Bacurau, o dia da caça


Bacurau (2019), de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é um filme que contrasta empatia e crueldade, uma das questões cruciais da civilização de hoje.

Apesar de violento, não é um filme sobre a violência, assim como não é um filme sobre telecomunicações, que têm um papel importantíssimo no seu roteiro. Também não é um filme sobre política partidária e a administração pública – embora faça delas um retrato caricato e burlesco em seu terço mediano, e revele a sua face sádica no desfecho.

Em termos de ficção científica, eu minimizo a importância das engenhocas tipo GPS, drone, transmissor de ouvido, etc. Prefiro filiar este roteiro à linha que é comumente associada ao conto “Vintage Season” (1946), de Catherine L. Moore e Henry Kuttner, sob o pseudônimo de “Lawrence O’Donnell”. E às suas incontáveis variantes nas décadas seguintes.

Pode não ter sido a primeira, mas é uma das melhores histórias sobre turistas do Futuro que viajam pelo tempo para presenciar as estações mais belas do Passado. Moore e Kuttner destacam a alta tecnologia dos viajantes, sua beleza física, sua sofisticação, o secretismo de suas atitudes e o desprezo que sentem pelos “locais”.

Bacurau pega esta premissa e a transporta para outro contexto, o dos caçadores profissionais (no caso, uma competição onde cada caça abatida conta pontos numa disputa). Eles levam consigo seus armamentos, alguns altamente sofisticados (o que os deixa parecidos com Viajantes no Tempo), outros “vintage”, objetos de memória afetiva pessoal. Cria-se a disputa entre dois mundos, o mundo pós-drone e o mundo pré-água-encanada.

É um pouco como um safari caçando elefantes ou leões no Serengeti ou no Kilimanjaro. Ou, quem sabe, em algum vilarejo remoto da China ou da Índia, um lugar perdido, fora do mapa, habitado por gente toda igual, sem nome, sem rosto, sem história pessoal, descrita no tom monocórdio de quem faz relatórios: “Foram abatidas duas presas, sendo um macho, uma fêmea…”.

O que esses “visitantes do Futuro” não sabem é que o futuro exportado por eles próprios já chegou ali, sob a forma de celulares, tablets com GPS, escopetas, e a mesma determinação em liquidar sem muita conversa. Naquele mundo, entretanto, a empatia é como a água potável: um bem cuidadosamente armazenado e fruído.

O vilarejo de Bacurau é anunciado por uma placa de estrada dizendo “Bacurau – se for, vá na paz”, o que ecoa a advertência de Riobaldo Tatarana no Grande Sertão: Veredas: “O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal…”.

Guimarães Rosa não está ausente desta história de violência, e a canção de Geraldo Vandré, “Réquiem para Matraga”, nos remete a Augusto Matraga, o desordeiro que vira cristão e abandona os tiroteios, mas volta a pegar em armas para defender dos jagunços o vilarejozinho de Rala-Coco, não muito maior que Bacurau.

A violência é boa? A violência é ruim? A violência é uma parte da Natureza física. É uma parte da natureza mental humana, quer a gente queira, quer não. Bacurau descreve essa sucessão de violências, mas elas são efeito colateral do verdadeiro tema, que é a crueldade, e neste aspecto a gente não deve olhar para o que os personagens empunham, e sim para os seus olhos.
Pode até haver no mundo um ator cujos olhos exprimam mais crueldade fria do que os de Udo Kier, mas esse ator hipotético não foi escalado para o filme. Quem está lá é este veterano aterrorizador-de-gente, com seus olhos de naja, de consideração-zero para com as vidas humanas à sua volta.

Ou então o ator Thomas Aquino, “Acácio”, mais conhecido como “Pacote, o Rei do Teco”, pistoleiro que executa com limpeza e sem pressa e é uma espécie de Billy the Kid local, com os olhos intensos de quem já viu mais coisas do que suporta contar.

Ou então o outro líder local, Lunga, uma criatura feral, que apropriadamente vive emboscado no mato e quando é convocado emerge no vilarejo como (ele também) um visitante do Futuro, um mad-max pós-apocalíptico com olhos que já cortaram o cordão umbilical com qualquer zona-do-conforto histórica.

São os três grandes personagens trágicos do filme, os três que vivem plenamente no futuro onde há execuções públicas no Vale do Anhangabaú, uma suposição que dez anos atrás nos pareceria absurda, mas que hoje parece estar a meros dez anos no futuro. 

Os demais personagens são gente comum, tanto os rambos-de-fim-de-semana que vêm caçar no Brasil quanto os habitantes da cidade. A violência de uns tem um viés sádico – o casal que trepa no mato, à noite, logo após executar com uma-rajada-de-balas outro casal que fugia.  A de outros tem um distanciamento prosaico, como o casal de negros idosos, que abatem os atacantes com escopeta, mas usam pistolinha de plástico para borrifar água nas plantas enquanto conversam com elas.

A ausência de empatia, de vínculo, é o grande crime cultural assumido por esses caçadores do futuro, com armamento liberado e proteção das autoridades do Município, para o qual estão decerto “gerando divisas”, porque, num presente como o de agora, está na cara que o futuro não nos reserva apenas o turismo sexual.

A situação mais patética é a dos “guias locais”, esses personagens ambíguos de todo filme de aventuras em ambiente alienígena – o africano que fala inglês, o aborígene que ouve rock, o rastreador marroquino que no fim da caçada ganha do japonês um rifle de lembrança. Divididos entre dois mundos, acabam sendo destruídos por um deles – geralmente pelo que tentavam acessar, e que os repele pelo que são.

Bacurau tem um ritmo arrastado que condiz com o ambiente onde aquilo acontece, e é mais um desses filmes nordestinos onde tanto protagonismo é dado às estradas, seja o asfalto esburacado e carcomido, seja a terra-batida trepidante de pedregulhos. As intermináveis estradas que nos conduzem a Mossoró, a Sousa, a Salgueiro, a Serra Talhada, a Catolé do Rocha, a Parnaíba, a Monteiro, a Taperoá, a São José do Egito.

Alguém deveria cortar e emendar todas essas deslocações intermináveis em Cinema, Aspirina e Urubus, em Árido Movie, em Azougue Nazaré, em Baixio das Bestas, em dezenas de outros filmes onde os personagens, como num video-game de free-roaming, não se teleportam magicamente de um lugar para o outro, mas têm que vencer fisicamente aquelas distâncias.
Optando por uma narrativa descentralizada, sem se focar num personagem ou par de personagens específicos, o filme mostra apenas pedaços da vida desses desconhecidos que surgem, abatem ou são abatidos, e desaparecem para sempre. O caráter fragmentado da história é reforçado nas cenas finais, quando o último caçador é conduzido para a cripta subterrânea (que evoca um dos episódios mais arrepiantes do futurista A Estrada de Cormac McCarthy) e grita: “Isto é apenas o começo!”.

.

.

Braulio Tavares é escritor e compositor. Estudou cinema na Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais, é Pesquisador de literatura fantástica, compilou a primeira bibliografia do gênero na literatura brasileira, o Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog (Fundação Biblioteca Nacional, Rio, 1992). Publicou A máquina voadora, em 1994 e A espinha dorsal da memória, em 1996, entre outros. Escreve artigos diários no Jornal da Paraíba: http://jornaldaparaiba.globo.com/ Blog: http://mundofantasmo.blogspot.com/ E-mail: btavares13@terra.com.br




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook