Escrever romances? Ou poemas?
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A poesia resiste ao romance. Posso explicar isso citando os meus livros. Mas também posso mencionar, para início de conversa, o encontro que tive há pouco mais de um ano, aqui em Florianópolis, com o poeta Régis Bonvicino. Eu lhe perguntei se ele já havia sentido desejo de escrever um romance. Ele disse que não poderia escrever um, porque isso implica criar personagens. O pior de tudo, segundo confessou, é ter de dar-lhes nomes e sobrenomes.
Eu concordo com ele: sinto também que é muito difícil dar nomes de pessoas a pessoas nos meus textos. A minha poesia resiste a isso. Resiste ao romance. As pessoas até aparecem, mas pouco, prefiro inumanos (água, inseto, árvores, por exemplo). Meu último livro publicado, “Figurantes” (2011), é um longo desfile de “invasores” sem nome. Não são protagonistas, são figurantes, talvez bichos, insetos. Quando num livro só se veem figurantes, é poesia; quando aparecem protagonistas, herói e heroína, é romance. Batizar um figurante é a pior coisa que um poeta poderia fazer.
Não sei de onde os romancistas tiram tantos nomes e sobrenomes. Eu me sentiria ridículo se tivesse de ficar nomeando todo mundo, como eles fazem. Então a poesia me liberou disso.
Curiosamente, meus últimos trabalhos são romances. Ou melhor, “romances”. Em 2012, a Iluminuras, a editora que publica meus livros, vai lançar “Enrique Flor”. Eu sempre julguei impossível dar nome de personagem a um livro meu. Mas aconteceu. Só que esse nome, Enrique Flor, não é criação minha. Está no “Ulysses“, de James Joyce, o melhor romance de todos os tempos. Eu nunca li um romance melhor do que esse. E nele tem um personagem que me marcou muito: justamente o senhor Enrique Flor, um músico português que vai a Dublin.
Portugal e Irlanda eram países completamente desmatados no início do século XX. O prodigioso senhor Enrique Flor, cada vez que tocava seu órgão, reflorestava o ambiente, as pessoas viravam folhas, troncos, árvores completas, flores. Eu decidi contar (imaginar) o final da vida de Enrique Flor, e então eu o trouxe ao Brasil, onde ele se depara com a selva. Isso vai mudar para sempre a música dele. Ele irá conceber de outra maneira o “sex appeal” vegetal.
Então, para concluir, escrevi um tipo de romance, um poema-romance. Mas os personagens vieram do romance de Joyce. Não precisei imaginar nomes e sobrenomes. Isso eu não gosto de fazer, não tenho paciência para isso. Só fui seguindo Joyce, citando e traduzindo os nomes e os sobrenomes que eu encontrava no “Ulysses”, sobretudo os sobrenomes, que são muito sonoros, sugestivos. Um poeta pode imitar um romancista, mas não ser um romancista puro, um romancista convicto. O romance sem convicção é o romance do poeta.
Seguindo o método de John Cage, que consiste em resumir drasticamente um grande livro (em todos os sentidos), para poder lê-lo com mais comodidade em voz alta e em público, decidi resumir “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis: “Writing for the second time through ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas'”. Evitei os nomes, pois me pareceram sem importância nesse resumo. Citei algumas situações-chave e as comentei, dando a elas uma “imagem”, uma “cena” nova, criada por mim. (Aproveitei ao máximo a noção de texto póstumo.) Esse “romance” foi incluído recentemente numa revista do Rio de Janeiro, “Lado 7“, da editora 7 Letras.
Esses dois trabalhos recentes que mencionei são a prova de que a poesia resiste ao romance e escreve contra ele, mas, ao mesmo tempo, graças a isso, é capaz de modificá-lo, de limpá-lo e expandi-lo de outro modo, ou seja, poeticamente, à falta de palavra melhor. Obviamente, estou falando do meu caso pessoal. Depois de “Ulysses”, o romance que considero mais importante é “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. No capítulo 13 encontrei este nome, que considero incrível: Ludgero Barata. Eis aí o nome e o sobrenome de um pobre professor. Eu estou pensando em escrever o “poema” (a história) do professor Barata: um apócrifo fragmento póstumo do escritor brasileiro que mais admiro. Eu não poderia ter criado eu mesmo esse sobrenome, mas me sinto muito feliz de poder agora “roubá-lo” de Machado de Assis. Pois me convenço cada vez mais que nunca precisarei inventar nomes e sobrenomes. Não sou romancista, ainda bem!
O poeta sente essa felicidade — a de poder pegar nos romances já escritos os nomes que ele não pôde inventar, porque sabia, e sempre saberá, que dar nomes e sobrenomes a personagens é ridículo demais. Isso é tarefa do romancista. (Para o romancista não deve ser ridículo escrever sobrenomes, deve ser natural.) Então o poeta resiste todo o tempo a agir como o romancista, mas sem deixar de “observar” o romance…
Uso de propósito a palavra “observar”. Sempre defini a poesia como um posto de observação. É que aprecio a descrição, a imagem e a comparação. Então observo. Observo e descrevo, entre outras coisas, os romances. Para não fazer igual. Enquanto a poesia resistir ao romance, ela terá algo de seu, algo de muito específico para oferecer ao leitor.
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Sérgio Medeiros nasceu em Bela Vista (MS). É poeta e tradutor. Ensina literatura na UFSC. E-mail: panambi@matrix.com.br
2 abril, 2012 as 2:30
2 abril, 2012 as 11:07