Epifania Joyceana


……………………Breves considerações sobre a epifania joyceana

 

……………………………….[Ilustração by Matheus Vigliar]

 

A noção de epifania criada pelo escritor irlandês James Joyce (1882-1941) teve um papel fundamental em seu processo de criação literária. Foi a partir da reflexão sobre o tipo de literatura que pretendia desenvolver – que mais tarde daria forma à sua teoria da epifania –  que teve início a carreira de um dos escritores mais célebres da literatura ocidental, sobretudo a partir da publicação de Ulysses (1922).

O termo epifania tem sua origem na palavra grega epiphaneia, que pode ser traduzida como aparição ou manifestação; no contexto religioso do catolicismo, passou a significar uma revelação divina. Já a noção de epifania literária teria surgido, como sugere Ashton Nichols[1], durante o período do romantismo inglês (1800-1850), principalmente com William Wordsworth, através do que ele denominava de “spots of time”:

There are in our existence spots of time,
That with distinct pre-eminence retain
A renovating virtue, whence–depressed
By false opinion and contentious thought,
Or aught of heavier or more deadly weight,
In trivial occupations, and the round
Of ordinary intercourse–our minds
Are nourished and invisibly repaired;
A virtue, by which pleasure is enhanced,
That penetrates, enables us to mount,
When high, more high, and lifts us up when fallen.
This efficacious spirit chiefly lurks
Among those passages of life that give
Profoundest knowledge to what point, and how,
The mind is lord and master–outward sense
The obedient servant of her will. Such moments
Are scattered everywhere, taking their date
From our first childhood. (…)[2]

Wordsworth é frequentemente apontado como uma das possíveis influências para a construção da noção de epifania de Joyce, uma vez que sua poesia também buscava as epifanias nas coisas comuns, conectando o divino com o espírito criativo do ser humano, no entanto, apesar de Joyce parecer concordar com essa ligação, na medida que escolhe um termo tão carregado semanticamente, ele instaura seu procedimento literário na vida real, como aponta  Northrop Frye ao dizer que “Joyce parece ter pensado na base da epifania, em seu contexto literário, como um evento real, posto em contato com a imaginação criativa, mas intocado por ela, de modo que preserva a sensação de algo contido pela imaginação e ainda real em seus próprios termos”.[3]

Além de denominar seu procedimento literário inicial de epifania, Joyce criou, através do personagem Stephen Dedalus, a teoria da epifania,  apresentada e desenvolvida em Stephen Hero (1944, publicado postumamente), manuscrito parcialmente destruído pelo próprio autor, depois de ter sido recusado inúmeras vezes pelos editores. Recuperado do fogo por Nora Barnacle, esposa de Joyce, muitos trechos foram inseridos em A Portrait of the Artist as a Young Man (1916). É, inclusive, nesse romance que encontramos, logo nas primeiras páginas, a primeira epifania registrada por Joyce. Vale a pena, porém, apresentar as duas versões. Na primeira,  o próprio Joyce, sua mãe e uma vizinha aparecem como “personagens”:

Mr Vance – (comes in with a stick) . . . O, you know,
he’ll have to apologise, Mrs Joyce.
Mrs Joyce – O yes… Do you hear that, Jim?
Mr Vance – Or else – if he doesn’t – the eagles’ll
come and pull out his eyes.
Mrs Joyce – O, but I’m sure he will apologise.
Joyce – (under the table, to himself)

…………………Pull out his eyes,
…………………Apologise,
…………………Apologise,
…………………Pull out his eyes.

……Apologise,
……Pull out his eyes,
……Pull out his eyes,
……Apologise.[4]

Na versão que compôs A Portrait, Joyce faz algumas alterações, entre elas, a substituição do nome dos personagens. Tudo indica que essa epifania teve origem numa lembrança de um acontecimento da sua infância, e a própria epifania nos indica que foi a partir da situação de medo vivenciada, que Joyce / Stephen Dedalus teve certeza de sua vocação como artista. Diante do medo e das ameaças, caso não se desculpasse por dizer que quando crescesse se casaria com uma vizinha protestante, sendo sua família católica, encontra seu refúgio na arte e compõe um poema:

The Vences lived in number seven. They had a different father and mother. They were Eileen’s father and mother. When they were grown up he was going to marry Eileen. He hid under the tables. His mother said:

– O, Stephen will apologize.

Dante said:  – O, if not, the eagles will come and pull out his eyes. –

…………………Pull out his eyes,
…………………Apologize,
…………………Apologize,
…………………Pull out his eyes.

…………………Apologize,
…………………Pull out his eyes,
…………………Pull out his eyes,
…………………Apologize.[5]

Anterior ao início dos registros das epifanias, temos acesso ainda aos argumentos de Joyce para justificar o que se tornaria seu procedimento literário. Stanislaus Joyce, em My brother’s keeper: James Joyce’s Early Years (1957), relata essa conversa com seu irmão, James Joyce. Em alguns trechos do diário, que também são citados por Richard Ellmann em sua biografia de Joyce, o escritor explica que pretendia partir da banalidade do cotidiano para construir algo grandioso em termos literários, para isso, aponta uma situação real para ilustrar seu argumento.

Do you see that man who has just skipped out of the way of the tram? Consider, if he had been run over, how significant every act of his would at once become. I don’t mean for the police inspector. I mean for anybody who knew him. And his thoughts, for anybody that could know them. It is my idea of the significance of trivial things that I want to give the two or three unfortunate wretches who may eventually read me.[6]

E depois, apresenta sua intenção de proporcionar “prazer intelectual” e “regozijo espiritual” às pessoas, imaginando o resultado de seu procedimento como algo que traria elevação espiritual, mas sem a necessidade da religião, e sim através do contato com a arte:

Don’t you think there is a certain resemblance between the mystery of the Mass and what I am trying to do? I mean that I am trying … to give people some kind of intellectual pleasure or spiritual enjoyment by converting the bread of everyday life into something that has a permanent artistic life of its own … for their mental, moral, and spiritual uplift.[7]

A noção de epifania ocupa um lugar central na criação literária de Joyce. Ela não se restringe apenas à teoria da epifania presente em Stephen Hero, que ao final de sua elaboração é definida como: “uma súbita manifestação espiritual, fosse na vulgaridade de uma fala ou de um gesto ou na memória da própria mente”,[8] nem tampouco aos seus respectivos registros.

Muitos críticos sustentam, ao exemplo do trabalho seminal desenvolvido por Henry Levin (1944),  que houve uma evolução no processo de aplicação do conceito, ou seja, a noção da epifania presente na obra de Joyce não se limita apenas aos seus escritos iniciais: ela atravessa toda sua prosa. Irene Hendry Chayes argumenta que “a obra de Joyce é um tecido de epifanias, pequenas e grandes, desde as imagens fugazes a livros inteiros”.[9] Em cada obra em prosa escrita por Joyce é possível notar os traços de sua intenção inicial: conforme disse ao irmão, pretendia “converter o pão de todos os dias em algo que possuísse uma vida artística permanente em si mesma…”[10]. É o que vemos acontecer em Ulysses, por exemplo, pois acompanhamos um dia comum na vida do personagem principal, Leopold Bloom, e nada extraordinário acontece. Joyce relata as atividades mais banais de um personagem nada heroico. O extraordinário da obra não está nos acontecimentos, mas na maneira como são narrados. É o trabalho do artista da palavra que é capaz de transformar a banalidade em algo que é capaz de possuir uma vida artística em si, como Joyce pretendia.

 

 

 

 


[1] NICHOLS, Ashton. The poetics of epiphany: nineteenth-century origins of the modern literary moment. University Alabama Press, 1987.

[2] WORDSWORTH, William. The Prelude or, Growth of a Poet’s Mind; An Autobiographical Poem. London: Edward Moxon, Dover Street. 1805, versos 208-225.

[3] FRYE, Northrop. “Edymion: The Romantic Epiphanic”. In: Northrop Frye’s Writings on the Eighteenth and Nineteenth Centuries. Org. Imre Salusinszky. Toronto: University of Toronto Press, 2005, p.200.

[4] JOYCE, James. Epiphanies. In: The Workshop of Dedalus. Northwestern University Press, 1965, p. 11.

[5] JOYCE, James. A Portrait of the Artist as a Young Man. London: Wordsworth Classics, 1992, p. 4.

[6] ELLMANN, Richard. James Joyce. New York: Oxford University Press, 1983, p. 163.

[7] ELLMANN, Richard. James Joyce. New York: Oxford University Press, 1983, p. 163.

[8] Joyce, James. Stephen Herói. Tradução: José Roberto O’Shea. São Paulo: Hedra, 2012.p. 171.

[9] CHAYES, Irene Hendry. “As epifanias de Joyce” trad. Bernardina da Silveira Pinheiro. In: Epifanias. Tradução de B. S. Pinheiro. Revista da Letra Freudiana, Rio de Janeiro, Relume –Dumará, ano XII, nº 13, 1993, p125, p.125.

[10] ELLMANN, Richard. James Joyce. New York: Oxford University Press, 1982, p. 163, tradução minha)

 

 

 

 

 

 

.

Leide Daiane de Almeida Oliveira é doutoranda em Estudos da Tradução e mestre em Inglês: Estudos Linguísticos e Literários pela UFSC. Especialista em Educação a Distância e graduada em Letras – Inglês pela UNEB. E-mail: daiane.deao@gmail.com

 




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook