A propósito de Surrealismo


A propósito de Surrealismo e dos manifestos de André Breton: algumas considerações

 


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As comparações a seguir são apresentadas como sugestão de que o leitor exercite sua imaginação e capacidade especulativa, que as aproximações o estimulem a preencher espaços, reconstituir uma argumentação e uma leitura mais rica do surrealismo. Acentuam sua universalidade, sem negar seu caráter de exceção. Complementam o que já publiquei sobre surrealismo, e o que ainda virei a publicar.
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1. A imaginação

Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não perdoares. (…) Só a imaginação me dá contas do que pode ser, e é bastante para suspender por um instante a interdição terrível; é bastante também que eu me entregue a ela, sem receio de me enganar (como se fosse possível enganar-se mais ainda). (Breton, primeiro Manifesto do Surrealismo, em Manifestos do Surrealismo, Editora Brasiliense, 1985, pgs. 34-35)

Que misteriosa faculdade é essa rainha das faculdades! (…) A imaginação é a rainha do verdadeiro, e o possível é uma das esferas do verdadeiro. Positivamente, ela é aparentada com o infinito. (…) …todo o universo visível é apenas um lugar de imagens e de signos aos quais a imaginação deverá atribuir um lugar e um valor relativos; é uma espécie de alimento que a imaginação deve digerir e transformar. (Baudelaire, em Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, organizada por Ivo Barroso, diversos tradutores, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1995, pgs. 804-809)

Mas a inteligência e a vontade têm por auxiliar e por instrumento uma faculdade muito pouco conhecida e cuja onipotência pertence exclusivamente ao domínio da magia: quero falar da imaginação, que os cabalistas chamam o diáfano ou o translúcido. Efetivamente, a imaginação é como que o olho da alma, e é nela que as formas se desenham e se conservam, é por ela que vemos os reflexos do mundo invisível, ela é o espelho das visões e o aparelho da vida mágica: é por ela que curamos as doenças, que influímos sobre as estações, que afastamos a morte dos vivos e que ressuscitamos os mortos, porque é ela que exalta a vontade e que lhe dá domínio sobre o agente universal. (…) A imaginação é o instrumento da adaptação do verbo. A imaginação aplicada à razão é o gênio. (Éliphas Lévi, em Dogma e Ritual da Alta Magia, Editora Pensamento, São Paulo, 2002 pgs. 78-79)
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2. A crítica ao realismo:

a atitude realista, inspirada no positivismo, de São Tomás a Anatole France, parece-me hostil a todo impulso de liberação intelectual e moral. Tenho-lhe horror, por ser feita de mediocridade, ódio e insípida presunção. (Breton, primeiro Manifesto do Surrealismo, op. cit. pg. 36)

Acho inútil e fastidioso representar aquilo que é, porque nada daquilo que existe me satisfaz. A natureza é feita, e prefiro os monstros da minha fantasia à trivialidade concreta. (Baudelaire, op. cit. pg. 803-804)

O que me entedia na França é que todo mundo se parece com Voltaire (Baudelaire, Escritos íntimos, op. cit. pg. 535)

Não recrimino o naturalismo nem por seus termos de barcaça, nem por seu vocabulário de latrinas e de hospícios… (…) Querer confinar-se aos lavadouros da carne, rejeitar o supra-sensível, negar o sonho, nem mesmo compreender que a curiosidade da arte começa lá onde os sentidos deixam de servir! (Huysmans, J. K, Lá-bas, Plon, 1961, pg.5)
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3. Sonho

Acredito na resolução futura destes dois estados, tão contraditórios na aparência, o sonho e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer. (Breton, primeiro Manifesto do Surrealismo, op.cit, pg. 45)

O sonho é uma segunda vida. (…) Começa aqui para mim o que chamarei de efusão do sonho na vida real. (Nerval, Gérad de, Aurélia, tradução e prefácio de Luís Augusto Contador Borges, Iluminuras, São Paulo, 1991, pgs. 35 e 39)
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4. Loucura

Fica a loucura, “a loucura que é encarcerada”, como já se disse bem. (…) E, de fato, alucinações, ilusões, etc, são fonte de gozo nada desprezível. (Breton, primeiro Manifesto do Surrealismo, op.cit, pg. 53)

O que são as coisas deslocadas! Não me acham louco na Alemanha. (…) …a imaginação trazia-me delícias infinitas. Recobrando o que os homens chama de razão, não deveria eu lamentar tê-las perdido? (Nerval, op. cit, pgs. 28 e 35)
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5. Escrita automática:

Certa noite então, antes de adormecer, percebi, nitidamente articulada, a ponto de ser impossível mudar-lhe uma palavra (…), frase que me parecia insistente, frase, se posso ousar, que batia na vidraça. (Breton, primeiro Manifesto do Surrealismo, op.cit, pg. 53)

acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta a tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título – “O Guardador de Rebanhos”. (Pessoa, Fernando, Obra Poética, organização, introdução e notas de Maria Aliete Torres Galhoz, Editora José Aguilar, Rio de Janeiro, 1960, pg. 712).

As hordas de palavras literalmente desenfreadas, às quais Dada e o surrealismo fizeram questão de abrir as portas, não são das que se retiram tão inutilmente. (Breton, Segundo Manifesto do Surrealismo, em Manifestos do Surrealismo, op. cit, pg. 127)

SURREALISMO, s. m. (…) Ditado do pensamento na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral. (Breton, primeiro Manifesto do Surrealismo, op.cit, pg. 58)

Pois o eu é um outro. Se o cobre acorda o clarim, não é por sua culpa. Isto me é evidente: eu assisto à eclosão do meu pensamento; eu a contemplo; eu a escuto; eu lanço uma flecha: a sinfonia faz seu movimento no abismo, ou salta sobre a cena. (Rimbaud, na “Carta do Vidente”, na tradução de Carlos Lima em Rimbaud no Brasil, UERJ-Comunicarte, 1993)

Eu é um outro. (Nerval, anotação em um retrato seu, reproduzido por Jean Richer, cf. Richer, Jean, Gérard de Nerval, col. Poètes d’aujourd’hui, Seghers, 1972)

Acabo de passar um ano assustador: meu Pensamento se pensou. (Mallarmé, em carta a Cazalis, de 1867, cf. Oeuvres Complètes e várias outras fontes)
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6. Intuição:

…o grande recurso de que (o homem) dispõe é a intuição poética. (…) Ela, enfim, libertada no surrealismo, apresenta-se não só como assimiladora de todas as formas conhecidas, mas ousadamente criadora de novas formas – ou seja, em posição de abranger todas as estruturas do mundo, manifestas ou não. Só ela nos provê o fio que remete ao caminho da Gnose, enquanto conhecimento da realidade supra-sensível, “invisivelmente visível num eterno mistério”. (Breton, no parágrafo final do último dos Manifestos, Do Surrealismo em suas Obras Vivas, op. cit. pg. 231)

Um poeta é um intuitivo, e faz versos por uma operação intuitiva. (…) No caminho ritual busca-se o desenvolvimento da intuição pela intuição mesma, ou, se preferir, pelo instinto (base da ação, da ação perfeita). No caminho místico (?) busca-se a obtenção da intuição pela abdicação da personalidade. No caminho mercurial busca-se pelo desenvolvimento da inteligência, de que a intuição depois se alimente. (Fernando Pessoa, O grau de adepto menor, em Fernando Pessoa: O amor, a morte, a iniciação, de Y. K. Centeno, A Regra do Jogo Edições, Lisboa, 1985. Ortografia atualizada na citação)
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7. Arte, valor:

O maravilhoso não é o mesmo em todas as épocas; participa obscuramente de uma classe de revelação geral, de que só nos chega o detalhe: são as ruínas românticas, o manequim moderno ou qualquer outro símbolo próprio a comover a sensibilidade humana por algum tempo. (…) Coincidem com um eclipse do gosto que sou feito para suportar, eu que tenho do gosto a idéia de um grande defeito. No mau gosto de minha época, procuro ir mais longe que os outros. (Breton, primeiro Manifesto do Surrealismo, op.cit, pg. 47)

(eu sustentava que o mundo acabaria, não por um belo livro, mas por uma bela propaganda do inferno e do céu) (Breton, idem, pg. 54)

Admirava as pinturas medíocres, bandeiras de portas, cenários, telões de saltimbancos, letreiros, iluminuras populares; a literatura antiquada, latim de igreja, livros eróticos sem ortografia, romances dos tempos de avó, contos de fadas, almanaques infantis, velhas óperas antigas, refrões simplórios, ritmos singelos. (Rimbaud, Alquimia do Verbo, em Rimbaud, Arthur, Prosa Poética Completa, organização e tradução de Ivo Barroso, Editora Topbooks, Rio de Janeiro, 1998, pg. 161)
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8. História da literatura- literatura comparada

Mas vejam de que admirável e perversa insinuação já se mostrou capaz um pequeno número de obras muito modernas, as mesmas das quais o mínimo que se possa dizer é que nelas o ar é particularmente insalubre: Baudelaire, Rimbaud (a despeito das reservas que lhe fiz), Huysmans, Lautréamont, para ficar só na poesia. Não tenhamos medo de erigir em lei essa insalubridade. (Breton, Segundo Manifesto do Surrealismo, em Manifestos do Surrealismo, op. cit, pg. 129)

pois só lhe interessavam verdadeiramente as obras doentias, consumidas e irritadas pela febre. (…) …voltava-se ele obrigatoriamente para certos escritores tornados ainda mais propícios e mais caros a ele pelo desprezo em que os tinha um público incapaz de compreendê-los. (Huysmans, J. K, Às avessas, tradução e estudo crítico de José Paulo Paes, Companhia das Letras, São Paulo, 1987pgs. 189 e 216)

…na hora em que os poderes públicos se preparam para celebrar grotescamente com festas o centenário do romantismo, nós dizemos que essa romantismo, do qual aceitamos historicamente ser considerados como cauda, mas então cauda de tal modo preênsil, por sua essência mesmo em 1930, reside inteiramente na negação desses poderes e dessas festas, que ter cem anos é para ele a mocidade, que o que se chama erradamente sua época heróica não pode mais, honestamente, significar senão o vagido de um ser que apenas começa a fazer conhecido o seu desejo através de nós e que, se se admite que o que foi pensado antes dele – “classicamente” – era o bem, quer incontestavelmente todo o mal. (Breton, Segundo Manifesto do Surrealismo, op. cit, pg. 129)

A crítica atual é injusta com o simbolismo. Você diz que o surrealismo não procurou valorizá-lo: historicamente resultava inevitável que se opusesse a ele, porém a crítica não tinha porque fazer-lhe restrições. Era quem devia encontrar de novo, e pôr em seu lugar a correia de transmissão. (Breton, André, El Surrealismo – Puntos de Vista y Manifestaciones, Barral editores, Barcelona, 1977, pg. 15 –edição espanhola de Entrétiens, entrevistas radiofônicas de Breton)

Apesar da contradição que encerra, e às vezes com plena consciência dela, como no caso das reflexões de Baudelaire em L’art romantique, desde princípios do século passado se fala de modernidade como de uma tradição e se pensa que a ruptura é a forma privilegiada da mudança. (Paz, Octavio, Os Filhos do Barro, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984, pg. 18)
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9. Para concluir, algumas observações minhas:

Os sucessores da geração de escritores do fim de século francês, que inclui os agrupados como poetas malditos por Verlaine, são, como herdeiro direto, Alfred Jarry, assim como Apollinaire e Reverdy, Dada e o surrealismo. Quem vê o surrealismo exclusivamente como apologia do delírio, criticando-o pelo irracionalismo, comete um equívoco: a loucura havia campeado nas décadas precedentes, no período que medeia entre o Simbolismo e o modernismo vanguardista, e que, mais apropriadamente, pode ser visto como exacerbação do Romantismo. Os surrealistas lhe deram, é certo, continuidade; mas tentaram conferir-lhe uma dimensão política, resumida na proposta bretoniana de tornar um só o transformar a sociedade de Marx e o mudar a vida de Rimbaud (em Position Politique du Surréalisme, conjunto de textos agregado à edição Pauvert dos Manifestes, op. cit.). E a sistematizaram na revisão da história da literatura proposta, com especial clareza, no Segundo Manifesto do Surrealismo. (…) Octavio Paz prossegue a mesma revisão da história da literatura, entendendo o Romantismo, não como período circunscrito, delimitado por algumas datas do final do século XVIII e meados do XIX, mas como processo, uma vertente marcada pela rebelião e ruptura. Por isso, em Los Hijos del Limo (op. cit), fala em revolução romântica, manifestação da tradição da ruptura, contraposta ao classicismo. E distingue o romantismo oficial, dos manuais de literatura, de um verdadeiro romantismo francês: A poesia francesa da segunda metade do século passado – chamá-la de simbolista seria mutilá-la – é indissociável do romantismo alemão e inglês: é seu prolongamento, mas também é sua metáfora (no meu prefácio para Lautréamont – Obra Completa, Iluminuras, São Paulo, 1997, pg. 55).

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– bibliografia complementar

Além das obras citadas acima, especialmente:

Béhar, Henri, André Breton, Le grand indésirable, Calmann-Lévy, 1990;
Bonnet, Marguerite, André Breton – Naissance de l’aventure surréaliste, Librairie José Corti, Paris, 1988;
Breton, André, Oeuvres complètes, edição organizada por Marguerite Bonnet, Éditions Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, Paris, Vol. I, 1988, Vol. II, 1992;
Paz, Octavio, La búsqueda del comienzo, Editorial Fundamentos/ Espiral, Madri, 1974.

 

 

 

 

 

[Texto publicado originalmente na revista Agulha]

 

 

 

 

 

 

 

 

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Claudio Willer (São Paulo, 1940). Poeta, ensaísta e tradutor. Traduziu parcialmente Ginsberg e Artaud, e a obra completa de Lautréamont. Publicou também, entre outros,  ‘Geração Beat’, L&PM Pocket, 2009. É um dos editores da Agulha. E-mail: cjwiller@uol.com.br.




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