As máquinas do mundo


O arco do entendimento humanista em as máquinas do mundo: Dante, Camões, Drummond

 

 

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Prólogo

Uma das mais resistentes noções de poesia é a de profecia. Poeta e profeta partilham uma origem comum facilmente verificável. Homero cego e Hesíodo com seu rebanho invocando as Musas, personificando-as em seus cantos para “dar a ouvir revelações”; o poeta como o andrógino ideal recebendo as influências de Apolo; fulminado por um raio em um bosque ou encerrado em uma cela escura com o ouvido colado ao ar, o rufar de asas avisará a hora; ele pode ter/ser, em Kant, o espírito vivificante capaz de apresentar-nos o belo não conceituável; em Pound, o poeta é a antena da raça. Se ele canta presságios ou constrói alguma força instauradora de uma realidade futura, quem pode afirmar? Se a imagem é acusada de irreal, o que importa? Como não serem falsas as promessas das palavras? O poeta zomba dos anjos e sua prolixidade, eles são ideias fixas de deus, o poeta angelical só pode ser um anjo desviado por uma força que não pertence à sua criação. O poeta zomba dos anjos, mas toma sua imagem para si como uma resplandecência sensível – mas talvez não da verdade. Verdade estética é um oximoro que não vale a pena ser resolvido nem abandonado. Talvez o poeta não profetize o futuro, mas o seu próprio canto. Um canto torcido, de costelas quebradas, contemporâneo somente a si mesmo. A profecia escrita na areia não aponta mais para o futuro do que para o passado. Se se juntam, na profecia, a revolução, a religião e a poesia, as duas primeiras talvez sejam apenas resíduos de uma má interpretação que anseia por um futuro ausente, um futuro que é a negação do presente. O poeta póstumo é um mito e também um falso mito. O arquétipo e o devir são, ambos, substância poética, talvez a mesma. O problema da profecia como predestinação é um falso problema.

 

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I – Introdução

A meta que se propõe neste ensaio é a de conseguir ver uma trajetória do humanismo e da possibilidade de entendimento pelo uso da razão humana traçada no tema da máquina do mundo, canonicamente retomado por Dante, Camões e Drummond.  É a suposição de três momentos correspondentes, como três pontos equidistantes num arco: o de início, ápice e derrocada. Como é, também, a verificação de seus movimentos internos de ascensão e queda.

Devemos tentar não confundir estes momentos com os momentos históricos do movimento humanista europeu, estes simplesmente não podem existir como pontos em uma linha. Se o(s) humanismo(s) persiste(m), (talvez com braços mais largos do que nunca na era do império da democracia informatizada), isso não nos impede de colher provas de sua falência final na obra de Drummond – ou em outras. Também o catolicismo persiste, embora tenda a chamar a si mais humanista que dantesco, e isto não contradiz o fator de vivenciá-los, a ambos, e rotineiramente pratica-los, quer os derrotemos ou sejamos por eles derrotados. Este movimento é, então, não mais do que um movimento intrapoético e interpoético – o que, talvez, acabe por significar além do que somos capazes de supor.

O humanismo posto é aquele que, ao lado do ser humano, centraliza a razão e o entendimento. A razão é a regra do entendimento e o mundo (metonímia para o universo ou para o Todo) é o objeto deste entendimento. Primeiro inacessível e depois acessível a partir do método e da razão, este entendimento se torna por fim um entendimento falso ou inútil ou incapaz de sustentar o homem moderno que anseia por se tornar um homem pós-moderno.

Por a máquina do mundo se entende um tema que se transforma desde as esferas ptolomaicas, arquétipo para a Comédia de Dante e modelo de representação total do Kosmos em regiões autônomas e intencionalmente ordenadas (por Deus, em Dante), até a um “pequeno volume” deste cosmos, um ponto de onisciência dos mecanismos celestiais, algo como um artefato que se abre e por “toda a parte começa e acaba”, ora se abaixa ora se ergue embora “nunca se ergue ou se abaxa”. Este segundo modelo, e sua citação, pertencem a Camões, mas foi também aquele referenciado por Drummond em seu canônico “A máquina do mundo”, poema central em seu livro mais eminente, “Claro Enigma”.[1]


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II – Em Dante

O primeiro herói da Divina Comédia é Virgílio, que aparece como encarnação da Razão; o último herói da Comédia é “La somma Sapienza”, inspirada pelo “primo amore”. São antes, ambos, os pólos – homem e Deus – que a ação se desenvolve.

Carpeaux, História da Literatura Ocidental

 

No último canto da Comédia, o canto XXXIII do Paraíso, Dante precisa abandonar a companhia da sua amada Beatriz para ascender junto a São Bernardo acima das nove esferas celestes. O Empíreo, última região na estrutura do Paraíso, está para além do entendimento da própria Teologia e é a casa do Deus e da Virgem. É aqui que acontece a revelação mística a Dante (por intermédio de São Bernardo que recorre à Virgem em uma prece) e aparece o tema retomado por Camões, também em seu último canto: “Creio que a forma universal inteira vi desse nó[2].

Este nó é a revelação da Santíssima Trindade em um “tríplice círculo” diante do poeta que nos diz:
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E o que eu vi, desde então, na imensidade

Transcendeu quanto o verbo humano intente:

Cede a memória a tanta majestade.”.

 

Dante anseia pelo entendimento do mistério da Trindade e da união entre a natureza humana e a divina, porém tal meta é irrealizável pelo entendimento. O “verbo humano” é a razão do entendimento, é a razão clássica que Dante chama inicialmente para si na figura de Virgílio, mas que, por fim, se mostra impotente para acessar a revelação mística. O poeta prossegue:

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Qual homem, que, a sonhar, vê claramente,

Depois só guarda a sensação impressa,

E o mais em todo lhe não volta à mente;

 

Aqui, a coisa “ofertada” a Dante não é o entendimento da máquina. Na Comédia não há essa nomeação do tema e essa revelação final pelo “tríplice anel” é inerentemente avessa àquele que aflige Vasco da Gama no cume do monte. Aquilo que se revela é a verdade mística de Deus, um deus fora do mundo, inefável (como nos legou a tradição monoteísta e católica em particular) e não o funcionamento e as leis regentes do mundo material.

O deus de Dante está fora do mundo e não se dá a conhecer por intermédio das coisas, uma vez revelada sua imagem o poeta não pode tornar a concebê-la pela “mente”. Esta é a realidade da razão pré-humanista, antes da centralização do entendimento e antes da crença no conhecimento do Todo através do exame da razão sob as coisas do mundo. Um deus fora do mundo é não-concebível.

Porém o entendimento pela razão não é a meta de uma revelação final no Trecento italiano:
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A vista, que em pureza sublimava,

Do alto, que é por si toda a Verdade,

Mais e mais pelos raios penetrava.
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“Toda a Verdade” é algo que está contido na Trindade, que uma vez revelada não pode ser retomada sequer pela linguagem ou pensamento. O entendimento é o entendimento da natureza divina:
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Flama excelsa, que o humano pensamento

Excedes tanto, oh! presta ao meu, piedosa,

Um pouco de inefável luzimento.

E a língua minha faz tão poderosa,

Que uma centelha só da tua Glória

Aos pósteros transmita venturosa

 

Porém a poesia marca seu caminho na historia de forma que dificilmente intuímos em um primeiro momento. Podemos pensar que o problema da derrota do pensamento humano é alheio a Dante e sua obra, mas é exatamente no seio do cristianismo medieval, regido pelo Tomismo na ética e nas ciências, que Dante, paradoxalmente, concebe uma obra precursora do Renascimento e seus desdobramentos. A Divina Comédia se mostrou para o homem moderno não só a maior de todas as epopeias, como a mais idiossincrática dentre elas. Como uma obra religiosa e cristã, ela centraliza a figura do homem, um homem que atravessa com sua consciência toda a arquitetura celestial; é claro, este homem é Dante.

Em sua epopeia, o poeta ocupa o lugar do herói, da nação e do povo. Dante abandona de forma silenciosa e sem aflição todos os modelos antigos e se joga, verdadeiramente, em uma aventura de descobrimentos. Sua obra não será modelo para os séculos que seguirão somente pela sua perfeição e ineditismo formal em terza rima. A figura do homem, em Dante, transborda uma nova força que, logo após pedir que lhe conceda “uma centelha da sua gloria”, se põe diante da própria divindade nos seguintes termos:
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Pois que, em parte surgindo-me à memória

E sendo por meus versos celebrada,

Melhor se entenderá tua vitória.
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Esta é a aurora do Humanismo. A visão dos raios que escapam do centro da terra e se estendem até o céu superior é um prenúncio verdadeiro e potente porque, embora ainda não visto, é o sol que irradia calor e luz. Se sua ascensão será também o prenúncio da sua queda, em seus círculos eternos, devemos confiar antes na profecia estática do poeta que não via no sol um deus e, louvando ao seu deus uno, cantava primeiro a si mesmo:
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Mas, como, olhando, a vista se alentava,

A Imutável Essência parecia

Mudar, quando só eu me transformava.

 

 

III – Em camões

A melhor forma de serviço público, aquela em que se logra a desejada simbiose entre a vida activa e a vida contemplativa, é a do homem de intelecto, do humanista, que é simultaneamente um homem de acção e um soldado.

Luís de Sousa Rebelo, A Tradição Clássica na Literatura Portuguesa


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Ao final da sua jornada, retornado a casa, Gama é levado pela deusa Tétis ao sumo de um monte e, dali, vê surgir um globo no ar, cujo centro como a superfície são ambos evidentes. Composto de “várias orbes”, o artefato gira imóvel, nele está ordenada toda a engenharia do cosmos. È “a máquina do mundo”, diz-lhe a deusa, lhe ofertando.

Gama hesita comovido, diante dele, “uniforme e perfeito(…) qual enfim o Arquetipo que o criou”, está a  solução de todo o entendimento. Sejam as leis misteriosas divinas ou naturais, elas se encerram naquele orbe, presente dos deuses ao herói português:
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(…) Ó trasunto, reduzido

Em pequeno volume, aqui te dou

Do Mundo aos olhos teus, pera que veja

Por onda vas e iras e o que desejas
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Esta é a visão do desabrochar como uma flor. O mundo revela seus segredos internos, seus mecanismos e forças vitais. A máquina do mundo se abre como uma fenda no véu dos erros e incertezas, a verdade íntima da natureza, agora, pode ser objeto de contemplação.

Este é o ideal do homem que anseia pela Iluminação e, enfim, pela iluminação total da Razão. O mundo de Camões é um mundo de verdades acessíveis e inteligíveis pela inquirição do espirito humano. Cercado pelos antigos deuses e proclamando sua fé cristã, Vasco da Gama se vê a realizar o ideal do futuro homem humanista.  A verdade material acessada através da revelação é a imagem da potência da razão humana, capaz de fazer a máquina do mundo girar no ar.

Esta verdade não é mais inerentemente mística, como em Dante, embora seja dada por uma revelação. Figura antecipada do renascimento europeu, Camões sustentava um cristianismo permeado pelos deuses das forças naturais de uma Grécia Arcaica e, talvez, nos apresente uma visão mais panteísta entre força divina e natural do que a que professava em seu catolicismo público.

Ao conceder a deus visitar o seio das coisas naturais, o poeta ou o pensador tem liberdade para buscar a verdade última das coisas pelo método, observação e inquirição. O conhecimento íntimo é possível, embora seja árduo, e deve ser buscado em partes, embora seja de matéria infinita:

 

Vês aqui a grande máquina do Mundo,

Etérea e elemental, que fabricada

Assi foi do Saber, alto e profundo,

Que é sem princípio e meta limitada.

Quem cerca em derredor este rotundo

Globo e sua superfície tão limada,

É Deus; mas o que é Deus, ninguém o entende,

Que a tanto o engenho humano não se estende.
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Aqui o movimento é duplo, o Deus do poema é o arquétipo e o criador da máquina. A máquina é metonímia da criação, porém Deus está em derredor e a ele o entendimento humano não se estende. Porém, essa profissão de fé não impede, em Camões, a separação do entendimento teológico do entendimento do mundo. A máquina que se abre não é a dos mistérios divinos, da santíssima trindade ou da natureza mística dos homens, mas sim aquela do mundo natural e físico. É o anúncio do ideal científico do homem moderno, tanto racional como empirista.

 

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IV – Em Drummond

O progresso nos dá tanta coisa que não nos sobra nada nem para pedir, nem para desejar, nem para jogar fora.

Drummmond, Divagação sobre as ilhas

Você não imagina como Deus me chateia. (…) Ele é pra mim uma incógnita que me preocupa no sentido poético.

Drummond, entrevista a sua filha, Maria Julieta.


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Em Drummond tal revelação é, famosamente, rechaçada, mas ainda antes que o faça, ele parece limpar o terreno e se pôr para além não somente do legado da tradição, mas do seu próprio legado poético

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Como se eu palmilhasse vagamente

uma estrada de Minas, pedregosa,
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A pedra no meio do caminho é um problema menor para o poeta em sua madureza. Agora são pedras inúmeras, apenas rapidamente referenciadas. O problema maior é o caminhar que se confunde com a própria imagem da estrada de Minas
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(…)

e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som dos meus sapatos
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Drummond nos dá, em poucas linhas, uma visão do desfalecimento da consciência, da entrada em um plano mais onírico do que místico, de um torpor melancólico. É uma introdução apressada e significativa para que a máquina do mundo se abra
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(…)

que era pausado e seco; e aves pairassem

no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo

na escuridão maior, vinda dos montes

e do meu próprio ser desenganado

a máquina do mundo se entreabriu

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A máquina do mundo drummondiana é uma máquina sem deus. Ela não lhe é ofertada e para a sua chegada não há aviso nem preparação. Ela acomete o poeta como uma violência
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(…)

para quem de a romper já se esquivava

e só de ter o pensado se carpia.
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É o próprio poeta que a rompe, desavisado. O poeta está sozinho, com seu “ser desenganado”, e a máquina, em um supetão sem surpresas, estrela um espetáculo camoniano em frente ao poeta:
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Abriu-se majestosa e circunspecta,

sem emitir um som que fosse impuro

nem um clarão maior que o desejável
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Está máquina é o autômato da “natureza mítica das coisas”. É uma revelação secular, sem metas e sem prêmios. Uma voz impessoal avisa ao poeta desenganado que esta é “a total explicação da vida”, é a ciência formidável, mas hermética. Drummond nos diz: são ambos, voz e poeta, noturnos e miseráveis

O poeta esbarra com o tesouro ofertado. O tesouro é a promessa do entendimento total da natureza, da história da humanidade na memória dos deuses antigos, dos problemas da ciência nos minérios rancorosos, da criação no absurdo original e seus enigmas:

 

Mas como eu relutasse em responder

a tal apelo assim maravilhoso,

pois a fé se abrandara à vista humana.

a esperança mais mínima – este anelo

de ver desvanecida a treva espessa

que entre os raios do sol inda se filtra;

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Porém, o poeta sequer fraqueja, sequer cobiça. Esta ainda é uma falsa resposta, mas o poeta não espera. A consciência do novo homem moderno duvida do progresso da razão, da evolução do próprio progresso; a palavra evolução tem fundo falso. O entendimento total é um desvio e uma fraqueza à consciência mais grave. O entendimento das coisas é um entendimento parcial, inverificável, duvidoso. A própria ideia é algo sem certeza como fruto da razão[3].
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como defuntas crenças convocadas

presto e fremente não se produzissem

a de novo atingir a neutra face

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Aqui, o espetáculo da máquina do mundo é, simplesmente, um espetáculo nulo. A consciência anterior do poeta já lhe havia preparado a neutra face, as crenças invocadas são crenças mortas, maquinalmente animadas, são resquícios na estrada do poeta, não lhe consolam nem afligem.

(…)

como se um dom tardio já não fora

apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso

desdenhando colher a coisa oferta

que se abria gratuita a meu engenho

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A tradição gratuita ofertada é não somente a da revelação religiosa, mas também a da revelação humanista. De um lado os mistérios místicos apenas acessíveis pela revelação, do outro o entendimento dos cosmos pela razão e verificação, a crença no entendimento contínuo e progressista, não retiram o poeta de sua condição anterior e de seus enigmas pessoais.

Porém, sequer a recusa é um valor em si, também o poeta não possui a verdade sobre a máquina. Não há a espera do futuro, não há previsões de novas ou totais realizações. Drummond retoma a estrada de Minas, pedregosa

 

(…)

E a máquina do mundo, repelida,

Se foi miudamente recompondo,

Enquanto eu, avaliando o que perdera,

Seguia vagaroso, de mãos pensas.

 

 


[1] Este tema retoma ainda, no referencial “A máquina do mundo repensada”, de Haroldo de Campos, que se propõe como síntese canônica e, mais fortemente, no artefato descrito por Borges em “O Aleph”.
[2] Esta e as demais citações do canto XXXIII do Paraíso em português são referentes à tradução de José Pedro Xavier Pinheiro.
[3]Fala-se tanto, e a ideia de Deus ainda não chegou a constituir uma ideia”, Drummond em O Avesso das Coisas.

 

 

 

 

 

 

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Danilo Augusto de Athayde Fraga nasceu em 1990 em Salvador, Bahia, e é poeta e ensaísta. Por seus escritos, foi premiado nacional e internacionalmente. Formado pelo Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades pela UFBA, atualmente cursa Letras nesta mesma instituição. E-mail: danilodeathayde@ymail.com

 




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