A poesia de Adão Ventura e Maya Angelou
QUANDO O PASSADO SE FAZ PRESENTE
por Paulo Vilara

Assim como nós, seres humanos, há obras de arte que perdem seu viço, envelhecem com a passagem do tempo. É o natural. No entanto, há criações que emergem do passado com força igual ou maior do que a que tiveram à época em que surgiram. São os casos, esplêndidos casos, cada um em seu país, cada um à sua maneira, dos poetas Adão Ventura e Maya Angelou.
Diante do mar em fúria causado pelo assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, uma onda de protestos inundou o mundo todo. É aí que entram e brilham as vozes poéticas do brasileiro Adão Ventura e da norte-americana Maya Angelou. Suas palavras, seus versos, sua luta contra o racismo, suas denúncias foram escritas no passado, mas a roupagem, o corpo, a face de sua poesia é atual, negra, necessariamente negra, consciente da beleza e do valor da cor de sua pele. O caso Floyd ocorreu nos EUA, mas, no Brasil, há Georges Floyds sendo espancados, presos e mortos todos os dias. Motivo? A pele escura.
Neto de escravizados, Adão Ventura (1939-2004), nasceu em Santo Antonio do Itambé, interior de Minas Gerais. Maya Angelou (1928-2014), cresceu em Stamps, Arkansas, Sul dos EUA, onde foi estuprada aos oito anos de idade (com Billie Holiday ocorreu aos 10). Maya e Adão não se conheceram, mas são irmãos na cicatriz da cor. Suas armas? As palavras. E a vida digna, de superação. Ao som da voz de Nina Simone, leia o longo poema de Maya Angelou e os seis poemas curtos de Adão Ventura. Os sete poemas? Faróis potentes a iluminar a estrada, a desvendar trilhas no chão da noite. Os poetas? Vozes da África ancestral, dois gigantes contemporâneos.
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Maya Angelou:
AINDA ASSIM EU ME LEVANTO
Você pode me marcar na história
Com suas mentiras amargas e distorcidas
Você pode me esmagar na própria terra
Mas ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar.
Meu atrevimento te perturba?
O que é que te entristece?
É que eu ando como se tivesse poços de petróleo
Bombeando na minha sala de estar.
Assim como as luas e como os sóis,
Com a certeza das marés,
Assim como a esperança brotando,
Ainda assim, eu vou me levantar.
Você queria me ver destroçada?
Com a cabeça curvada e os olhos baixos?
Ombros caindo como lágrimas,
Enfraquecidos pelos meus gritos de comoção?
Minha altivez te ofende?
Não leve tão a sério
Só porque rio como se tivesse minas de ouro
Cavadas no meu quintal.
Você pode me fuzilar com suas palavras,
Você pode me cortar com seus olhos,
Você pode me matar com seu ódio,
Mas ainda, como o ar, eu vou me levantar.
Minha sensualidade te perturba?
Te surpreende
Que eu dance como se tivesse diamantes
Entre as minhas coxas?
Saindo das cabanas da vergonha da história
Eu me levanto
De um passado enraizado na dor
Eu me levanto
Sou um oceano negro, vasto e pulsante,
Crescendo e jorrando eu carrego a maré.
Abandonando as noites de terror e medo
Eu me levanto
Para um amanhecer maravilhosamente claro
Eu me levanto
Trazendo as dádivas que meus ancestrais me deram,
Eu sou o sonho e a esperança dos escravos.
Eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto.
(Tradução: Lubi Prates)
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Adão Ventura:
DAS BIOGRAFIAS
em negro
teceram-me a pele.
enormes correntes
amarram-me ao tronco
de uma Nova África.
carrego comigo
a sombra de longos muros
tentando impedir
que meus pés
cheguem ao final
dos caminhos.
mas o meu sangue
está cada vez mais forte,
tão forte quanto as imensas pedras
que os meus avós carregam
para edificar os palácios dos reis.
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COMENSAIS
A minha pele negra
servida em
fatias,
em luxuosas
mesas de jacarandá,
a senhores
de punhos rendados
há 500
anos.
EU, PÁSSARO PRETO
eu,
pássaro
preto,
cicatrizo
queimaduras
de ferro em brasa,
fecho o
corpo de escravo fugido
e
monto
guarda
na porta
dos quilombos.
PRECONCEITO
–
Muitas vezes
a cor da
pele
é uma
grande parede.
Daí
o abraço
frouxo,
o beijo mal
dado
e o sorriso
amarelo.
PARA UM NEGRO
Para um negro
a cor da
pele
é uma
sombra
muitas
vezes mais forte
que um
soco.
Para um
negro
a cor da
pele
é uma faca
que atinge
muito mais
em cheio
o coração.
NEGRO FORRO
minha carta de alforria
não me deu fazendas,
nem dinheiro no banco,
nem bigodes retorcidos.
minha carta de alforria
costurou meus passos
aos corredores da noite
de minha pele.
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Livros de Adão Ventura: Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul (1970), As musculaturas do Arco do Triunfo (1976), A cor da pele (1980), Texturaafro (1992), Jequitinhonha – poemas do Vale (1997), Litanias de cão (2002). Em 2006, o poeta e editor Sebastião Nunes lançou Costura de nuvens, seleção de poemas de Adão Ventura.
Livros de Maya Angelou no Brasil: Eu sei por que o pássaro canta na gaiola – Autobiografia (2018), Poesia completa (2020), ambos da Editora Alto Astral.
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Paulo Vilara é autor dos livros Manhãs com pássaros – Exercícios de síntese (2015), Jazz! Interpretações – Pequenas histórias de fúria, dor e alegria (2011); Palavras Musicais – Entrevistas (2006). E-mail: paulovilabh@gmail.com
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12 outubro, 2020 as 18:20