Cinema de Arte
…………………………….No tempo do cinema de arte
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“Eu acho que fui um cara de sorte em ser jovem num tempo em que o cinema do mundo inteiro passava por uma fase brilhante. Talvez seja difícil agora, na era do Netflix, explicar às pessoas a sensação de ir ver o filme novo desta semana e ser Pierrot Le Fou de Godard. E na semana seguinte havia um filme novo de Fellini, e na semana depois dele, o novo filme de Kurosawa. E na semana seguinte veríamos o novo filme de Bergman. E depois, o novo de Buñuel. E estes filmes nos quais pensamos hoje como os grandes clássicos do cinema mundial eram as estréias da semana.”
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Eu tinha pensado nisso vendo comentários de Julio Cortázar depois que se mudou de Buenos Aires para Paris. Talvez por se dirigir a um amigo artista plástico e poeta (Cartas a Los Jonquières, 2010) ele fale pouco em cinema, mas de vez em quando ele mostra que estava vendo os mesmos filmes que Rushdie (nessa época, ambos eram desconhecidos e inéditos, e ver aqueles filmes pode lhes ter encorajado a ambição):
“Mais notícias de Paris. Vimos Intermezzo pela companhia de Barrault (suponho que o viste em B. A.) e gostamos muito. Mas quem nos sacudiu de verdade foi La Strada [A Estrada da Vida], uma película italiana de Fellini que deixou Paris inteira com as patinhas para cima, e com razões. Não sabes se vai passar aí? É um produto quase indefinível, onde a pantomima está sempre presente através de sua estranha e assombrosa protagonista. Se passar aí, não deixes de vê-lo. Cedendo a uma fraqueza que nos custou 500 francos fomos ver On the Waterfront [Sindicato de Ladrões], o filme tão elogiado de Elia Kazan, com Marlo Blando [sic] de herói (acho que me equivoquei com o nome). Nos deparamos com a repetição de todas as receitas ianques, e com um grande ator. Mas o que pode fazer um ator a quem quer que seja, se não está a serviço de algo que tenha sentido? Me senti tão culpado quanto se tivesse acedido em escutar um concerto de Tchaikovsky somente porque Heifetz estaria tocando.” (29 de abril de 1955)
“Aqui em Paris a Cinemateca tem coisas excelentes, mas infelizmente não se pode ver nada porque a sala é horrível, com o piso horizontal, de modo que basta que se sentem duas ou três pessoas com o torso medianamente erguido e daí em diante tudo que se pode ver são uns recortezinhos de filme entre seus pescoços, orelhas e cachos (se houver). De qualquer maneira, assisti ali La Edad de Oro [L’Âge d’Or, Luis Buñuel], que é uma maravilha, e Que viva México! de Eisenstein. Nada mau. E já que estou falando de cinema, não há nada para ver no momento. Na última vez que fomos nos coube Touchez pas au grisbi [Grisbi, Ouro Maldito, Jacques Becker] que é muito bem feito e nada mais. Na Itália não vimos absolutamente nada, primeiro porque estávamos mais pobres que um casal de ratos, e depois porque os italianos não gostam do bom cinema que fazem, e só querem Lollobrigida (e os compreendo) e cowboys e gangsters. I Vitelloni [Os Boas Vidas, Fellini], que vimos em Paris, nos pareceu muito bom.”
Nos meus tempos de cineclubista imberbe me passou muitas vezes pela mão um livro de Henri Agel chamado O cinema tem alma?. O substrato religioso já me incomodava (eu já era sherlockiano então), mas eu sentia (acho que corretamente) que a alma em questão não é espiritual, é uma epifania mental. Não existiria sem neurônios que a abrigassem. É a alma que brota do centro de nós, o feixe de emoções gerado por cada filme. A alma é uma estalactite por onde gotejaram Casablanca, Aruanda,Viridiana, Scanner, Shane. A alma é uma resposta sensorial, intelectual e emocional que esse tipo de cinema fez nascer na gente. O lado bom é que isso é possível. O lado ruim é que para que isso aconteça é preciso que esses filmes (ou outros que se lhes assemelhem) sejam vistos. Porque cada tipo de filme agrega um estímulo e faz nascer uma reação.
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Braulio Tavares é escritor e compositor. Estudou cinema na Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais, é Pesquisador de literatura fantástica, compilou a primeira bibliografia do gênero na literatura brasileira, o Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog (Fundação Biblioteca Nacional, Rio, 1992). Publicou A máquina voadora, em 1994 e A espinha dorsal da memória, em 1996, entre outros. Escreve artigos diários no Jornal da Paraíba: http://jornaldaparaiba.globo.com/ Blog: http://mundofantasmo.blogspot.com/ E-mail: btavares13@terra.com.br

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