Abraço de anos luz


…………………….Profilogramas: abraço de anos luz

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Em 2011 foi lançado, pela Perspectiva, mais um livro de poemas de Augusto de Campos. A frase é verdadeira, mas não consegue abarcar o significado que pretende. O livro é um livro, mas é também outra coisa; os poemas são poemas, mas são também outra coisa. Por isso é preciso, antes de tudo, dizer que a capa desse livro é como um grande envelope, que abriga nove poemas soltos, impressos em papel duro de cartaz. Quem conhece a obra de Augusto pensará, com razão, na Gestalt de seu segundo livro, o primeiro concreto, Poetamenos. Em seguida, é necessário entender a singularidade desses poemas, que, por sua relevância, levou Augusto de Campos a criar para eles um nome próprio.

Profilogramas é a palavra inventada pelo poeta para denominar o livro e o que ele contém. Profilogramas são poemas específicos, que trançam autores e suas obras em homenagens visuais. Minibiografias e miniperfis, que condensam resultados complexos de afeto, de conhecimento, de crítica de arte e de poesia em quadros-poemas. Os profilogramas já existiam, em seções dos livros Viva Vaia, Despoesia e Não, como uma variação dentro de seus poemas. Para esse novo livro, Augusto selecionou nove profilogramas relacionados a artistas e amigos que fizeram parte do movimento concreto nas artes plásticas.

A Poesia Concreta, da qual Augusto é co-fundador, ganhou destaque na Exposição Nacional de Arte Concreta, em 1956, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, onde foi apresentada ao lado de obras de artistas plásticos. Dentre esses pintores e amigos concretos, que remetem ao início da jornada de Augusto, os escolhidos para serem transformados – artista e obra – em profilogramas foram Fiaminghi, Sacilotto, Geraldo de Barros, Waldemar Cordeiro, Fejer, Mauricio Nogueira Lima, Charoux, Judith Lauand e Alexandre Wollner. Todos participantes do grupo Ruptura, fundado em 1952, com um propósito consoante ao dos poetas concretos: romper com a figuração e apresentar a sua própria Gestalt, as curiosidades e relevâncias de sua configuração, como objeto e não mais como agente de representação.

O grupo da Poesia Concreta produzia uma poesia verbivocovisual, na qual a dimensão sonora e a visual têm a mesma importância da verbal, funcionando, todas elas, como uma montagem ideogrâmica. Ao mesmo tempo, ela também ambicionava ser uma poesia-objeto e não um veículo para emoções ou ideias. Conforme o Plano Piloto para a Poesia Concreta (1958): “o poema concreto comunica a sua própria estrutura: estrutura-conteúdo. o poema concreto é um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas. seu material: a palavra (som, forma visual, carga semântica). seu problema: um problema de funções-relações desse material. fatores de proximidade e semelhança, psicologia da gestalt. ritmo: força relacional.”. O Manifesto do grupo Ruptura, de 1952, reivindicava o mesmo para a artes plásticas: “o naturalismo científico da renascença – o método para representar o mundo exterior (três dimensões) sobre um plano (duas dimensões) – esgotou a sua tarefa histórica”. A arte concreta apresenta-se como continente-conteúdo.

Em um dos profilogramas, o de Waldemar Cordeiro, Augusto de Campos destaca uma frase do pintor e a transforma em um quadro, concretizando um trânsito entre papéis (o pintor escreve e o poeta pinta), que remete tanto ao encontro produtivo entre os poetas e os artistas plásticos, no começo do movimento concreto, quanto à própria configuração verbivocovisual dos poemas de Augusto. A frase é uma feliz e concisa formulação da teoria dos concretos: “O conteúdo não é um ponto de partida, mas um ponto de chegada.” É uma arte que não quer representar o mundo, mas que sustenta sua própria existência como objeto, criando seu conteúdo – que dialoga com o mundo – na apresentação de uma nova configuração.  O poeta separa as palavras em grupos de três letras, e as dispõe em papel cartão vermelho, de modo a formar um caminho em caracol, que termina em um ponto final, o “ponto de chegada”.  Entre parêntesis, a voz do poeta: “(Cordeiro disse) oco nte údo não éum pon tod epa rti dam asu mpo nto dec heg ada .” Augusto traduz em objeto poético a frase de Cordeiro, que só dá a conhecer o seu conteúdo ao final do percurso, quando o leitor se depara com o ponto final da frase. A frase diz respeito a uma arte que não trabalha com a figuração (“o conteúdo não é um ponto de partida”), e é apresentada no poema como um caminho, como peças que vão se montando e formando um objeto estético por sua composição (“um ponto de chegada”). O começo da frase entrecortada “oco” reafirma que não existe nada anterior ao poema, e dialoga em contraste com o ponto de chegada no centro do poema.
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Além da questão da imagem e da convergência de teorias, a crescente importância do design foi mais um dos elos entre os concretos da poesia e da pintura. No profilograma de Wollner, um dos pioneiros do design moderno no Brasil, letras brancas preenchem a folha quadrada de fundo preto: “desden/ haapin/ turade/ sdenha/ odesen/ hodesp/ intaap/ intura/ desdes/ enhaod/ esenho / assina / design”. Com as letras ocupando todo o espaço da “tela”, temos seis letras em cada linha. Deste modo, Augusto mutila, visualmente, tudo aquilo que o designer “desdenha” e mantém inteiras as duas últimas palavras: “assina” e “design”. Um jogo estético que coloca em destaque a crescente importância da profissão de designer e sua então recente independência das áreas da pintura e do desenho.
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Judith Lauand, a única mulher do grupo, é homenageada por sua ousadia, comparada pelo poeta às grandes mulheres da vanguarda russa: Liubov Popova, Natalia Goncharova, Olga Rozanova e Varvara Stepanova. Em fundo preto, dois quadrados brancos, um em cima e outro embaixo da folha de papel. No primeiro, está escrito em vermelho: “ressus/ citaas/ russas”; no último: “andand/ oparao/ futuro”. Com direito a uma bela montagem de aliterações e de assonâncias, Augusto inicia o poema. Do primeiro quadrado branco, abaixo e à esquerda, sai um novo quadrado, agora vermelho com letras brancas, onde se lê “judith”. Abaixo deste novo quadrado, um outro, também vermelho com letras brancas, onde se lê “lauand”. Este novo quadrado se une, por seu vértice direito de baixo, ao último quadrado branco. Mas do segundo quadrado, o “judith”, sai também um novo quadrado, de seu vértice direito, e se coloca logo abaixo do primeiro quadrado, “ressus/ citaas/ russas”. O novo quadrado é vermelho, agora com letras pretas e diz: “pintor/ asgont/charov”; mais um novo quadrado sai do vértice direito deste último: “apopov/ arozan/ ovaste”; e ainda um novo quadrado saindo, desta vez, do vértice esquerdo do de cima: “panova/ todasa/ snovas”. Os três quadrados do meio, vermelhos com letras pretas, mencionam os nomes das pintoras russas “ressuscitadas” pela sincronicidade do trabalho e da ousadia de Judith Lauand. E, aproveitando a feliz coincidência do sufixo “nova”, presente no nome das russas, remete, em português, à ideia de invenção, tão cara aos concretos, Augusto fecha a trilogia dos quadrados do meio com “todasa/ snovas”. Este quadrado se une ao penúltimo, aquele em que se lê “lauand” e, todos juntos, confirmam visualmente o já comentado último quadrado, “andand/ oparao/ futuro”, que, por sua vez, é uma metáfora da arte de vanguarda dessas mulheres, desses artistas homenageados no livro, e de Augusto de Campos.
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A seleção de profilogramas dos artistas plásticos concretos e o formato escolhido para acolhê-los convidam o leitor interessado a rever e a reler um momento importante na arte brasileira. O envelope que trazia os primeiros poemas considerados concretos, os da série Poetamenos de Augusto de Campos, é ressuscitado no envelope que abriga os profilogramas, lampejos poéticos que homenageiam os artistas plásticos co-participantes da aventura concreta.  E os profilogramas instigam a rever suas obras, agora com os olhos tocados pela poesia de Augusto. Cada profilograma ilumina traços importantes do artista selecionado, traços estes que o poeta transforma em uma espécie de quadro-poema para ser lido, visto e revisto por quem quiser se embrenhar em um labirinto de links, que atravessam tempos e espaços das artes concretas.

 

 

 

 

 

 

 

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Cristina Monteiro de Castro Pereira é Mestre em Literatura Brasileira e Doutora em Literatura Comparada, ambos pela UERJ. Suas pesquisas e publicações envolvem a Poesia Concreta, a obra de Augusto e de Haroldo de Campos, e de Dante Alighieri. E-mails: cristinamonteiro@globo.com ou cristina-monteiro@uol.com.br




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