Hospício é deus


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Hospício é deus é o notável título de um diário que se transformou em livro, escrito por Maura Lopes Cançado, que tentou pela via da escrita escapar da loucura. Vivendo nos anos 1950/1960, ela não conseguiu, uma vez que o confinamento dos perturbados mentais, os choques e as drogas, além do próprio poder estabelecido na relação da sociedade e de seus representantes médicos e paramédicos tiravam a vitalidade e o pouco de lucidez que ainda pudesse existir naqueles que entravam nesse sistema.

O diário de Maura é, por isso, um documento importante de desvendamento desse ambiente, mas, por ser escritora, seu relato tem nuances inesperadas, a começar pelo título de seu livro, tão sugestivo de associações. Se para um louco o hospício é deus, o poder máximo e inquestionável que controla e dirige suas vidas, Maura chegou a tal definição porque desvenda também, o tempo todo, as relações de poder que se dão entre as pessoas e especialmente entre pacientes e médicos e pacientes e pacientes. Mais que apenas submetida a um suposto tratamento, inteligente como era, fazia o jogo alternando o papel de submissa/insubmissa e, até que a loucura a desvirtuasse, o de uma sedutora fantasiosa.

São peculiares seus relatos da infância, desde quando, envergonhada, levantava a saia do vestido para ocultar o rosto emitindo frases incomuns para uma criança, até o modo como se relacionava com a eroticidade – mais presente em seu relato de adulta que nos atos em si mesmos ocorridos na infância. Quanto a isso, destaca-se seu relato de abusos sexuais, cometidos por adultos a que ela recorria na fazenda em que morava e que, depois disso, desapareciam misteriosamente.

Filha de um pai riquíssimo, dono de muitas fazendas e jagunços, violento, ao qual assistiu espancar um homem indefeso, tinha em relação a ele um sentimento de ambiguidade erotizada, aparentemente fantasiada no poder que ele representava, que iria se reproduzir em outras relações: casada aos quinze anos com um aviador, logo ela passou a ter fantasias eróticas com o sogro, um coronel. O conflito se repetiria vida afora com médicos e escritores como Cony, Gullar ou Reynaldo Jardim, que prefacia seu livro, e com os quais conviveu na redação do Jornal do Brasil, participando do inovador Suplemento Literário criado por Jardim.

Com constantes variações de humor, tão logo conquistava algo, imediatamente Maura se desencantava disso, tal como aconteceu com um avião Paulistinha, dado pela mãe: “Queria este avião apaixonadamente – antes de tê-lo”. Conseguir esse avião foi um exercício de autoafirmação e exibicionismo: “Portava-me como um rapazinho, falando de aviação, aparentemente integrada. Ainda assim aquela insegurança. Como única moça da turma, a única a possuir um avião, devia sentir-me muito vaidosa, ainda mais que estava muito bonita: de macacão branco e bonezinho de lado”.

Maura chegou a ir além do diário que escreveu, tendo publicado contos e o livro “O sofredor do ver”, que deu a ela reconhecimento. No entanto, loucura e manicômio não combinam, pois a instituição tende a moer quem entrava nesse sistema, finalmente desmontado nos anos 1990. Maura, numa de suas crises, matou outra interna, acabou na prisão, ficou cega, saiu da prisão, recuperou a visão mas não escreveu mais. São contundentes as palavras que nos legou: “Estou no hospício, deus. E hospício é este branco sem fim, onde nos arrancam o coração a cada instante, trazem-no de volta, e o recebemos: trêmulo, exangue – e sempre outro. Hospício são as flores frias que se colam em nossas cabeças perdidas em escadarias de mármore antigo, subitamente futuro – como o que não se pode ainda compreender”.

 

 

 

 

 

 

 

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Ademir Demarchi nasceu em Maringá e reside em Santos há 15 anos, onde trabalha como redator. Formado em Letras/Francês, com Mestrado pela Universidade Federal de Santa Catarina (1991) e Doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (1997), foi editor da revista Babel, de poesia, crítica e tradução, com seis números publicados de 2000 a 2004. É autor de Passagens – Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná (Imprensa Oficial do PR, 2002); Volúpias (poemas, Florianópolis: Editora Semprelo, 1990); Espelhos incessantes (“livro de artista” com poemas do autor e gravuras de Denise Helena Corá, edição dos autores, Santos: 1993; exposto no Museu da Gravura em Curitiba no mesmo ano); Janelas para lugar nenhum (poemas, com linoleogravuras de Edgar Cliquet, edição dos autores, Santos: 1993; lançamento feito em Curitiba, no Museu da Gravura, no mesmo ano). Além desses trabalhos, o autor tem também poemas, artigos e ensaios publicados nos livrosPassagens – Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná18 Poetas Catarinenses – A mais nova geração deles (ed. e org. Fábio Brüggemann, FCC Edições/Editora Semprelo, 1991);Os mortos na sala de jantar (Realejo Livros, 2007) e Passeios na Floresta (Editora Éblis, Porto Alegre, 2008). Publica também em periódicos como Literatura e Sociedade (São Paulo, USP);Medusa (Curitiba); Coyote (São Paulo), Oroboro (Curitiba),  Jornal do Brasil/IdéiasRascunho(Curitiba); Jornal da Biblioteca Pública do ParanáBabel(Santos); Sebastião (São Paulo); Los Rollos del Mar Muerto (Buenos Aires, Argentina) e sites,  entre eles,  as revistas eletrônicas GerminaAgulhaEl Artefacto LiterarioTantoCritério. E-mail: revistababel@uol.com.br




Comentários (1 comentário)

  1. valquiria, poruqe ainda existem homens que engravidam mulheres e nem se preocupam se ja a engravidaram?!
    21 dezembro, 2017 as 12:24

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