Até onde pode ir a Poesia?


RICARDO SILVESTRIN: ATÉ ONDE PODE IR A POESIA?

I.

Penso que é possível definir a poesia, mas penso, também, que não se pode definir um poeta.

O verdadeiro poeta é um ser que se reinaugura em cada poema. É alguém que luta com as palavras e, de acordo com Drummond, que luta em vão com elas, ou melhor, contra elas.

Luta vã?

Discordo de Drummond: a luta do poeta com as palavras não é uma luta vã. Afinal, por que luta o poeta? Para justificar a vida – ou, talvez, modestamente – para torná-la compreensível, e nos seus melhores momentos, (os de toda poesia altíssima) para iluminá-la.

Os novos poemas de Silvestrin trouxeram-me uma surpresa: será possível dizer tantas coisas sérias, existencialmente graves, de uma maneira aparentemente ligeira, leve, às vezes humorística? Não admira que o autor de Typographo tenha dado a um de seus livros o título: O Menos Vendido.

Silvestrin dá a impressão de se divertir escrevendo poemas.

Desconfio que se divirta realmente.

Mas a diversão do poeta não é a diversão de toda gente. Blaise Pascal censurava nos libertinos de seu tempo o desprezo pela condição metafísica do homem.

Silvestrin, de resto, não adota nenhuma atitude de desrespeito frente ao enigma humano. Ele prefere dançar, e toma as palavras como suas parceiras. Ordena-as, dá-lhes ritmos e rimas, torna-as musicais e sugestivas. O que obtém desse duro labor, dessa pesquisa incessantemente reiterada, é um reflexo de luz sobre si mesmo, uma aceitação da vida, que não chega a ser esperançosa, mas que é suficiente para lhe fornecer combustível para seguir vivendo.

 

II.

O primeiro poema de Typographo já é emblemático:

Máscara do riso,
máscara do choro.
-A vida é improviso,
comenta o coro.
(…)
-Viver é só isso,
o nada é o tesouro.

Como vemos, o poeta rejeita toda cenografia festiva. Rejeita “as máscaras” de nossa distração.

Aliás, por que tal grafia anacrônica?

Talvez porque o poeta, sendo um sabotador dos lugares-comuns, dos clichês midiáticos, que ele, na sua condição de publicitário conhece bem, pretende atingir a hipocrisia (a palavra significa: “abaixo da decisão”) de nosso habitat existencial.

Retomemos o nexo de nossa frase: o poeta recorre a uma palavra de outro sistema gráfico, o do tempo passado, sugerindo-nos assim que nos afastemos da atualidade, da qual – paradoxalmente – ele extrai tudo o que põe nos seus poemas –pois está  interessado em levar-nos à terceira margem, a das perguntas essenciais.

Silvestrin é um dos poetas contemporâneos mais alinhado com seu tempo. E ele, ao mesmo tempo, um dos poetas mais contestadores desse tempo, pois sua intenção é denunciar o frenesi  que nos rodeia, tentando responder à interrogação que perturba a humanidade: “O que é a vida? O que estamos fazendo neste planeta, onde há de tudo: prazer, volúpia, ternura, violência, terrorismo, sonho, promessas de felicidade?”

Sim… felicidade!

Esta palavra tem certa importância nos poemas de Silvestrin.

Algumas vezes deixa-se ver, ou entrever. Outras vezes, espia-nos,  agachada numa envergonhada ilha da fantasia.

Deixemos claro um ponto: Silvestrin ama a vida! É apaixonado por ela. Ele gostaria de perpetuá-la, mas sua lucidez, ou o que ele pensa que é lucidez, o contradiz. E então ele, estoicamente, curva-se àquilo que São Paulo denominava “a figura deste mundo”, efêmera, frágil, a de um mundo, como diziam os Existencialistas do Pós-Guerra, – “condenado ao fracasso”.

Imaginem, agora, o que resulta de tal poeta, e sobretudo de tal poesia. Algo inédito. Algo de uma originalidade virulenta, de desestruturar o leitor que pensa ler poesia como se saboreia um sorvete.

Sorvete?

Tranquilizem-se! É claro que os poemas de Silvestrin possuem sabor de sorvete. Ele maneja bem a linguagem, sua poesia alterna ritmos deliciosos com astúcias formais. É um poeta que tanto compõe haikais, como se distende em composições de maior amplitude.

A poesia de Silvestrin é uma poesia, até certo ponto, “superficial”. Ela faz jus a uma definição de “superficialidade” que já encontrei, e me atrevo a defini-la: “A linguagem da memória e da imaginação, quando essa linguagem atinge o seu clímax, ou um notável grau de ignição”.

Superficial, portanto, em nosso contexto não significa “fácil”,“irrelevante”, “irresponsável”. Nada disso. O superficial aqui é compreendido como um apelo sensorial extra, como uma fixação no factual de nossa existência, de nosso bem-estar (ou mal-estar) despojado de máscaras.

Eis por que faço votos para que Silvestrin deixe de ser o menos vendido, e passe a ser um autor lido!

Quem o descobrir, verificará que, em pleno século XXI, se encontram na sua poesia ecos de poetas revolucionários do passado, de poetas gregos a poetas modernos, e também de outros, muitos outros que souberam expressar suas angústias e  suas saudades de uma resposta aos enigmas da vida, como o faziam Baudelaire e Rimbaud.

Contentemo-nos, por enquanto, com este poeta de Porto Alegre, que parece divertir-se escrevendo poemas, mas que esconde, dentro de si, um Diógenes de lanterna na mão, com toda a sua carga de terapêutico cinismo.

Concluo esta apresentação, apresentando uma breve seleção de algumas fórmulas aforismáticas de sua poesia:

Hoje pensei
que devia reaprender
a usar as palavras.
*
Você tem toda a razão,
você agora queria ser deus,
mas não dá mais tempo.
*
Sóis se apagam, são fogo,
chama nenhuma é eterna.
Perdão, deus tempo,
por transformar em cinza
o que recebi como ouro.
*
Está escrito com letra ilegível
que uma alegria invisível e teimosa
se oculta no labirinto da rosa.
*
Não me pergunte
como saí vivo
da infância
e de tudo
que veio em sequência.
*
Viver, tão simples
como respirar.
Mas onde o nariz?
Onde o ar?
*
Pra onde elas vão? (as andorinhas)
Um lugar quente,
com certeza.
Não voam em busca de gente
como eu,
nem sabem que existo.
Se soubessem,
partir seria mais difícil.
*
Eu poderia resumir a minha vida em duas palavras,
só não sei pra que isso serviria.
*
Ninguém,
se alguém não for assim,
me diga.
Ninguém fez seguro
contra infelicidade.
*
Sem palavra se entende melhor a tristeza.
*
Colo lado a lado as fotos com meu rosto
dos últimos trinta anos, e o que envelhece
é o olhar.

Amáveis leitores, se um poeta consegue com meros fragmentos produzir tais cintilâncias líricas, imaginem como são seus poemas na sua versão completa.  Convido-os a lerem integralmente o livro. É um mergulho no mais puro e libertador silêncio.

Terminemos com um brinde especial para o leitor:

Cada um vai contar um pouco da sua história.
Um punhado de palavras
antes do silêncio do corpo.

 


Armindo Trevisan nasceu em Santa Maria (RS), em 1933. Doutorou-se em filosofia pela Universidade de Fribourg, na Suíça. Foi professor de História da Arte e Estética na Universidade Federal do Rio Grande do Sul de 1973 a 1986. Pela sua obra, que reúne cerca de trinta livros, entre poesia, ensaios e traduções, foi agraciado com inúmeras homenagens, como o Prêmio Nacional de Poesia Gonçalves Dias, em 1964, por A surpresa de ser, o Prêmio Nacional de Brasília, em 1972, por O abajur de Píndaro, o Prêmio APLUB de Literatura, em 1997, por A dança do fogo, além de ter sido patrono da 47ª Edição da Feira do Livro de Porto Alegre em 2001.

 

***

 

 

6 poemas do livro TYPOGRAPHO, de Ricardo Silvestrin, Patuá Editora, 2016

 

DANÇA

 

Sim, existe a dança:

o corpo solto avança

e recua leve nos passos

matemáticos, um, dois, um,

como se fosse mais fácil

viver num tempo menor,

brincadeira de criança

que sabe de cor o roteiro

e ri na hora marcada.

 

Fora da dança, o infinito

nos convida, nos seduz

com passos improváveis,

mas temos dois olhos,

apenas duas pernas,

e, sobretudo, duas mãos

onde só cabe um punhado

de estrelas.

 

 

CONTAGEM REGRESSIVA

 

Você já tem todo este tesouro

e ainda quer mais.

Se o mundo findasse hoje,

estava de bom tamanho.

Ouro fundido por séculos,

o sol feito à mão,

erguido a cada dia.

 

Você já tem toda a riqueza

e reclama que falta um pedaço

na fatia que você mesmo comeu.

 

Você queria que o gozo

durasse pra sempre,

que o corpo seguisse rijo

e acha que sai perdendo

quando troca cada dia da juventude

por outro novo da velhice.

 

Você tem toda a razão,

você agora queria ser deus,

mas não dá mais tempo.

 

 

METRO

 

Se o poeta conta sílabas,

o caos todo se ordena,

o dinheiro não acaba,

ou tudo é alheio, vento, vário,

e o poeta perde a conta,

perde o prazo, paga juros?

 

Se o coitado conta sílabas,

a incerteza se conforma,

as respostas andam em fila,

inconsciente se decifra

no meio da rua, dia claro?

 

Pois assim parecia ser

quando o poeta, quando o mundo

eram um número pequeno,

fácil de contar nos dedos.

 

 

OVO

 

É fácil vender armas

a quem vive em guerra,

a um cérebro preguiçoso

vender a nova novela,

 

viciar um beija-flor

com água e açúcar,

a você e a mim mesmo

com a eterna desculpa.

 

É fácil ser o herói

que nunca entra na luta,

obrigar mais um filósofo

a ter que beber cicuta,

 

por em pé o ovo óbvio

a uma plateia obtusa.

 

 

O VELHO ILUSIONISTA

 

O velho ilusionista na tarde de madeira

e pouca luz.

 

E como está distraído,

quase sem existir por inteiro,

vamos entrar na sua aura de fumaça.

 

Atrás do pano surrado da sua alma,

baralhos marcados, cartuchos com panos coloridos,

nada disso se encontra.

 

Apenas um silêncio.

Silêncio não:

se escutar bem,

 

apenas imagens, pontos, linhas,

se virar tem barba,

se virar tem cabelo.

 

E um suspiro profundo,

cansado

por repetir os mesmos truques.

 

Mas, antes que pergunte

se quer largar tudo,

uma explosão de espoleta o projeta.

Para onde?

 

 

SEGURO

 

Ninguém pode viver numa canção

como no útero protegido da mãe.

Uma hora vai sair,

a canção tem que acabar.

 

Há músicas dissonantes e inacabadas,

partituras para executar o silêncio,

baquetas quebradas,

cordas rompidas.

 

Sobra a melodia da fala,

linear e rala.

 

Ninguém,

se alguém não for assim,

me diga.

Ninguém fez seguro

contra infelicidade.

 

 

 

.

Ricardo Silvestrin estreou na poesia em 1985, com Viagem dos olhos, ano em que se formou em Letras pela UFRGS. Depois vieram Bashô um santo em mimQuase euPalavra mágica (prêmio Açorianos de Literatura), ex,Peri,mentalO menos vendido (prêmio Açorianos de Literatura),Advogado do diaboMetal (finalista Portugal Telecom e prêmio Brasília),Adversos e, agora, Typographo (Patuá, 2016). Na prosa, Play (contos) e O videogame do rei (romance), ambos pela editora Record. Na poesia para crianças, destacam-se Pequenas observações sobre a vida em outros planetas (prêmio Açorianos de Literatura) e É tudo invenção, que integra a biblioteca básica do estudante brasileiro da FNLIJ. Foi editado no Uruguai, com o infantil Los seres Trock, e nos Estados Unidos, na Antologia Mundial de Haicai, Frogpond. É músico e integra a banda os poETs. Site: www.ricardosilvestrin.com.br




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