Erosfera
O poeta, escritor, tradutor e letrista Luiz Roberto Guedes lança Erosfera (LUMME Editor, 2016), em edição bilíngue, com poemas traduzidos para o italiano por Fabrizio Wrolli e prefácio do mestre poeta Carlos Felipe Moisés (1942-2017). Musa Rara apresenta o prefácio e 4 poemas em primeira mão, com suas traduções. O livro pode ser adquirido via info@lummeeditor.
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Esfera de Eros
Por Carlos Felipe Moisés
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O neologismo do título não oferece dificuldade: a exemplo de atmosfera ou biosfera, o livro promete uma “esfera de Eros”, isto é, o espaço onde o amor acontece. É preciso atentar ainda na rima interna – outra promessa, com seu leve toque de ironia. Brincar com a sonoridade das palavras (com as ideias, os sentimentos) faz parte da esfera do amor. E isto conduz a um segundo sentido. Se o “s” do título pertencer só a Eros (é assim que o ouvido capta), o amor se livra da “esfera” e se torna apenas “fera”.
O amor, segundo Camões, não “é ferida que dói e não se sente”? Então pode acontecer em qualquer lugar, até na estratosfera, e será sempre portador de delícias e estragos, já que (outra vez, Camões) “tão contrário a si é o mesmo amor”.
Para a maioria dos leitores, apegados às normas que regem a língua como sistema, “esfera do amor” é o primeiro e talvez único sentido do título. O segundo pode passar despercebido. Já para os desapegados de normas e sistemas, ligados tão somente à materialidade imediata, “amor = fera” é o sentido que se impõe, e a abstração generalizadora – as esferas onde isto ou aquilo deve acontecer – nem será levada em conta.
São duas maneiras de ler a instigante poesia deste erosfera. Qual delas escolher? Tanto faz, desde que nenhuma exclua a outra, a fim de que o paradoxo se mantenha intacto. Na verdade, não são duas maneiras de ler, mas apenas dois diferentes pontos de partida. Pode-se começar por qualquer um, mas convém saber que na linha de chegada se encontrará, naturalmente, o outro. Para então recomeçar, da capo sine fine.
Esta breve incursão nos meandros do título confirma o óbvio: erosfera é um livro que trata de lirismo e erotismo, e contém, de quebra, engenho e arte apurados, boa dose de sutileza. Por isso é um desafio e um elogio à inteligência do leitor.
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Uma de suas belas surpresas é o convívio entre sublimação espiritualizante e libidinosidade despudorada. Cúmplices, libido e espírito dividem a cena, sem atritos, nenhum torce o nariz para o outro, nem brada ou sequer insinua: “Ponha-se daqui para fora! Este é o meu lugar!”. Depois de séculos de separação, ambos sabem que partilham a mesma contraditória esfera de Eros, e chegam até a trocar gracejos de felicidade:
humano desejá-las todas a mulher tigre a princesa narda as vedetes emplumadas e as melângelas marias a PM de batom no metrô a garçonete do bistrô essa morena que passou e os olhos líquidos os lábios úmidos as sobrancelhas imperativas de sônia regina silva aranha uma que me embroma me embruma me embruxa em sua trama de chama e chuva ninho de musgo e pluma no centro da sua teia silvaranha de onde tecedestece a minha insônia
É um bom exemplo de amor “humano” e moderno, descolado: Eros do século atual, agora livre para que sua esfera se espalhe por todas as esferas. Sabemos bem que não foi sempre assim. Desde o tempo dos trovadores (medievais), sabemos que espírito e libido não devem ocupar o mesmo espaço. Por isso, aqui a doce e pura cantiga d’amor, ali a impura cantiga de escárnio, ou a de maldizer, mais impura ainda; aqui a mulher idealizada, distante e inacessível, ali a mulher próxima, feixe e objeto de instintos corruptores.
O problema é que eram a mesma mulher e o mesmo homem-poeta, mas a tradição não quis saber de conversa, obrigando-os a se separarem, cada qual no seu lugar. Não foi assim, porém, que tudo começou. No início da nossa tradição lírico-amorosa, espírito e libido confraternizavam, poeta e amada se deixavam docemente levar pelo coração e pela genitália, e trocavam juras e licenciosidades, sabedores de que estas não fazem sentido sem aquelas, e vice-versa.
Estamos falando de Propércio, Tibulo ou Ovídio, e de tantos outros poetas latinos, de dois ou mais séculos antes de Cristo. Quer dizer, a ousada modernidade deste erosfera, a rigor, repõe em circulação o mais antigo da nossa já antiga tradição lírico-erótica. E, a propósito, o leitor conta com um atrativo extra. A edição bilíngue, orquestrada por Fabrizio Wrolli — em que cada poema é seguido de sua versão para o italiano –, permite ouvir, a intervalos regulares, um pouco da doce-áspera melodia dos poetas da Roma antiga, com os quais a poesia de erosfera tem inegável afinidade. Mas, desde esse tempo remoto, o que se passou, afinal?
Foram séculos de constantes e emaranhadas metamorfoses, que acabaram por consagrar como verdade indiscutível, sobretudo a partir de Dante e Petrarca, no limiar da Idade Moderna, a incompatibilidade entre alma e corpo, espírito e matéria (em poesia, bem entendido), que passaram a ocupar cômodos separados: a sala de visitas para uns, o quarto de dormir, ou a alcova secreta, para os outros. Mais adiante, o erotismo foi francamente banido de cena, embora ninguém fosse capaz de impedir que continuasse presente na coxia, na plateia e nos largos espaços fora do teatro, assim como nenhum poeta foi capaz de expulsá-lo de suas fantasias mais ou menos secretas, conforme o século em que tenha vivido, amado e versejado.
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Difícil resistir à tentação de simplificar: a desinibição dos antigos latinos tem que ver com o espírito pagão que os animava, assim como o idealismo exacerbado, mais a decorrente demonização da sexualidade, se associam ao advento do cristianismo. Se não resistir à tentação, o leitor dirá, depois de ter contato com a poesia de erosfera: o cristianismo já era, o paganismo voltou. Pode ser, pode ser… Mas não exageremos. (Aos interessados em desenvolver sua curiosidade em relação a esta e outras especulações, recomendo o precioso ensaio de Paul Veyne L’élegie érotique romaine: l’amour, la poésie et l’occident.) De momento, melhor ficar com a ideia mais modesta de “teatro”, sugerida no item anterior.
É disso mesmo que se trata: poesia é encenação, o poeta representa um papel. (A famosa definição pessoana, “O poeta é um fingidor”, não é só uma frase de efeito.) Propércio e seus leitores sabiam muito bem da existência de uma certa cortesã de nome Cíntia, mas sabiam também que, uma vez trazida para o papel, e invocada em quase todos os poemas, a figura se transformava em ficção, pretexto para que o poeta inventasse a sua fantasia lírico-erótica, e até se divertisse um pouco com isso. A ninguém ocorreria supor que se tratasse de amores “verdadeiros”, realmente vividos pelos protagonistas.
Mais tarde, sim, a partir da tradição petrarquista, é que se tornou impossível distinguir verdade histórica e representação teatral. Os poetas abandonaram a encenação (ou melhor, deixaram de assumir a poesia como forma de encenação) e aderiram à conveniência de apostar na “sinceridade”. Os enredos amorosos e o entrecho narrativo, resultantes da ficção dos latinos, foram substituídos pela biografia dos poetas da era pós-Petrarca.
Levou algum tempo, mas o público leitor acabou por acreditar que, antes de chegar ao papel, a poesia lírico-amorosa teria passado pela “prova” da experiência de vida efetivamente vivida, e assim tem sido, entre nós, dos tempos de Camões até hoje. Mas agora aí temos o bom exemplo deste erosfera, a nos dizer que é tudo ficção, mesmo. A esfera de Eros é (voltou a ser?) o espaço da imaginação sem limites:
cássia põe as crianças na cama toma um banho demorado veste uma camisola vaporosa que deixa transparecer seus peitos seu púbis veludoso e telefona para o marido, piloto civil, no hotel, em Natal, a serviço de um sérvio e lhe deseja boa noite, querido, durma bem | então senta-se na cama na posição de lótus liga seu laptop a câmera acorda seu olho de brasa e ela diz bonsoir, gérard para seu charmant ciber amant, na rue du faubourg, montmartre, no 46, 3o piso, Paris
O contraponto está logo ali, no poema vizinho, motete (é só reparar na ironia da rima e do refrão):
um dia diz que te adora
outra hora te menoscaba
……….sempre acaba
reconta lances romances
de um ex-amante se gaba
………sempre acaba
quem meu anjo te chamava
ora te fere – diaba
………sempre acaba
e amor que te embalava
palácio de plumas desaba
……..sempre acaba
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Outra bela surpresa é a ausência da musa inspiradora, como foi de praxe, durante muito tempo. Crente na ficção da “sinceridade” biográfica, o leitor não admitia que, por trás de todo grande poeta, não houvesse uma amada de eleição, única e poderosa, origem e ponto de convergência de toda floração lírico-erótica: Dante-Beatriz, Petrarca-Laura, Camões-Dinamene, Dirceu-Marília, Hoelderlin-Diotima, Breton-Nadja e por aí vai. Não assim com o poeta de erosfera: o seu amor-fera é adepto da variedade, não só porque suas esferas se espalham por todos os cenários, como também (ele próprio o afirma) porque, em matéria de musa inspiradora, é “humano desejá-las todas”.
Por fim, este Eros moderno acaba de vez com um dos mitos da nossa cultura, o de que é possível separar realidade de ficção, vida real de vida imaginada. É só pensar no “ciber amant” de Cássia, em Paris, tão real e verdadeiro quanto o marido, em Natal – ambos ausentes. O fato é que a ficção, ou a encenação poética, tem sido desde sempre tão convincente e tão “realista” exatamente porque a realidade em torno não passa (nunca passou?) de fantasia. Mas agora não precisamos mais nos preocupar em distinguir uma coisa da outra.
A plateia dispensou os atores, fechou o teatro e transformou em palco o mundo inteiro. “La vida es sueño”, diz Calderón de la Barca, no Siglo de Oro. O nosso século de Eros será ainda mais ouro e mais sonho. Depois de tanto tempo de marginalidade, a transgressão erótica já não precisa (não consegue?) transgredir: virou norma. A esta última talvez reste vir a ser adotada pela Nova Transgressão que aí vem. Não vem? The show must go on.
Mas isso não impede (ao contrário, recomenda) que lembremos, na antecâmara deste aliciante erosfera, a mesma advertência que Camões, dirigindo-se ao leitor, antepôs à sua lírica (o muito velho e o muito novo, outra vez, conjugados): “segundo o amor tiverdes, / tereis o entendimento dos meus versos”.
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#sexmart
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ela espicha a longa língua
lasciva & lambe a própria
axila ruiva & logo
elástica ginasta
chupa com volúpia
jocosa o dedão do pé
suga o mamilo róseo
dedilha unhas lábios
vermelhos descerra
na sarça o sorriso
rubro da corola
úmida mordente
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cum inside
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#sexmart
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lei tende la lunga lingua
lasciva & lambe la propria
ascella fulva & subito
elastica ginnasta
lecca con giocosa voluttà
l´alluce del piede
succhia il capezzolo roseo
pizzica unghie labbra
vermiglie schiude
nel cespuglio il sorriso
rosso della corolla
umida mordente
cum inside
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or fuck off
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cartilha poética
ivo viu a vulva
sillabario poetico
ivo vide la vulva
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cartomante grega
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nenhum ornamento ou instrumento além dos perfurantes olhos verdes bruxuleando presságios de naufrágios perigos de bruxedos: agora velados devoram meu livro dos dias decifram a última página|tu bem sabes: tuas paixões serão abismos de tédio, e ficarás cego, ficarás calvo, sem que isso faça de ti um sublime homero ou um mero esopo, tão só a tristeza feroz de não ter tua voz um trovão épico — sim, não morrerás no mar, chega por hoje | disse-me que abrisse outra garrafa de vinho corvo disse |toque mozart pra dissipar a tristeza| então falamos de byron |que era aquariano, bon-vivant, amante de condessas e criadas em veneza| e foi morrer lá longe |em missolonghi| tonto de espanto com a batalha que não houve em lepanto
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cartomante greca
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nessun ornamento o strumento all’infuori dei perforanti
occhi verdi fatuando presagi di naufragi perigli di fatture:
ora velati, divorano il mio libro dei giorni decifrano l’ultima
pagina | tu ben sai: le tue passioni saranno abissi di noia, e
rimarrai cieco, rimarrai calvo, senza che questo faccia di te
un sublime omero o un mero esopo, solamente la tristezza
feroce che la tua voce non abbia un tuono epico — sí, non
morirai nel mare, basta per oggi| mi disse di aprire un’altra
bottiglia di vino corvo disse |suona mozart per dissipare la
tristezza|allora parleremo di byron che era di acquario,
bon-vivant, amante di contesse e servitú in venezia e andó
a morire lontano |a missolonghi| tonto di spavento per la
battaglia che non ci fu a lepanto
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regresso de odisseu
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Por que os homens são assim, ela se queixou
quando ele tentou empalmar um seio dela,
Porque nascemos de mulher, ele filosofou
Por que até os intelectuais são iguais, ela falou
quando ele intrometeu a mão sob seu vestido,
Porque hoje é sexta-feira, é lua cheia, e vênus
brilha feliz no céu, ele fez poesia, então
ela disse que a lua propícia já era, e contou
que quando ele andava fora, em navegações
e batalhas, abatendo muralhas ou somente
ganhando seu pão com gravata e crachá, ela
punha as crianças na cama, largava o bordado
e buscava consolo no colo, nos braços e lábios
de uma boa amiga, e ele agora calado, soturno,
não sabe onde meter a cara, nem a espada
rigresso de odisseo
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Perchè gli uomini sono così, si lamentò
quando lui cercò di palparle un seno,
Perch é nasciamo da donna, lui cavillò
Perchè anche gli intellettuali sono uguali, disse
quando lui le infilò la mano sotto il vestito,
Perchè oggi è venerdì, è luna piena, e venere
brilla felice in cielo, poetizzò lui, allora lei
aggiunse che la luna propizia era passata, e
raccontò che quando lui era fuori, in navigazioni
e battaglie, abbattendo muraglie o appena
guadagnadosi il pane con cravatta e badge, lei
metteva i bimbi a letto, smetteva il ricamo
e cercava conforto nel grembo, nelle braccia e
labbra di una cara amica, e lui ora zitto, cupo,
non sa più dove infilar lo sguardo, neanche la spada
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