de coisas. Melhor não, pensei, melhor ficar quieto, ir embora, silenciar.

Paguei a conta e saí, desapareci em meio à neblina da madrugada fria de Nova Iorque. Minha música não me saía da cabeça. Assobiando-a, caminhei pelas ruas, imaginando-me a fazer um dueto com John Coltrane:

MMMMMMMMMM
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
nnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn
iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

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Experimentei alongar essa última nota, gostei, e foi com ela a ocupar a quietude da noite, que, novamente, ouvi todas aquelas palmas. Emocionado, curvei a cabeça em direção ao asfalto, agradeci à cidade, abri a porta e, altivo ― embora cambaleante ―, entrei em casa. Se por acaso um paparazzo surgisse nessa hora, suas fotografias iriam dizer: “eis aí um homem feliz e totalmente realizado”. Ri de mim mesmo. Com esse sorriso nos lábios, já deitado, aproximei o rosto da parede encardida e apaguei.

 

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NOTAS

1. Naima, composição de John Coltrane, pode ser ouvida em seus discos Giant Steps (duas gravações, uma delas alternate take), Afro Blue Impressions e Coltrane ― live at the Village Vanguard again!. Naima é o nome da primeira esposa de Coltrane. Conforme depoimento de McCoy Tyner, no livro A Love Supreme, de Ashley Kahn, à época (1957) em que ainda era viciado em heroína, Coltrane tinha à sua volta “pessoas que o amavam, principalmente Naima, que era louca por ele”. Naquele ano, ainda segundo Kahn, Coltrane “foi forte o bastante para se desintoxicar sozinho”. No mesmo livro, uma prima de Coltrane diz que “Naima estava com ele o tempo todo, nos altos e baixos daquilo tudo”.

2. McCoy Tyner, piano; Jimmy Garrison, contrabaixo; Elvin Jones, bateria. De 1962 a 1965, liderados por John Coltrane, formaram um dos mais elogiados quartetos da história do jazz. Gravaram diversos e cultuados discos, entre eles A Love Supreme, cujo processo de criação motivou a pesquisa e o livro do jornalista Ashley Kahn. Depois de 1965, Coltrane mudou o direcionamento de sua música, criando seus sons em um estilo então rotulado de free jazz. Nesse período, ampliou o número de músicos que o acompanhavam, incluindo Alice Coltrane, sua mulher, ao piano (eles se conheceram em 1963 e em 1965 tiveram o filho Ravi Coltrane, que também se tornou músico ― saxofonista e clarinetista), mais Pharoah Sanders ao saxofone ou à flauta, Rashied Ali na bateria e Emanuel Rahim na percussão, mantendo Jimmy Garrison no contrabaixo. O disco Coltrane ― live at the Village Vanguard again!, gravado em 28 de maio de 1966, traz essa formação.

3. John Coltrane (1926-1967). Saxofonista, nascido em Hamlet, Carolina do Norte, EUA. Gravou dezenas de discos nos Estados Unidos e na Europa. Influenciou e continua influenciando saxofonistas em todo o mundo. Faleceu de complicações hepáticas, em julho de 1967.

4. Village Vanguard. Uma das mais famosas, se não a mais famosa casa noturna de Nova Iorque, onde se apresentaram muitos dos grandes músicos de jazz norte-americanos, entre eles John Coltrane, Miles Davis, Thelonious Monk, Charles Mingus, Sonny Rollins, Bill Evans, Thad Jones, Dinah Washington e Roland Kirk. Segundo Max Gordon, seu proprietário desde 1934, ali foram gravados “mais de cem discos ao vivo”.

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Paulo Vilara
é jornalista, autor dos livros Palavras Musicais – Entrevistas com os compositores Fernando Brant, Márcio Borges, Murilo Antunes e Chico Amaral (2006) e Congresso Internacional da Bicharada (1996).E-mail: jazzpequenashistorias@gmail.com




Comentários (2 comentários)

  1. Ana Lúcia Vasconcelos, Que delicia de texto- a gente viaja junto com o Paulo Virada.Para quem gosta de jazz é um prato cheio.abraços.Ana Lúcia
    21 janeiro, 2012 as 17:11
  2. Ana Lúcia Vasconcelos, Paulo Vilara-mil desculpas pelo erro…
    21 janeiro, 2012 as 17:20

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