Haicais de Kerouac para ler e ouvir
As leituras de haicais de Kerouac, acompanhado pelos saxofonistas Zoot Sims e Al Cohn, e com ilustrações dele:
A seguir, minhas traduções desses haicais, tal como publicadas em Livro de haicais, L&PM, 2013 (edição bilíngüe). Selecionei da seleção, não estou publicando todos os que ele leu. Em compensação, adicionei alguns dos esclarecedores comentários da organizadora dessa edição, Regina Weinreich. A propósito: a seleção de Kerouac para a gravação é menos do que o livro, pois ainda não havia escrito seus últimos e mais melancólicos e formalmente ousados haicais, recolhidos por Weinreich de cadernos de anotações e outras fontes.
Em meu armário de remédios
a mosca do inverno
Morreu de velhice
Comenta Weinreich: “Embora Kerouac entendesse a disciplina do haicai, freqüentemente seus experimentos são mais lúdicos que rigorosos. […] Cada poema revela a essência do haicai através da simplicidade de expressão e compressão. Que a mosca “do inverno” tenha morrido de velhice sugere que estamos em uma estação do ano após o inverno, talvez a primavera ou o verão. Assim, o uso do inverno é uma brincadeira com a referência tradicional á estação do ano. A situação da mosca do inverno sugere igualmente a mortalidade humana, movendo-se rumo ao “inverno”, à idade avançada.”
.
Onde estou,
14 h –
Que dia é hoje?
A árvore se parece
a um cão
Latindo ao Céu
“Esse poema, de um caderno de bolso, converte a raiva e frustração de Kerouac em visão universal, personificando a natureza indignada diante de um “céu” desconcertante e indiferente. Significativamente, Kerouac o selecionou para seu Livro de Haicais. Escrito em Northport, no outono de 1958, sua composição coincide com os “haicais da geração beat”, onde ele renega a forma deliberada do haicai para criar as justaposições mais surreais que marcam sua prosa mais experimental.”
.
Veneradas contas no
manual Zen –
Sinto frio nos joelhos
Na geada do amanhecer
os gatos
Pisam devagar
Nenhum telegrama hoje
– Nada a não ser
Mais folhas caídas
Bêbado feito uma coruja
escrevendo cartas
Durante a tempestade
O dia todo usando
um chapéu que não estava
Na minha cabeça
Lindas garotas correndo
pelos degraus da biblioteca
Usando shorts
Cruzando o campo de futebol
voltando do trabalho
O solitário homem de negócios
Inútil! Inútil!
– chuva forte a escorrer
Para o mar
“Esse lamento pelas realizações do homem, fútil diante do caráter inevitável da Natureza, evoca o espírito atemporal e universal dos poetas japoneses.”
.
Após a chuvarada
entre as rosas encharcadas,
O pássaro brinca e se banha
Estale seu dedo,
pare o mundo!
– A chuva cai mais forte
Anoitece – escuro demais
para ler a página
Frio demais
Roupa lavada dependurada
à luz da lua
– Sexta feira à noite
O celeiro, nadando
em um mar
De folhas ao vento
Vagalumes que dormem
nesta flor,
Suas luzes estão acesas!
Noite de primavera –
uma folha cai
Da minha chaminé
.
Os pops poéticos de Jack Kerouac, aqui.
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..
Claudio Willer (São Paulo, 1940). Poeta, ensaísta e tradutor. Traduziu parcialmente Ginsberg e Artaud, e a obra completa de Lautréamont. Publicou também, entre outros, ‘Geração Beat’, L&PM Pocket, 2009. É um dos editores da Agulha. E-mail: cjwiller@uol.com.br.

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