Escritor? É preciso engolir espadas…
… e vomitar fogo
[Scott Nelson, conhecido como “Murrugan, O Místico” – Reprodução/Arquivo Pessoal].
Depois de publicar meu primeiro livro de contos, um livreiro me convidou a fazer palestras num certo circuito geográfico do interior do estado de São Paulo e enfrentei, então, o público estudantil, para fazer esta coisa temerária: falar sobre Literatura para jovens. Constatei, naturalmente, o que era inevitável: que a maior parte do público não tem a menor ideia do que um escritor faz e do que a vocação (mais que a profissão) de escritor significa. Na verdade, deparei-me com viciados em televisão, e fiquei meio sem saber o que fazer. Mas, qualquer escritor que se disponha a fazer isso, atualmente, topará com essas coisas. E terá que se medir com implacáveis dificuldades.
A primeira – e a mais notável delas – é uma mistura de ignorância crassa com cinismo. O que interessa é se o indivíduo que está ali, na frente, palestrando, é um nome que foi veiculado pela tevê. Se assim for, pouco importa que esteja querendo falar de Literatura ou da psicologia dos caranguejos – o que ele tem que fazer, para o público que só consegue olhar numa direção, é entretê-lo. Se não o conseguir, estará perdido: a ignorância vai se manifestar em termos de má vontade, gente que se levanta e vai embora como se tivesse sido enganada (palestras desse gênero são, em geral, gratuitas, mas o sujeito se irrita como se tivesse comprado um ingresso) ou, pior, vaias, grossuras, risadas. Se há boa vontade, virão as perguntas – que, por vezes, revelam uma indigência cultural de assombrar mesmo os mais pessimistas ou uma inocência dolorosa, do tipo: “Como é que faço pra escrever um livro e ficar famoso?”.
É terrível isso, porque revela que o sujeito mal ouvia o que o escritor estava tentando dizer: que mal e mal existe essa profissão num Brasil onde o que há, na melhor hipótese, são semi-alfabetizados que detestam ler e onde mesmo os escritores famosos nada são, em termos de fama, para a grande massa.
O desejo é um só – ficar conhecido, não importando o trabalho que se tenha que fazer: o mérito, o sacrifício, não entra em conta. A mídia, por interesses consumistas “democráticos”, negligencia o mérito, as hierarquias naturais de talento das quais ninguém escapa, bombardeia que tudo neste mundo é uma questão de oportunidade. Daí o serem todos submetidos à lógica cruel do sistema: tudo fica reduzido a precisar fazer alguma coisa para ser uma notoriedade. É toda uma geração de monstros sem cabeça que vem sendo criada, e na base da euforia, como se tudo isso fosse muito natural, quando, na verdade, a perversidade é completa. Querem ser usados, espremidos e jogados no lixo. A humilhação não os intimida. Sair na tevê é tudo. Quem se opõe a isso é esquisito, otário. A possível nobreza das recusas ou do silêncio indignado, impotente, de modo algum é considerada.
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A BUSCA DO TRANSPESSOAL
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Ser escritor é bem o contrário de ser “famoso”. Donde o desânimo que em geral se abate sobre a categoria literária, cada vez mais esmagada pela necessidade de ter a oferecer algo mais que um bom trabalho em livro. Sim, é preciso engolir espadas e vomitar fogo.
A falta de sucesso é um componente quase inevitável da atividade literária, se esta é realmente séria (não que isso seja desejável – é só uma constatação). Os livros são lançados com esperanças e muito trabalho, muito sacrifício, mas não passam daquele “sucesso de estima” de uma noite de autógrafos com poucos amigos e admiradores, algumas vendas esparsas, mais nada. Em geral, o destino da maior parte desses livros é o encalhe doméstico; a certa altura, o que o escritor faz é distribuir o que restou lá por cortesia, para diminuir a pilha. Se o sucesso popular é tudo que um escritor deseja, nada é menos indicado do que a escrita literária séria para a realização de seu sonho. Ele poderá até conquistar esse sucesso, mas verá depressa que não há nada de muito meritório nele, pela superficialidade de seus leitores, que em maioria adquiriram seu livro devido a alguma badalação marqueteira que lhe foi necessário fazer, e devido às traições à sua realidade que será doravante obrigado a empreender, a fim de manter seu relativo sucesso.
Há uma incompatibilidade entre a escrita empenhada e lúcida e a indústria cultural que nunca é analisada com a devida profundidade, talvez porque o impasse tenha um significado mais profundo e trágico do que se possa tolerar. O escritor, ao conseguir algum nome, na certa acabará no sofá de alguma loura sorridente que fará o possível para torná-lo palatável à sua audiência. Mas a maquininha não está interessada em Literatura, nem nunca esteve, a não ser em redes educativas, vistas por pouquíssima gente – televisão, Fellini bem resumiu, é um eletrodoméstico, tem que produzir irrealidade o tempo todo, preencher uma programação com o que quer que seja, entreter, distrair, triturar assuntos e simplificá-los ao máximo para o entendimento de massa.
O ódio à complexidade pode ser percebido em qualquer entrevista no qual o entrevistado seja um intelectual ou escritor disposto a pensar, a revelar matizes, contradições, impasses – e isso se dá até nas emissoras ditas culturais. O entrevistador se exaspera, porque vê correr o tempo, quer preto no branco, respostas fáceis e assimiláveis pelos espectadores, e assim, submetido, o entrevistado percebe que não pode dar um passo para a elevação intelectual do público de modo algum e se rende. Esta rendição da complexidade à fórmula simplória para massas é a maior tragédia cultural de nosso tempo. A facilitação fica sendo facilitação eterna, proibida de dar o passo seguinte de informar com mais sutileza e rigor.
A facilitação é perversa. O mesmo processo, aliás, pode ser observado na defesa da leitura da literatura calculista e vagabunda, feita só para entreter, como um passo inicial no salto para leituras mais sérias e profundas. Não é verdade: o acostumado à literatura rasa e comercial, ao procurar um autor mais sério, não encontrando a facilidade de sempre, na qual se viciou, acaba é hostil ao pensamento matizado, à complexidade natural e irreversível do mundo, e detestando autores que rapidamente classificará como pedantes e chatos.
A atitude básica da televisão comercial, ao entrevistar um escritor, nunca é a de uma pessoa que realmente lê, mas de alguma tia simpática e de instrução duvidosa que está feliz porque um sobrinho ou um amigo lançou um livro e trata o assunto com aquele primarismo bem-intencionado e simplório de quem acha que isso é uma proeza – publicar um livro! O ato e o produto aparecem como fetiches ingênuos, como façanhas, não se discute a questão, pouco importa o que se escreveu de fato. Imagina-se, nesses círculos, com os quais os escritores, bem ou mal, terão que compactuar algum dia (para divulgar o seu trabalho) que há um caminho simples e linear do publicar um livro para vendê-lo, que há aí a realização de outro sonho brasileiro, em que se misturam a malandragem e o deslumbramento de gente em geral incomodada com as suas origens humildes: o de “ficar bem na vida”, o de ser uma pessoa valorizada entre doutores e sumidades. A televisão jamais se interessará pela verdade e o sofrimento que são indissociáveis da vida literária – porque, acima de tudo, a maquininha é perita na confecção de miragens: mostra sempre o esplendor dos fins sem mostrar a iniqüidade dos meios. Uma carreira só importa quando é bem-sucedida: a vala comum em que ficaram os demais candidatos à fama pouco importa, o mundo é de quem não tem coração algum, embora se mande tantos “beijos no coração” por aquela telinha. Todos se tornam hipócritas e cúmplices de uma euforia cuja essência é a crueldade.
Os escritores que realmente valem alguma coisa estão sempre na galeria dos inconformados, dos “outsiders”, dos que incomodam deliberadamente os padrões sociais. Têm o dever de erguer uma voz lúcida contra sandices e venenos vigentes na sociedade. Podem cair num mau-humor que é mortal para a regra de irrealidade eufórica a qualquer custo que impera, não escrita, mas fielmente cumprida, nas televisões.
Ora, em algumas conversas entre escritores, topa-se com outra faceta do horror: pouco se fala de arte literária, silêncio, exílio, renúncia – fala-se de livros vendidos ou não vendidos, de colegas que venderam mais (donde as eternas ciumeiras e briguinhas estúpidas). Quer dizer: reproduz-se, na tribo literária, a corrida darwiniana de ratos que vige no meio social – importa quem vai chegar primeiro, quem vai vender mais, como, quando moleques, naquelas rodinhas em que já aprendíamos a ser uns machões predadores, apostava-se quem urinava mais longe e quem era dono de uns centímetros a mais.
E vamos arder todos na mesma fogueira, supondo-nos alguns melhores ou mais íntegros que os outros. A vaidade que não se reconhece como tal e se impõe à frente de qualquer autocrítica é o pior inimigo do escritor, do artista em geral. O sujeito de pouco caráter e pouco talento em geral é desfibrado em sua convicção (se tem alguma) quando elogiado de maneira automática, viscosa e aduladora – os elogios criam os circuitos de compadrismo e complacência que são os responsáveis por tanto escritor ruim passando por sumidade. Na procura de holofotes, o candidato a famoso se esquece que a arte é feita lá atrás, no silêncio, na obscuridade, no trabalho sem “personalismos”. E acaba sendo inimigo visceral de gente sincera e penitente, gente que prefere, até por estratégia, colocar-se sempre criticamente, humildemente, diante do que fez.
A grande arte sempre procurou o transpessoal, não a exaltação narcisista de seu fazedor. Bom exemplo disso? Kafka, que tinha em baixa conta seus próprios escritos e teria preferido ser homem feliz a escritor de glória póstuma, certamente, mas nada podia fazer contra uma compulsão de escrever que, nele, era maior que qualquer outra consideração. A arte, em geral, é tirana assim – pouco importa que o artista durma em cama de luxo ou catre espartano, pois ele nunca passa de um instrumento privilegiado (e maldito) dela. Considerações com o sucesso e lucro são partes do homem comum, não do artista que se abriga sob a casca deste. Mas poucos são artistas, a grande maioria é homem comum mesmo.
Nada valemos como pessoas, com nossas predileções bobinhas, sobrenomes, nossos signos astrológicos e essas futilidades pelas quais as televisões se interessam. Valemos como artistas, “cavalos” de uma idéia superior, ou nada valemos, e não adianta pensar o contrário. A arte só lucra com o desinteresse, seu ritmo é outro, seu tempo é o da eternidade, não o da circunstância, do momento, que é o território da mídia.
O único fracasso que deve nos perturbar é o de escrever mal, é o de perdermos aquela fibra essencial que caracterizava um Proust ou um Graciliano. O resto é estupidez ou aquilo contra que o Eclesiastes nos advertiu – “vaidade vã”, de que os incautos se lambuzam, como se fosse um doce para lá de delicioso e não o veneno que é.
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Chico Lopes nasceu em Novo Horizonte, SP, em 1952, está radicado em Poços de Caldas desde 1992. Em Poços, é programador e apresentador de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles desde 1994. Tem vários livros inéditos de ensaios sobre filmes e literatura, além de ter publicado três livros de contos: “Nó de sombras” (2000), “Dobras da noite” (2004) e “Hóspedes do vento” (2010). Em 2011, deve estrear na publicação de novelas e romances. E-mail: franciscocarlosl@yahoo.com.br
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