Diferentes, divergentes – mas próximos
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Lima Barreto e Machado de Assis, verdadeiros, natos, parentes literários. Pô-los ‘frente a frente’, vis-à-vis qual espelhos paralelos, exibir seus elementos em comum – que existem, e significativos – mas também e em especial suas diferenças – que são marcantes – é o que se propõe neste estudo.
Mais do que dois grandes escritores, dois epígonos da literatura brasileira, essencialmente semelhantes em concepções filosóficas, temas, influências, pontos de vista – ainda que sob formas, modos e discursos distintos. De modo convergente, mas de forma e modo divergentes, analisaram os cenários políticos, históricos, institucionais, sociais, culturais de suas épocas e a existência do homem – importando menos o tipo diverso de sociedade em que viveram do que a similitude de seus procedimentos e o modo de observar as reações dos indivíduos entre si. Machado, privilegiando as nuances, dissecando-o em sua essência, revelando sutilezas, contradições e ambiguidades psicológicas; Lima, sem linhas e focos enviezados, desnudando suas fraquezas, insuficiências, submissões, condições sociais.
Ambos muito próximos de várias maneiras – ainda que bastante diferentes. Resisto (mas não de todo, até porque bastante sedutora…) à tentação de insinuar uma especulação literária-filosófica-ideológica a partir de suas similares origens – étnicas e sociais – face ao mundo em que viveram, almejaram e que Machado conquistou, Lima não. Simetria e paralelismo social os criaram em ambientes que não os dominantes, os colocaram em situação inicial desfavorável e os elevaram, não sem esforços e afinco idealístico, ambiciosos, plena e lucidamente conscientes de seus talentos e méritos, desejosos de superação e ascensão – muito mais em Machado do que em Lima – mas gradativamente tomados, ambos em igual teor, pelo ceticismo, pelo desencanto, pela desilusão , progressivamente se afastando das convivências, do ambiente social dominante , se isolando, a observarem, cada um a seu tempo e modo, a dissolvência de mundos vinculados e correlatos – Machado, com serenidade e conciliação; Lima, com a consciência convulsiva da ‘automarginalização’.
Claro que aproximar o criador de Policarpo Quaresma do autor de Dom Casmurro é tarefa audaciosa, a exigir cuidados especiais e um trabalho de profundidade. A começar por tentar estabelecer paralelismos e confrontos entre um escritor do século XIX e outro do século XX, como que o transplantar (ou ‘transcorrer’ temporalmente) – mas com a certeza de que, em se tratando de Machado, seria/é possível , tão lúcido, anunciador, antecipador como era, desconfiando e denunciando ainda nos oitocentos a sociedade fragmentada, desequilibrada, injusta, que existia e,pior, se projetava para o século seguinte – na qual Lima viveria e se debateria, com sofrimento e agressividade, veemente e vigoroso no discurso militante. Nessa linha e raciocínio, não temo errar. Machado de Assis precursor de Lima Barreto – unidos histórica e indissoluvelmente, escritores do fim de um século e do começo de outro, da passagem do XIX ao XX. Ambos pouco, ou quase nada, crédulos do progresso, da ciência, da razão, descrentes das transformações e das reformas, anunciadas e nunca efetivamente realizadas; ambos denunciando as formas vigentes e futuras de dominação e injustiça.
Tidos como viventes de dois mundos quase que distintos, distantes, opostos – mas não é tão verdade assim. Sob muitos aspectos não há tanta distância entre as sociedades imperial e republicana do Rio de Janeiro, por extensão do Brasil, entre o boêmio de Todos os Santos e o recluso do Cosme Velho.
Praticamente nada contemporâneos: Machado nascido em 1839, Lima em 1881, só viveram ‘em comum’ por cerca 27 anos; Machado morre em 1908, Lima em 1922 – a considerável diferença no nascimento já não é tanta na morte. Não coincidem os respectivos períodos de vida literária, mas o projeto literário, muito – tantos os temas em comum: o indivíduo, a vida, a morte, o amor, a mulher, a sociedade, o poder, a injustiça. Porque, assim como Lima, Machado, embora em outras forma, formato, estilo, linguagem e foco, também fez, a seu modo, da literatura “missão”.
Por trás das aparências distintas encontram-se afinidades significativas. Socialmente, o ambiente refinado a que Machado se esforçou para ascender espelha-se e é revertido no ambiente rude em que Lima cresceu e optou conscientemente por viver. Cultural, filosófica e ideologicamente, Machado ‘infiltrado’ no estamento social e político dominante para dissecá-lo, denunciá-lo, miná-lo pela ironia menipéica, pela sátira sarcástica, retrata os poderosos, os esnobes, os inúteis, os ociosos, os tolos; Lima, ‘automarginalizado’ do sistema social e econômico para criticá-lo, rejeitá-lo, repudiá-lo pelo discurso militante, pelo grito panfletário, mas da mesma forma pela ironia satírica, pela alegoria sarcástica, desenha os dominadores, os títeres, os opressores, os oprimidos, os ridículos.
Machado, testemunha do crepúsculo do Império e o estertor da escravidão, bem como o alvorecer da República – conservado, imune, o patriarcalismo; Lima, vivente do ascenso de um novo regime, a sedimentação do patrimonialismo, o fortalecimento do poder – mantido, intocável, o patriarcalismo. Em Machado, a dissolução de um mundo já esvaziado das formas de prestígio tradicionais, receptáculo de forças novas e estranhas, uma dinâmica desconhecida e inquietante; em Lima, a formação de um mundo carregado de novas relações e padrões, pleno de forças avassaladoras, a eclosão de uma opressiva dinâmica.
Em Lima Barreto, a tirania republicana-aristocrática-burguesa assoma nos ideais de modernização e progresso, do mesmo modo que em Machado de Assis a violência escravocrata se infiltra capilarmente na elegância e nos bons modos da sociedade oitocentista – provocando em ambos a necessidade, obrigatoriedade de uma espécie de desagravo, que um procura camuflar com o tom ameno e prosaico de sua escrita, o outro ao contrário, denuncia incondicionalmente com vigor e acidez.
Machado, retratista dos proprietários, dos que vivem de renda, dos senhores e patrões, dos elegantes e aristocratas, dos fúteis e fugazes poetas, literatos e artistas, também dos serviçais, dos agregados, dos inquilinos; Lima, desenhista dos bovaristas, dos arrivistas, dos despossuídos, dos espoliados, dos destituídos, dos doutores, dos falsos sábios, dos nefelibatas. Ambos, acima de tudo, dois grandes comentaristas da espécie e da condição humanas : não tanto o indivíduo isolado, mas sua conduta social e sobretudo a sociedade que os abrigava.
Como a literatura capta muito – ou tudo – da realidade social, tanto em Lima como em Machado é possível encontrar manifestações de um mesmo processo com efeitos diversos e característicos – um denominador comum, uma linha de continuidade, nos contos e nos romances, nas crônicas e nos artigos. Em contato, ou em confronto, as respectivas obras exibem processos similares e relacionados, cada um se revelando e desdobrando no outro, como espelhos que se refletissem. Os elementos, vetores e forças que atuam nas obras de Lima e de Machado exprimem e expõem um mesmo movimento recorrente, um ritmo cíclico, o percurso da realidade à fantasia, e vice-versa, da ilusão à desilusão, por via da política e da história, do amor e do sentimento, da memória e da reflexão, com os recursos do humor e da ironia (crítica).
Ambos perceberam nitidamente que os efeitos nunca se desvinculam das causas, e isso presente e atuante em suas obras, coerente com suas respectivas origens, vivência e estratificação social. No universo autoral de Lima e Machado, política, história e sociedade estão intensamente presentes – intimamente entranhadas em muitas situações ficcionais e em praticamente todas não ficcionais, a impulsionarem enredos, monitorarem a escrita, situarem-nos em seus respectivos contextos históricos.
Três esferas que se integram, se intertextualizam, se interativam e desdobram-se, fragmentam-se em correlações estruturais, conferem o tom geral a suas obras e suas linhas narrativas e temáticas mais intensas. Esferas capitais que condicionam e determinam a existência do indivíduo no ambiente social de suas épocas, inclusive fazendo-o ter de utilizar artifícios de compensação para superar as adversidades que lhe são impostas. Esferas tão dominantes, quase onipresentes, indispensáveis, inevitáveis, imprescindíveis para as próprias essências, viços e grandiosidade das respectivas obras. Desde o início, a experiência autoral forneceu a Lima e a Machado a percepção da correlação estrutural dessas esferas e da sua funcionalidade histórica e literária, perceberam como uma se prolongava na outra, como se articulavam em um equilíbrio dinâmico e renovável., nelas se dando exemplarmente as interações entre indivíduo e sociedade.
Ao dotarem suas obras desses elementos, nitidamente compatíveis e associados, nada mais fizeram do que esclarecer no plano da literatura as exigências que as sociedades em crise de seus respectivos tempos demandavam às condutas interior e exterior dos indivíduos e ao modo como estes reagiam. Ambos se tornaram mestres em construir, flagrar e analisar a complementaridade e a intercambialidade intrínseca desse processo – a política reflexo da história, uma e outra determinante dos rumos da sociedade.
Sob tais esferas, em Lima o estilo e linguagem vibrantes, pulsantes, irregulares em seu ritmo discursivo, contra os padrões, as normas, as convenções, destoante do ambiente cultural de seu tempo, atentória à prática textual aristocrática de então, sem subterfúgios ou camuflagens. Contraposto a Machado, de escrita fina, equilibrada, a prosa elegante, algo refinada, sob os ritos do respeitável e por todos aceita, obedecendo aparentemente as convenções da sociedade – algo aqui e ali sutilmente desobediente, ‘subversivo’ — mas feita também de silêncios e cesuras, de não-ditos e reticências.
Por meio dessas esferas que se explicam de forma recíproca, Lima e Machado puderam observar a grande mutação histórica do país de um século para outro e suas ação e conseqüências na existência, vida e interioridade, do indivíduo. Diferentes, nos dois, os enfoques, ou focos, ou oscilações, entre mundo exterior e interior – mas em comum ambos retratam o exterior (o meio, a sociedade, a realidade), a partir do interior (o indivíduo, a pessoa, a mulher).
Em ambos, malgrado os subterfúgios machadianos, a obra dotada e fadada a ostentar sólidas conotações política e social. Lima, colocado literariamente sob um regime autoritário, a aristocracia em relativo declínio integrada a uma ascendente burguesia, despótica, que se diz progressista,.utiliza o discurso franco e forte, algo panfletário, acoplado ao alegórico a que se liga o simulacro; Machado, posto literariamente no horizonte do mundo patriarcal , familial e escravocrata, vale-se do ceticismo e da ironia, do subterfúgio, de disfarces e dissimulações.
Na seara ficcional, mister observar a figura feminina em um e em outro. Em ambos, irrestritos defensores dos direitos femininos de toda ordem, aparecem mulheres notáveis; em ambos, quase todas elas superiores aos homens; em Lima, se dependentes dos homens e submissas ao casamento e à moral que lhe era imposta pela sociedade, carentes de educação e oportunidades profissionais, são muito mais fortes, em sua maioria ostentam atitude e comportamento progressistas, avançados; em Machado, sem serem propriamente heroicas, edificantes ou modelares, são marcantes, mesmo quando fúteis, frívolas, volúveis.
Entre elas, e entre personagens masculinos, diálogos e relações possíveis, bastante plausível uma conversibilidade entre personagens – a ficção de um e de outro, em confronto, permitem especular: Olga e Capitu, Clara dos Anjos e Virginia, Edgarda e Sofia, Cló e Flora, Adélia e Marcela, a Lívia barretiana e a Lívia machadiana. Tudo indica que Gonzaga de Sá, por exemplo, veria Aires; Policarpo Quaresma ficaria satisfeito em conversar com Quincas Borba; Numa e Brás Cubas, parceiros e cúmplices, trocariam confidências indiscretas, compartilhariam amantes, tramariam ações escusas.
De modo geral, os personagens de Lima e Machado se não frequentam, em tempos diferentes, os mesmos tipos de ambientes sociais – é claro poder-se afirmar que transitam pela seara comum da ficção literária – circulam, nas respectivas em épocas distintas, por um mesmo cenário urbano; a cidade do Rio de Janeiro, Lima e seus “amados subúrbios” (crítico das áreas nobres,em especial Botafogo) , Machado e o Centro e certos bairros da hoje zona sul. A cidade carioca, espaço geográfico inerente a um e a outro autor, revelando semelhanças e similaridades, convergências e confluências, identificabilidades e igualações.
Incontestável, que a par do parentesco literário, de pontos e elementos em comum, persistem neles diferenças e divergências, contrastes e confrontos – os quais, reflitamos, poderiam menos desmentir um Lima oposto de Machado, e vice-versa, e mais uma complementaridade. Sob tal ótica e lente, procurei encontrar em Lima e Machado possíveis e plausíveis conexões dessa complementaridade lastreada na convergência das divergências – ou valendo-se da expressão do compositor popular, nos reflexos ‘do avesso do avesso do avesso’.
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Mauro Rosso é professor e pesquisador de literatura brasileira ; ensaísta, escritor ; autor de São Paulo , a cidade literária (2004); Cinco minutos e A Viuvinha, de José de Alencar: edição comentada (2007 ); Contos de Machado de Assis: relicários e raisonnés (2008)- finalista do Jabuti 2008,Teoria e Crítica Literária; Contos de Arthur Azevedo: os “efêmeros” e inéditos (2009); Escritos de Euclides da Cunha: política, ecopolítica, etnopolítica (2009); Lima Barreto e a política: os “argelinos” e outros contos (2010); Lima Barreto vs. Coelho Neto: um fla-flu literário (2010); Machado de Assis,crônicas: “A+B” e “Gazeta de Holanda” (2011). Colaborador (c\Gustavo Franco) da coletânea Machado de Assis e a economia: o olhar oblíquo do acionista (2007). Idealizador e organizador da obra Escritores brasileiros e a cidade de Petrópolis (no prelo) – para Secretaria Municipal de Educação de Petrópolis. Idealizador e organizador do conjunto digital contos de Machado de Assis em chaves temáticas, in Germina Literatura, 2008 [www.germinaliteratura.com.br]. Idealizador e organizador de audiolivro Contos memoráveis de Arthur Azevedo(2009). Palestrante e conferencista em universidades e entidades culturais. Escreve textos, artigos e ensaios sobre literatura brasileira para revistas acadêmicas e portais de literatura). Desenvolve projetos e programas de pesquisa literária para entidades acadêmicas. E-mail: rosso.mauro@gmail.com
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