A Sensibilidade Contemporânea


A Sensibilidade Contemporânea: Leituras do Marquês de Sade após o Holocausto

 

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I. Doutrina Moral do Esclarecimento

O livro Dialético do Esclarecimento, escrito pelos filósofos da Escola de Frankfurt[1], Max Horkheimer e Theodor Adorno, tornou-se um clássico da literatura filosófica. Os motivos para este afã com relação à obra é observável a cada capítulo. Alguns das partes mais conhecidas são “Os Conceitos de Esclarecimento” em que os autores fazem uma crítica à racionalidade e reveem o que é o esclarecimento.  Diante deste esclarecimento se tem o Excurso I e II, o primeiro é denominado “Ulisses ou Mito e Esclarecimento”, que se trata da proto-história da racionalidade. Os autores voltam à figura de Ulisses, personagem de Homero em seu livro Odisseia, para caracterizarem esta racionalidade. O Excurso II é chamado de “Juliette ou Esclarecimento e Moral”, e diz respeito às doutrinas morais do esclarecimento. Juliette é uma personagem do escritor francês Marquês de Sade de nome homônimo a obra.  Nestes pontos se tem críticas ferozes a racionalidade e a moralidade. O próximo capítulo também bastante comentado em diversas áreas é chamado “A Indústria Cultural: O Esclarecimento como mistificação das Massas”, onde é possível ver uma crítica à cultura transformada em Indústria Cultural, que também se relaciona aos capítulos anteriores que criticam uma racionalidade que a tudo instrumentaliza.

A Dialética do Esclarecimento foi publicada em 1944. Já neste momento os autores conheciam o Nazismo e haviam se exilado nos Estados Unidos. Os autores reconheciam os dois lados, que os causavam um profundo descontentamento: o totalitarismo e a indústria cultural. Pode-se dizer que estes dois momentos, o de estar na Alemanha nazista e de viver nos Estados Unidos tenha sido crucial, pois gerou não somente uma análise da razão instrumental, mas críticas pontuais a cultura e a moralidade.  Neste texto, entretanto me proponho a passar pelo Excurso II, no qual os autores tratam das doutrinas morais do esclarecimento existindo uma comparação no mínimo intrigante. O filósofo alemão Immanuel Kant, considerado o pai da ética, é aproximado do escritor libertino Marquês de Sade. Uma comparação que depois foi levada em conta por Jacques Lacan e mais recentemente pelo filósofo Slavok Zizek em seu artigo: Kant com (ou contra) Sade? Em forma de livro esta comparação também foi feita por David Martyn em: Sublime Failures, The Ethics of Kant and Sade. Neste texto me detenho a esta fonte originária que é a Dialética do Esclarecimento e a argumentação comparativa entre Kant e Sade.

A primeira questão para mostrar esta comparação entre Kant e Sade é apontar que os dois pertencem à mesma tradição do Esclarecimento. No artigo de Carlos Accetti, Pode o Esclarecimento ainda ser Radical?, o autor coloca a aproximação da seguinte forma:

O primeiro passo é demonstrar que Sade seguramente pertence à tradição do Esclarecimento, um fato que pode ser mostrando com base na sua mais famosa obra, 120 dias de Sodoma. No prefácio deste livro, Sade explicitamente diz que ele vai “dizer tudo”, pelo qual ele entende como um projeto de compilação, um exaustivo catálogo de todas as possíveis “perversões” que poderiam entreter. Agora, é claro, um exaustivo catálogo de todas as possíveis perversões também é implicitamente um cânone de regras, que é em essência a quebra de regras. (ACCETTI. Tradução nossa)[2]

Com Sade existe uma grande paixão perversa com relação ao sistema. A própria forma do seu livro é matemática, com a contagem dos dias, das mulheres, das histórias contadas, das perversões, dos mortos, dos dilacerados. Entretanto, em Kant se tem uma orgia de conceitos fortes, os autores da Dialética do Esclarecimento escrevem que:

A estrutura arquitetônica própria do sistema kantiano, como as pirâmides de ginastas das orgias de Sade e os princípios das primeiras lojas maçônicas burguesas (a imagem cínica que a espelha é o rigoroso regulamento da sociedade de libertinos de 120 journées) anuncia uma forma de organização integral da vida desprovida de todo fim tendo um conteúdo determinado. Mais do que o prazer, o que parece importar em semelhantes formalidades é o afã com que são conduzidas, a organização, do mesmo modo que em outras épocas desmitologizadas, a Roma dos Césares e do Renascimento, ou o barroco, o esquema da atividade pesava mais do que seu conteúdo. Nos tempos modernos, o esclarecimento desligou as ideias de harmonia e perfeição de sua hipostasiação no além religioso e, sob a forma do sistema, deu-as como critério às aspirações humanas. Depois que a utopia que instilara a esperança na Revolução francesa penetrou – potente e impotente – ao mesmo tempo na música e na filosofia alemãs, a ordem burguesa estabelecida funcionalizou completamente a razão. Ela se tornou a finalidade sem fim que, por isso mesmo, se deixa atrelar a todos os fins. Ela é o plano considerado em si mesmo. O estado totalitário manipula as nações. Neste sentido, Sade escreve “É preciso, replicou o príncipe, que o governo regule ele próprio a população, que ele tenha em suas mãos todos os meios de extingui-la, se ele a teme; de aumentá-la, se ele o crê necessário; e que ele não tenha jamais outra balança para sua justiça senão a de seus interesses ou de suas paixões, unicamente combinados com as paixões e os interesses daqueles que, como acabamos de dizer, receberam dele toda a porção de autoridade necessária para centruplicar a sua própria” (Adorno e Horkheimer, 2006. p.76-77).

A versão cinematográfica de 120 dias de Sodoma chamada Saló, ou os 120 dias de Sodoma, que mesclou Sade e o fascismo, com direção e roteiro de Pier Paolo Pasolini ainda mantém esta estrutura matemática, organizada, e remonta a uma leitura frankfurtiana do Marquês de Sade. Entretanto, para os autores alemães, esta força de sistematização kantiana e sadeana estão interligadas, mas Sade teria dado um passo além de Kant, pois para Sade não é necessário o dever moral kantiano, tal dever para Sade seria mitológico. Todavia, existe uma disciplina tão forte que poupa a população ou indivíduos de sentimentos morais – a disciplina tira o peso moral da ação.

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Figura I: Imagem da cena do Filme Saló, ou os 120 dias de Sodoma, que foi dirigido/roteirizado pelo o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini. Tal filme, assim como a filosofia de Adorno e Horkheimer, relacionam a obra do Marquês de Sade com o Fascismo.

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Outro ponto da argumentação é com relação à apatia. Apatia esta que os autores veem em ambos.

“A apatia (considerada como fortaleza) é um pressuposto indispensável da virtude”, diz Kant distinguindo essa “apatia moral” (um pouco à maneira de Sade) da insensibilidade no sentido da indiferença e estímulos sensíveis. O entusiasmo é mau. A calma e a determinação constituem a força da virtude. “Tal é o estado de saúde na vida moral; ao contrário, a emoção, mesmo quando é excitada pela representação do bem, é uma brilhante e instantânea aparição que deixa atrás de si a lassidão” (Adorno e Horkheimer, 2006. p.82).

Esta afirmativa poderia ser corroborada com varias citações do livro 120 dias de Sodoma. Já nas primeiras páginas desta obra temos uma relação com a apatia:

Poucos homens foram tão ágeis e devassos quanto o Presidente; no entanto, completamente apático e absolutamente embrutecido, restava-lhe apenas a depravação e a crápula da libertinagem. Eram necessárias mais de três horas de excesso, e dos mais infames, para lograr sentir uma cócega voluptuosa. (…) Curval estava tão profundamente mergulhado no lamaçal do vício e da libertinagem que lhe era praticamente impossível falar de outra coisa, e suas expressões mais sujas estavam sempre em sua boca e em seu coração. Entremeava-as com as mais vigorosas blasfêmias e imprecações, insufladas pelo verdadeiro horror que sentia, assim como seus compadres, por tudo que lembrasse a religião. Exacerbada pela embriaguez quase contínua em que se comprazia, essa desordem de espírito conferia-lhe, havia alguns anos, uma aparência de imbecilidade e de embrutecimento, fonte segundo dizia, de suas mais caras delícias. (SADE, 2008. p. 26-27)

A apatia é um adestramento para a não alteridade, para o não sentir, para a indiferença. Adorno e Horkheimer remontam o ponto em que a apática se torna um tema forte na Grécia Antiga. É exatamente com o estoicismo que esta filosofia ganha força e em um momento chave, quando diante das tendências históricas os estoicos se dão conta da própria impotência, e assinala o recuo para o individual, para a esfera privada. A frieza do burguês é o próprio estoicismo, pois ensina a como não sofrer com o sentimento do outro.

Após mostrar a inusitada relação entre Kant e Sade na tradição iluminista, a argumentação dos autores se volta para dizer que na obra de Sade tinha uma insipiente articulação do totalitarismo:

O esclarecimento expulsa da teoria a diferença; ele considera as paixões “ac si quaestio de lineis, planisaut de corpori busesset”. A ordem totalitária levou isso muito a sério. Liberado do controle de sua própria classe, que ligava o negociante do século dezenove ao respeito e amor recíproco kantiano, o fascismo, que através de uma disciplina férrea poupa o povo dos sentimentos morais, não precisa mais observar disciplina alguma. Em oposição ao imperativo categórico e em harmonia tanto mais profunda com a razão pura, ele trata os homens como coisas, centros de comportamentos. Os dirigentes estavam dispostos a proteger o mundo burguês contra o oceano da violência aberta que realmente assolou a Europa, apenas enquanto a concentração econômica ainda não havia progredido suficientemente. Antes, só os pobres e os selvagens estavam expostos à fúria dos elementos desencadeados pelo capitalismo. Mas a ordem totalitária instala o pensamento calculador em todos os direitos e atém-se à ciência enquanto tal. Seu cânon é sua própria eficiência sanguinária. A filosofia, da crítica de Kant à Genealogia de Nietzsche, proclamara-o; só um desenvolveu-o em todos os pormenores. A obra do marquês de Sade mostra o “entendimento sem direção de outrem”, isto é, o sujeito burguês liberal liberto de toda tutela. (Adorno e Horkheimer, 2006. p.74-75).

Esta última parte da argumentação poderia fechar algumas das relações entre o filósofo Kant e o escritor Marquês de Sade, deixando claro que este último vai um passo além se livrando da tutela, mas mesmo assim, tendo uma disciplina ferrenha e um amor perverso diante do sistema. Ao retirar o Marquês de Sade do período de 1740 à 1840 e colocá-lo entre o período totalitário e os gélidos burgueses, os autores nos mostram esta estranha ética, que foi tão forte em um determinado momento histórico e que poderia ser reavivada ou retraída, de acordo com que se usa a racionalidade.

 

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II. Marquês de Sade um Contemporâneo: La République Barbelée

 

 

Figura II: Esta fotografia de Auschwitz foi feita por Richard Soberkaum, fotógrafo francês. Albert Camus chama a república do Marquês de Sade de La République Barbelée: a república do arame farpado. Uma clara referência aos campos de concentração.

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Albert Camus (1913-1960) foi um filósofo e também romancista, contudo ele nem sempre fazia uma diferenciação entre a filosofia e o romance, na verdade os conectava em uma criação de filosofia por imagens e o discurso abstrato. Por esta perspectiva de pensamento sua obra tem uma divisão atraente, pois perpassa o âmbito filosófico, o romance e o teatral. De forma comum se classifica a obra de Camus em dois grandes ciclos: o do absurdo e o da revolta. No ciclo do absurdo tem-se os livros O Estrangeiro, as peças teatrais Calígula e o Mal-entendido, e o ensaio filosófico O Mito de Sísifo. O ciclo da revolta abarcaria o romance A Peste, as peças Os Justos e Estado de Sítio, e o ensaio O Homem Revoltado.  Também o autor teve uma participação ativa nos debates de sua época como jornalista, principalmente no jornal Temps Moderne. Escrevendo sobre a política interna e externa e também literatura e filosofia.

Camus viveu o período do colonialismo, do estalinismo, do fascismo e da Segunda Guerra Mundial, esta última o marca tanto que é transformada em uma espécie de mitologia no livro A Peste, no qual os invasores são os ratos trazendo a doença para aquela cidade, uma clara referência ao nazismo. Camus em meio a assassinatos em massa, a políticas que veem a história como algo maior que o homem, se pergunta sobre o valor da vida, a questão basilar dele é, se a vida vale ou não a pena ser vivida. Esta questão é abordada em seu livro O Mito de Sísifo, onde se tem uma reflexão profunda sobre o suicídio, pois é necessário saber se a vida pode ser justificada em um mundo absurdo. O contraponto ao absurdo individual do Mito de Sísifo é o ensaio O Homem Revoltado e o absurdo coletivo, neste segundo livro que é a obra mais filosófica de Camus, temos uma análise da revolta e a proposta de um pensée de midi.

Neste texto irei me deter em duas partes do livro O Homem Revoltado, que são intituladas “A Negação Absoluta” e “Um Homem de Letras”, para exemplificar na figura do escritor libertino Marquês de Sade a lógica da revolta no âmbito literário e a ânsia de vida no âmbito existencial. O contra ponto da Negação absoluta é a Afirmação Absoluta de Nietzsche. Aqui temos odium fati e amor fati. Por agora me detenho à argumentação de Camus a respeito do Marquês de Sade e sua a negação suprema. Sua república de arame farpado.

Camus, como em vários outros casos[3], não somente analisa a obra de quem ele está comentando, mas também a vida, e esta é uma lição de Nietzsche: o filósofo deve pagar com o seu exemplo. Ao mesmo tempo, Camus sabe que um o personagem não é o autor, entretanto o autor pode ser todos os personagens. Esta relação entre a vida e a obra, pode ser válida quando Camus diz que 27 anos de prisão que o Marquês de Sade sofreu não produz uma inteligência conciliadora. O sonho de liberdade do marquês não tem limites, ou ela será o crime ou não será liberdade. Aquele, que é tratado de maneira atroz, geralmente reage de maneira atroz. Marquês de Sade reagiu, no âmbito das letras. A negação absoluta começa com uma revolta metafísica. A revolta de Sade inicia contra a Criação:

A ideia, pelo menos, que Sade tem de Deus é portanto a de uma divindade criminosa que esmaga o homem, o nega. Segundo Sade, na história das religiões mostra com bastante evidência que o assassinato é um atributo divino. Por que, então, o homem seria virtuoso? O primeiro movimento do prisioneiro é passar, de um salto, à consequência mais extrema. Se Deus mata e nega o homem, nada pode proibir que se neguem e matem os semelhantes. (CAMUS, 1999. p.55)

No primeiro momento se nega Deus recusando sua cumplicidade. Após recusá-Lo, Sade também abandonará a moral humana para ficar com o instinto e o mais forte deles: o sexual.

Que instinto é este? Por um lado, é a própria expressão da natureza, por outro, o ímpeto cego que exige a posse total dos seres, mesmo ao preço de sua destruição. Sade irá negar Deus em nome da natureza – o material ideológico de seu tempo fornece-lhe discursos mecanicistas – e fará da natureza um poder de destruição. Para ele, a natureza é o sexo; sua lógica o conduz a um universo sem lei, onde o único senhor será a energia desmedida do desejo. (CAMUS, 1999. p.55-56)

Depois da revolta metafísica, da negação de Deus como cúmplice, coloca-se a natureza no local: a liberdade agora se torna o desejo extremo, e o desejo a própria libertinagem. Sade desfaz um velho elo entre a liberdade e a virtude. Esta liberdade frenética tem o seu afã de universalização. Uma sociedade do crime. Mas tal local não existe. O crime e o desejo não são a lei de todo o universo, nem mesmo reina em um território definido. Este princípio não é de unidade, mas sim um princípio de conflito. Entretanto, Sade quer a sua lei a todo o custo, quer a Criação de um microcosmo. Sade tem de delimitar seu território, assim, têm-se os castelos e lá a sociedade do crime funciona. Camus argumenta que Sade cria a república do arame farpado e coloca suas torres de vigilância. Tem-se então na escrita de Sade, a criação do castelo: o campo de concentração.

No caso de Sade, ele cria lugares fechados, castelos de onde é impossível escapar e onde a sociedade do desejo e do crime funciona sem conflitos, segundo um regime implacável. A revolta mais desenfreada, a reivindicação total da liberdade levam ao jugo da maioria. A emancipação do homem se realiza, para Sade, nas fortalezas de licenciosidade, onde uma espécie de burocracia do vício regulamenta a vida e a morte dos homens e mulheres que entraram para todo o sempre no inferno da necessidade. (CAMUS, 1999. p.60)

Nos escritos de Sade se tem a inspiração precoce dos campos de concentrações. A burocratização do vício, a regulamentação, a sistematização. Camus salienta que Sade é um precursor ainda modesto:

Como era costume em sua época, Sade construiu sociedades ideais. Mas, ao contrário de seu tempo, ele codifica a maldade natural do homem. Constrói meticulosamente a cidadela da força e do ódio, como precursor que é até colocar em números a liberdade conquistada. Resume, então, sua filosofia à fria contabilidade do crime: “Massacrados até 1ª. De março: 10. A partir de 1ª. de março: 20. A serem massacrados: 16. Total: 46” Precursor, sem dúvida, mas ainda modesto, como se vê. (CAMUS, 1999. p.61)

Camus poderia ter parado a sua argumentação neste momento, se o seu intuito fosse apenas fazer uma comparação, ou olhar alguma semelhança entre Sade e o totalitarismo. Contudo, a questão a respeito do Marquês de Sade volta para o desfecho de um tipo de revolta que esquece as suas origens. Por este motivo Camus vai mais a frente em seu raciocínio. A revolta que inicia como metafísica, transforma-se em uma revolta contra o outro e por fim um atentado contra si mesmo.

Os senhores após cercarem a república com arame e colocarem suas torres de vigilância vão subjugar os outros, dominá-los, e saciar a liberdade com o assassinato. Mas chega a um momento em que não se tem mais vítimas. Os carrascos por fim encontram-se junto a tantos outros carrascos no castelo de Sade. Neste momento singular eles se entreolham. Cada senhor sabe bem a coerência das ações no castelo. Então eles vão matar mais uma vez, pois somente uma lógica é forte para eles, o gozo sofrido e no sofrimento, a destruição. É chegado o momento em que o senhor se torna a vítima, e quem sabe até tenha desejado ser tal vítima. Não existe neles um desejo de reconciliação, de uma criação por meio do que é altivo e belo no ser humano. Uma revolta destrutiva. Os senhores vão seguir com a coerência aniquilando-se mutuamente. Ao fim se encontrará somente o Único (L´Unique) e solitário no castelo do marquês.

O mais forte, aquele que vai sobreviver, será o solitário, o Único, cuja glorificação o próprio Sade empreendeu. Ei-lo que reina, afinal, senhor e Deus. Mas, no instante de sua mais importante vitória, o sonho se dissipa. O Único volta-se para o prisioneiro cuja imaginação desmedida lhe deu origem: confunde-se um com o outro. Ele está só, na verdade preso em uma Bastilha ensangüentada, toda ela construída em torno de um gozo ainda não saciado mas já sem objeto. Ele só venceu em sonho, e essa dezena de volumes abarrotados de atrocidades e de filosofia resuma uma ascese infeliz, uma marcha alucinante do não total ao sim absoluto, um consentimento na morte, enfim, que transforma o assassino de tudo e de todos em suicídio coletivo. (CAMUS, 1999. p.63-64)

A revolta de Sade chega então à suprema ascese: a negação do outro e negação de si mesmo. Neste ponto Camus ainda segue o raciocínio da obra do divino Marquês, para então voltar-se para uma individualidade, a pessoa do Marquês é chamada de “um homem de letras”.  Sade escreveu para se fazer existir, pois ao finalizar o último ponto de sua obra, ainda se encontrava preso. Aquela obra revoltada refletiria uma sede de vida. Após os elogios a obra e a vontade de vida de Sade, por meio da literatura, Albert Camus faz mais uma soturna comparação, “o sucesso de Sade em nosso tempo explica-se por um sonho dele que afina com a sensibilidade contemporânea: a reivindicação da liberdade total e a desumanização friamente executada pela inteligência” (Camus. 1999. p65). O último ponto do argumento de Camus é salientar uma ironia, pois na república que Sade queria, o crime era parte do desejo, o crime então era correlato à natureza. Entretanto, o que ele mais odiava acontece, o assassinato tinha se tornado justificável pela lei. Com esta ironia Camus finaliza o seu argumento a respeito de Sade e sua negação absoluta. Desta forma vemos não somente a lógica de uma revolta que não se funda em uma conciliação, ou algo que é altivo no ser humano, mas também a relação que o autor faz entre a obra de Sade e o totalitarismo.

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III. Leituras do Marquês de Sade após o Holocausto.

Figura III: Esta é uma fotografia de Hersson Piratoba, artista visual e pintor de Bogotá. A modelagem fotografada é uma escultura da face do Marquês de Sade, feita pelo artista norte americano Man Ray. É interessante notar a pele do Marquês marcada como se fosse por tijolos da prisão, e também o olho danificado, quem sabe pelos longos tempos de leitura no escuro dentro do cárcere.

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Os três filósofos centrais deste texto, Max Horkheimer, Theodor Adorno e Albert Camus sofreram de alguma forma com o nazismo. Esta experiência produziu nestes autores uma leitura especial com relação aos escritos do Marquês de Sade. Mas, mesmo com as diferenças de perspectivas filosóficas entre Albert Camus e os Frankfurtianos, no que tange a leitura do divino Marquês, se têm pontos em comum. Estes pontos já foram mostrados de forma indireta, já que a argumentação de ambos já foi exposta na parte I (Doutrina Moral do Esclarecimento) e na parte II (Marquês de Sade um Contemporâneo: La République Barbelée) deste texto. Agora somente venho a salientar estes pontos de convergência (com relação à leitura do Marquês e o âmbito estritamente filosófico), e acrescentar alguns outros que se tornam relevantes para a relação proposta entres os autores.

O primeiro ponto refere ao amor ao sistema que na leitura crítica dos frankfurtianos levaria a uma disciplina tão rigorosa que pouparia a população de sentimentos morais. A disciplina neste sentido iria tirar o peso do ato. Pode-se agir de modo atroz já que existe uma estrutura que me permita tal ação. Já o filósofo Albert Camus salienta o papel que o regulamento tem nos castelos de Sade: “Ele ajuda a prever tudo, a fim de impedir que uma ternura ou uma piedade imprevista venham perturbar os planos do gozo pleno” (CAMUS, 1999. p. 61). Sentir-se livre do sentimento de ternura não é exatamente eclipsar os valores morais? Deixá-los em prol de uma disciplina, de um regulamento?  Ambos os autores veem a disciplina/regulamento relacionados ao nazismo e fazem uma crítica ao que pode ser uma estrutura relacionada ao amor ao sistema e os indivíduos que se sentem livres de sentimentos e valores morais. Entretanto, esta linha que os liga é delicada, já que os frankfurtianos vão relacionar este esquematismo não somente com o nazismo, mas com as sociedades industriais. Na Dialética do Esclarecimento os autores afirmam que:

A verdadeira natureza do esquematismo, que consiste em harmonizar exteriormente o universal e o particular, o conceito e a instancia singular, acaba por se revelar na ciência atual como o interesse da sociedade industrial. O ser é intuído sob o aspecto da manipulação e da administração. Tudo, inclusive o indivíduo humano, para não falar do animal, converte-se num processo reiterável e substituível, mero exemplo para os modelos conceituais do sistema. (Adorno e Horkheimer, 2006. p.73).

O esquematismo pode ser visto não somente como a perda de um valor moral, mas também como um esquematismo a priori de outro valor – o valor que produz uma razão que tudo instrumentaliza, e uma sociedade industrial. Os frankfurtianos já estão relacionando a razão instrumental, as mudanças da sociedade industrial, as multinacionais, com uma grande teia que torna o homem pequeno, e inautêntico. Albert Camus por sua vez relaciona este esquematismo com o Estado de Terror (a legitimação do terror), um exemplo está na peça teatral Estado de Sítio no final da primeira parte, em que A Peste se dirige aos seus habitantes:

Suas macaquices chegaram ao fim. Vamos falar sério! Acho que já me entenderam. A partir de hoje, vocês vão aprender a morrer em ordem. Até hoje, vocês morriam à espanhola, um pouco ao acaso, fortuitamente, por assim dizer. Morriam porque fazia frio após ter feito calor, porque suas mulas tropeçavam, porque a linha dos Pireneus estava azul, porque na primavera o rio Guadalquivir é atraente para o solitário, ou porque existem imbecis malcriados, que matam em proveito próprio ou pela honra, quanto é muito mais distinto matar pelos prazeres da lógica. Sim, vocês morrem muito mal. Um morto aqui, outro acolá, uma cama, o outro na arena: libertinagem total. Mas, felizmente, esta desordem será administrada. Uma única morte para todos; e de acordo com uma bela ordem de uma lista. Todos terão suas fichas. Ninguém morrerá mais por capricho. O destino, a partir de agora, é programado, já instalou seus escritórios. Vocês irão figurar nas estatísticas e, enfim, servirão para alguma coisa. (…) Pôr-se em fila para morrer bem, isto é o principal! A este preço gozarão de meus favores. Mas atenção às ideias insensatas, aos furores da alma, como vocês dizem, com as pequenas febres que fazem as grandes rebeliões. Acabei com estas complacências e coloquei a lógica em seu lugar (…) em resumo: trago o silêncio, a ordem, e a justiça absoluta (…)Meu ministério começou. (CAMUS, 2002. p. 76-77)

A tentativa camusiana é a da criação de mitos modernos. No que concerne o Estado de Sítio, a personagem da Peste é a razão quando se torna desarrazoada. Camus ensina por meio das alegorias. Se para os frankfurtianos diante desta razão se tem o homem inautêntico, atado, para Albert Camus se tem o homem absurdo (em sua experiência passiva) e a visão de uma revolta, que não valora o ser humano, mas sim é pura vontade de potência.

Outro ponto que gostaria de abordar que perpassa nossos autores é a respeito da apatia. O Marquês de Sade tem esta apatia bem clara ao fazer o narrador exclamar: “Quanta experiência, calma e frieza na libertinagem!” (SADE. 2006. p17). Os frankfurtianos remontam esta apatia ao estoicismo e a sua doutrina moral. O estoicismo surge na Grécia antiga em um momento bem específico. A política na Grécia muda radicalmente, as guerras roubam a independência de Atenas e os cidadãos se alienam da participação política. Existe uma desilusão com relação à vida pública. Com esta mudança as pessoas se voltam mais para o individual e as filosofias práticas. Durante este período surge o epicurismo e o estoicismo. O estoicismo busca um controle de si mesmo, controle das atitudes e controle dos sentidos, e uma tranquilidade da mente. Estes temas perpassam o que os estoicos chamam de Liberdade, pois se tem um determinismo divino, determinadas coisas vão acontecer sem o nosso consentimento, entretanto a forma de lidar com estes fatos podem ser de um modo em que não nos desesperemos. Uma das atitudes com relação à vida tomada pelos estoicos era a apatia, uma espécie de serenidade ao que acontece. Diante da morte, evento da qual nada podemos fazer, talvez seja melhor que a atitude não seja o pavor, mas sim a apatia, assim como diante do desejo que parece incontrolável, novamente procura-se uma serenidade, acalmá-lo poderia ser o mais sábio. A leitura frankfurtiana dos estoicos é fazer uma ligação entre eles e os burgueses no que tange a este sentimento de serenidade, pois, para viver em um sistema em que necessariamente gera o sofrimento de outros, a apatia é uma atitude burguesa por excelência.

Albert Camus por sua vez vai dizer que a atitude apática é parte do sucesso de Sade, porque a própria apatia se afina com a sensibilidade contemporânea, nas palavras de Camus: “desumanização friamente executada pela inteligência” (CAMUS, 1990. p. 65). Tanto para Adorno e Horkheimer como para Camus, a inteligência pode e foi usada friamente – a atitude burguesa com relação a este uso da inteligência é a apatia, tornar-se indiferente ao sofrimento do outro. Um exemplo deste uso da inteligência foi o Holocausto, mas não o único. O Divino Marquês por sua vez já teria preconizado esta atitude, na qual a inteligência é aliada da frieza e a calma é aliada da libertinagem.

Salientado estes pontos de convergência entre os filósofos frankfurtianos e o filósofo Albert Camus, espero ter perpassado argumentos importantes para a compreensão da influência do holocausto na leitura da obra do Marquês de Sade, e não somente este ponto que se refere a uma interpretação, mas também ter exposto a doutrina moral do esclarecimento segundo a Escola de Frankfurt. Com relação a Albert Camus creio que sejam interessantes os dois pontos, a construção de uma leitura filosófica da história com base na Revolta, revolta da qual se pode exigir uma liberdade frenética como fez Sade e sua negação absoluta, uma atitude diferente da proposta por Camus, que não quer apenas Negar, mas também Afirmar algo (é necessário afirmar algo de belo na própria revolta, para humanizar o homem). É interessante a influência do nazismo na leitura da obra do Marquês de Sade, pois este escritor se transforma em uma ferramenta política valiosa para uma crítica da racionalidade. Sade agora é como um instrumento argumentativo, que mostra a nossa estranha sensibilidade ou a falta dela, tornando-o um contemporâneo.

 

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[1]Todo o momento neste texto quando for citada a Escola de Frankfurt na forma de frankfurtianos, trata-se da primeira geração de Frankfurt,os autores Max Horkheimer e Theodor Adorno.

[2]The first step is to demonstrate that Sade rightfully belongs to the tradition of the Enlightenment, a fact which can be easily shown on the basis of his most famous work, the 120 Days of Sodom. In the preface to this book, Sade explicitly says that he intends to “say all” (tout dire), by which he understands the project of compiling an exhaustive catalogue of all the possible “perversions” (écarts) that one might entertain. Now, of course, an exhaustive catalogue of all the possible “perversions” is also implicitly a canon of rules for what is in essence a breaking of the rules.

[3] Albert Camus em sua crítica literária e filosófica, muita das vezes, relaciona a vida do autor com sua obra. Um exemplo no âmbito da literatura é sua famosa crítica a Oscar Wilde e o seu livro De Profundis, colocando este livro citado como a obra prima de Oscar Wilde em relação ao seu aclamado Dorian Gray. O fundamento para tal crítica se encontra na experiência do cárcere que sofre Oscar Wilde, e a reflexão que surge de tal vivência.

 

 

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Referências:

Adorno, Theodor W.;Horkheimer, M. Dialética do Esclarecimento. Tradução: Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

Camus, Albert. A Peste. São Paulo: Record, 1997.

Camus, Albert. Estado de Sítio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

Camus, Albert. O Homem Revoltado. São Paulo: Record, 1999.

Camus, Albert. O Mito de Sísifo. São Paulo: Record, 2005.

Freitag, Bárbara. A Teoria Crítica Ontem e Hoje. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2004.

Phillips, John. The Marquis de Sade A Very Short Introduction. New York: Oxford, 2005.

Sade, Marquês. 120 dias de Sodoma ou a Escola da Libertinagem. Tradução: Alain François. São Paulo: Iluminuras, 2006.

Sade, Marquês. Os Crimes do Amor. ed: L&PM Pocket. Tradução: Magnólia Costa Santos. Porto Alegre: 2000.

www.lacan.com. Disponível em: <HTTP://www.lacan.com/zizlacan4.htm>.

www.pdfio.com. Disponível em: <http://www.pdfio.com/k-1199106.html#>.

 

 

 

 

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Rafael Leopoldo é autor de dois livros de poesia Temporadas de Abandono (2012) e Veludo Íntimo (2013). Contribuiu para a coletânea de textos sobre o cinema brasileiro no livro Directory of World Cinema: Brazil (2013). E-mail: ralasfer@gmail.com




Comentários (1 comentário)

  1. Maria Lindgren, Excelente texto!!!!! Aprendi nuito com ele. Obrigadíssima, Rafael Leopoldo. Maria Lindgren, escritora e ex- professora de Letras: Inglês- Português. m-lindgren@uol.com.br
    23 setembro, 2013 as 14:51

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