Comissões, corrupção e poder
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No post que publiquei no dia 19 de outubro, sobre as investigações no PNLD, mencionei que anteriormente ao sistema de escolha dos livros pelos próprios professores, os que eram adquiridos pelo programa eram escolhidos por Comissões de representantes de secretarias e do MEC. Mencionei também fatos deprimentes que soube que aconteceram na época, sem citar nomes nem empresas.
Quero deixar explícito que essas cenas deprimentes não afetavam todos os membros das comissões. Os “espertos” das editoras que forneciam os livros já sabiam quais eram os mais frágeis e que poderiam ser convencidos pelos métodos pouco ortodoxos.
É bom deixar claro também que, nos casos que conheço de perto, esse tipo de prática nunca passou pelo meu conhecimento (o que não pode dizer que não tenham existido, mas nunca soube de nada).
Em outras ocasiões, além desse post, já declarei várias vezes que tenho verdadeira alergia a essa história de selecionar livros para aquisição de acervos, sejam de livros escolares, sejam para acervos de bibliotecas públicas. É sobre isso que desejo refletir um pouco.
O primeiro ponto é afirmar que estou longe, muito longe, de aceitar que a corrupção seja o “método preferencial” de ação junto aos agentes públicos. A maioria absoluta dos funcionários públicos que conheci é constituída por pessoas íntegras, dedicadas ao trabalho e que não cedem às tentações da corrupção.
Essa mania nacional, que não vem de hoje, de achar que a corrupção é a raiz de todos os males do país é, na minha opinião, um enorme equívoco.
A corrução é intrínseca a todas as estruturas de poder. Não só é um componente da economia capitalista, e sim um fenômeno constituinte de sistemas de poder.
Mas não quero fazer digressões aqui sobre corrupção em geral. No caso das comissões para escolha de livros, o problema pode ter características bem próprias, e longe dos casos deprimentes em que dinheiro e favores trocam de mãos.
Vejamos alguns exemplos que provocam minha alergia às comissões:
– A “SÍNDROME DO LIVRO BOM”. Um segmento especial dos estudiosos do livro e da leitura – que costumo chamar de leiturólogos – sustenta, invariavelmente, uma coisa meio nebulosa que chamam de “bons leitores” e que são bons leitores porque leem os “livros bons”. É uma tautologia curiosa. Os “bons leitores” se formam lendo o livro que os leiturólogos já definiram previamente como “bons”. A categoria dos “livros bons” se distingue, desde logo, por ser excludente: bestsellers, por princípio, não podem fazer parte dessa categoria; livros que sejam informativos também são largamente excluídos da categoria. “Livros bons”, por sua vez, são sempre de literatura e ensaios bem fundamentados sobre assuntos profundos. Ao terminar a leitura de um “livro bom”, o “bom leitor” tem seu intelecto e sua alma alçados a um nível superior. Mas, sobretudo, o “livro bom” é aquele que o leiturólogo qualifica como tal. E, portanto, seleciona para ser adquirido para acervos, etc. É o subjetivismo de uma categoria específica de leitores que define o “livro bom”.
Na área dos livros didáticos e escolares, “livro bom” é sempre aquele que expressa a corrente pedagógica mais “moderna ou “avançada”, da qual que o professor-comissário-avaliador faz parte.
Valem exemplos de como se processa a exclusão feita pelos leiturólogos.
Pouco tempo depois de iniciada a avaliação sistemática dos livros didáticos, com a malfadada classificação por estrelas, as pesquisas de uso dos livros enviados pelo MEC revelou enormes dificuldades. Os livros bons que alcançassem três estrelas eram o quente do construtivismo. Livros que tivessem uma ou duas estrelinhas eram razoáveis. Sem estrelas, eram os livros mais tradicionais. Pouco importa que a imensa maioria dos professores não estivesse capacitada para usar os avançadíssimos métodos construtivistas. A indução dos livros estrelados aumentava a solicitação deles pelos professores (imaginem a pressão, subjetiva e objetiva, para que adotassem os livros considerados como melhores pelos professores-doutores avaliadores). Resultado: muitos acabavam sendo deixados de lado por quem não sabia como usá-los.
– “BIBLIOTECA É PARA LITERATURA”
Outra característica perversa das ditas comissões é o foco exclusivo na sua área. No caso, a dita literatura, seja ficção ou não ficção. Quando a Biblioteca Nacional, ou o MinC, compram livros para distribuição de acervos para bibliotecas, invariavelmente são livros de literatura, de ficção ou não-ficção. Ora, nada mais estranho e distante do papel das bibliotecas públicas que isso.
O documento da UNESCO-IFLAA que até hoje é um instrumento básico para constituição, gerenciamento e desenvolvimento de bibliotecas públicas é explícito a esse respeito:
“1.3 A finalidade da biblioteca pública
Os principais objetivos da biblioteca pública são facilitar recursos informativos e prestar serviços mediante diversos meios com o objetivo de cobrir as necessidades de pessoas e grupos em matéria de instrução, informação e aperfeiçoamento pessoal, compreendidas também atividades intelectuais de lazer e ócio. Desempenham um importante papel no progresso e manutenção de uma sociedade democrática ao oferecer a cada pessoa acesso a toda una série de conhecimentos, ideias e opiniões”.
Ilustrativa dessa visão restrita das compras do MinC de acervos para bibliotecas é o que vi ao indicar um documentário para uma professora-doutora que participava da seleção de livros para aquisição pela BN. A Edições SM patrocina um prêmio bem interessante, o “Barco a Vapor”, e em uma das entregas do prêmio foi distribuído entre os presentes o DVD com documentário intitulado “Um abrigo entre livros” cujo link está aqui. https://youtu.be/HROjsxYI1gc O filme mostra o esforço de um grupo de ocupantes do prédio da Av. Prestes Maia, 911, no centro de S. Paulo para montar uma biblioteca no espaço que seria a garagem. A ocupação começou em 2002 e as 468 famílias (mais de 2.000 pessoas) limparam o edifício deteriorado, recuperaram instalações hidráulicas e elétricas, drenaram o esgoto que inundava o porão e, em 2005, tomaram a iniciativa de montar a biblioteca, com livros doados e recolhidos no lixo. Lá pelas tantas, aos 3:20 minutos do documentário, o morador Severino Manoel de Souza diz que vai mostrar o primeiro livro da biblioteca e o que mais circulou nos primeiros meses. O título: “Eletricidade Básica”. É óbvio: os ocupantes precisavam levar energia a cada unidade, ninguém gosta de levar choque, e o livro ajudava.
A resposta da professora-doutora membro da comissão: “Isso é problema do Ministério da Ciência e Tecnologia, não da Biblioteca Nacional”! Confesso que o que pensei na hora é impublicável.
Nos meus anos de militância política, estive em inúmeros conjuntos habitacionais (os velhos COHABs). Eram raríssimas as casas que não haviam sido ampliadas. Um puxadinho, um mezanino ou mesmo um segundo andar. O curioso é que, mesmo quando feitos por trabalhadores da construção civil, as colunas e lajes construídas eram evidentemente superdimensionadas. O pessoal trabalhava na construção de prédios, e não sabia calcular colunas e lajes para um simples puxado ou um andar a mais. Isso acontece nos conjuntos, nas favelas e por aí afora. Se existe livros de técnicas de construção simples (é possível que existam), certamente não estão em nenhuma biblioteca. Não são selecionadas por sábios, e os trabalhadores se intimidam em entrar em bibliotecas que só tem os “livros bons” e nada que lhes interesse.
– SÁBIOS ESCOLHEM LIVROS DE SÁBIOS. – Sábios não seriam se não escolhessem os livros dos outros sábios. E, como uma mão lava a outra… A história é ilustrativa. Quando Paulo Renato tomou a iniciativa da primeira Biblioteca do Professor, para que os mestres de cinquenta mil escolas públicas (era um projetinho piloto) tivessem consigo uma coleção de livros que os ajudassem a entender o país, etc, etc, etc., convocou uma comissão de sábios, bem sábios e insuspeitos, para fazer a seleção. Quem quiser ver a lista completa, que busque no Google. Vale a pena dizer, que além de livros dos próprios sábios, foram incluídos os inevitáveis (Machado de Assis, por exemplo), e clássicos outros, entre os quais destaco: coleção completa dos “Sermões” do Padre Vieira e uma edição do “Uraguai”, o poema arcadista do ínclito Basílio da Gama, que hoje só é lido por alunos de doutorado… Ainda bem que incluíram uma coleção dos livros infantis do Monteiro Lobato. Mas lá se foram cinquenta mil coleções do Padre Vieira e do “Uraguai” para professores de todo o país.
Se alguém considera que essa seleção é realmente uma contribuição para melhorar a compreensão que os professores das escolas públicas têm da Pindorama, que se apresente (desde que não seja um dos sábios, é claro).
São modestos exemplos que justificam minha alergia a essa história de comissões para escolha de acervos. O que todos têm em comum é a usurpação do poder de escolha do leitor. Com um ou outro pretexto, retiram do leitor o direito de escolher o que ler, o direito de decidir que rumos podem tomar suas buscas de informação, de lazer. Esse é o defeito principal dessas comissões, a última instância do que podemos chamar de autoritarismo: a usurpação do direito do cidadão decidir o que quer ler.
Mas é preciso fazer mais algumas considerações.
É bom que haja avaliações de qualidade dos livros oferecidos, desde que restrita a aspectos específicos: erros factuais, não fazer apologia ao racismo e à discriminação e outras vedações da Constituição. E só.
Certamente é ótimo que as bibliotecas ofereçam aos usuários livros do cânone, e que os atendentes, bibliotecários e agentes de leitura tenham capacidade para orientá-los sobre as diferentes alternativas. Mas é imperativo que as opções de escolha dos leitores sejam respeitadas, e não destratadas como inferiores. O cidadão que chega na biblioteca e quer ler a Kéfera ou Paulo Coelho TEM O DIREITO de encontrar esses livros lá. Tem o direito porque a biblioteca é mantida com os impostos que ele também paga. Se M. Chirac pespega uma Légion d’Honneur no Mago e o cita como exemplo da literatura brasileira, com que diabos vem um sábio local dizer que o leitor brasileiro não tem o direito de ler seus livros?
A grande questão é exatamente essa: permitir que os usuários e administradores das bibliotecas tenham voz ativa na definição dos acervos adquiridos, e mesmo nos enviados pelo governo.
Evidentemente a definição de acervos não é o único problema das bibliotecas públicas brasileiras, mas certamente é um deles. Acervos distanciados dos desejos e expectativas dos usuários simplesmente os afastam das bibliotecas. Para que voltar se os livros que querem ler não está lá, e ainda os olham com cara de burro?
O que caracteriza essas comissões, para mim, portanto, não é a qualidade da escolha, mas uma questão de usurpação do poder do leitor ou do professor de escolher o que querem ler. É uma manifestação de um micropoder que não é menos deletério por ser micro.
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[de seu site, http://oxisdoproblema.com.br/]
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Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, Diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil Pode Ser um País de Leitores? Política para a Cultura, Política para o Livro, pela Summus Editorial. Site: http://oxisdoproblema.com.br/ E- mail: felipe.jose.lindoso@gmail.com
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