Girassol Voltado para a Terra


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A criança no adulto, a virtude no vício, a mentira na verdade, a língua na linguagem, o prazer na dor, e vice-versa. Confrontos na fronteira do existir.

As ficções breves de Renato Tardivo provam que as pessoas não são apenas olhos claros ou escuros, cabelo assim ou assado, o jeito de falar e andar. Não são apenas corpo e atitude congelados no presente. Pessoas são segredos quase imperceptíveis. São História, com inicial maiúscula.

Cada microconto, cada miniconto deste Girassol voltado para a terra esconde um mistério que justifica uma vida inteira. O texto curto é só uma brecha, uma passagem para o abismo não revelado. Intencionalmente oculto. A brecha convoca a fantasia do leitor.

Joyce falava em epifania; Bandeira, em alumbramento. Os relâmpagos do Renato também oferecem essa experiência subjetiva, quase mística, que Benjamin chamava de iluminação profana.

Essas etiquetas solenes, até sublimes, muito repetidas na teoria literária, ganham certa leveza nesta coletânea. Se aqui existem brechas mais sombrias ou nostálgicas, há também as mais sacanas e bem-humoradas. São a maioria.

Incorporando as manchas e as torções do mineral, do vegetal e do animal, as imagens de Anna Anjos dialogam bem com as diferentes manchas e torções do verbo.

Na virada do século, a ficção breve (micro e mini) conquistou o respeito e o prestigio que merecia. Tempos atrás, estrangeiros importantes − Kafka, Brecht, Cortázar e outros − fizeram maravilhas nesse território mínimo. Mas foi Dalton Trevisan quem legitimou o gênero, no Brasil.

Quando surgiram a web e o Twitter, a concisão narrativa se espalhou e multiplicou em concursos e antologias brasucas. Autores talentosos promoveram a expansão: Marcelino Freire, João Gilberto Noll e outros.

Renato Tardivo pertence a essa família que encontrou no mínimo o máximo. Em suas ficções breves, uma cena curta − um trocadilho, um diálogo, um lampejo − encobre outras. Poucos sintagmas indicam que há camadas camufladas. Há uma História.

O nome desse jogo é interação. Caberá ao leitor imaginar as camadas secretas a partir da brecha oferecida pelo autor.

 

Nelson de Oliveira

 

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Maria

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Não sem constrangimento, Maria reconhecia: “Meus filhos em primeiro lugar, Deus em segundo, meu marido em terceiro e, no quarto, o amante”.

 

 

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Desconcerto de Mundo Pós-Drummondiano

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Na academia penso no bar,

no bar penso na academia.

 

 

 

 

 

 

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Renato Tardivo nasceu em São Paulo, em 1980. É escritor e psicanalista. Estreou na literatura com o volume de contos Do avesso (Com-arte), em 2010. Foi professor universitário, é mestre e doutorando em Psicologia Social da Arte pela Usp e autor de Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em Lavoura arcaica (Ateliê Editorial/Fapesp). E-mail: rctardivo@uol.com.br




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