A orfandade da poesia brasileira
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Dentro de dois meses o país estará saudando a ausência daquele que se tornou um dos mais acachapantes poetas surgidos ao longo do século XX. Falo, é claro, de Carlos Drummond de Andrade. Nestas três décadas, muitas águas poéticas rolaram sob a ponte da literatura brasileira. Contudo, ao contrário, por exemplo, de certo ânimo revelado num artigo recente publicado no Suplemento do Diário de Pernambuco, pelo poeta Tarso de Melo, creio que entramos há muito tempo num hiato que cada vez mais expõe evidências. Às vésperas da data – Drummond faleceu em 17 de agosto de 1987 –, seria extremamente oportuno atentar para fatores que deveriam ser alvo de discussão ampla e séria.
Toda literatura atravessa momentos de altos e baixos; longos hiatos se abrem e fecham conforme o percurso se consolida. O cânone se estabelece segundo os resultados dos autores em atividade, criando um panorama nítido. Muitas promessas ficam pelo caminho, ou se confirmam depois.Um fato indiscutível na literatura brasileira, de maneira mais específica na poesia que hoje se faz, é a orfandade que mais uma vez se evidenciou após a morte do poeta Ferreira Gullar, ocorrida em dezembro de 2016.
[Foto by Fábio Motta/Estadão conteúdo].
Não se quer dizer com isso que a poesia acabou, já que existem muitos poetas produzindo. O que não há é aquela figura tutelar que centralize a atenção ao se repetir a frase “o grande poeta da atualidade”. A rigor, essa figura pode ser identificada no poeta Augusto de Campos, representante derradeiro e um dos criadores do Concretismo, cujo último livro, “Outro”, foi publicado há dois anos. Contudo, ele completou 86 anos e 60 de vida literária. A pergunta que surge agora é: e depois, como será? Não temos mais Drummond, Cabral, Manoel de Barros nem Gullar, o que nos restou?
Parece haver pela frente uma lacuna que deve durar algumas gerações até ser preenchida, como veremos analisando cronologicamente o legado de vários escritores. Longe de defender a orfandade literária, ou o pessimismo em relação às gerações atuais, é necessário observar os dados efetivos que demonstram e caucionam esta proposição.
Tendo como ponto de partida a Semana de 22, vemos que nossa literatura produziu inúmeros poetas em cada decênio, se tornaram referência e garantiram o lugar no cânone nacional. Suas obras constituem capítulos da literatura brasileira, geraram polêmicas ou provocaram a admiração geral.
Todos os poetas que entraram no nosso imaginário, que estudamos quando jovens e estão presentes em livros didáticos de qualquer adolescente ou nas histórias literárias; que foram intensamente analisados, temas de teses, dissertações, enfim, todos esses textos foram cunhados por seus autores em períodos distintos.
Muitos versos que circulam pela internet em forma de “memes”, ou que estão na memória de muitos leitores, tais como “E agora, José?”; “a única coisa a fazer é dançar um tango argentino”; “Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê”; “Um galo sozinho não tece uma manhã”, se tornaram referência, se popularizaram entre o público leitor. O fato ilustrativo é que esses escritores produziram obras determinantes quando contavam 30, 50 ou 60 anos.
Na atualidade, não se pode afirmar o mesmo, pois o cenário existente não se reproduziu como antes. Dos autores em atividade, quase nenhum galgou os limites acadêmicos ou da fraternidade, sendo conhecidos num círculo restrito. Há a ausência de tais pressupostos, não encontramos aquilo que vemos nos autores canônicos, como se não tivesse havido renovação e a poesia brasileira se mostra então órfã de uma figura ecumênica, de um mentor que norteie as linhas mestras da poética nacional, cuja obra obtenha a recepção unânime.
A afirmação pode soar demasiado taxativa, mas será difícil contradizê-la.
Um exame da situação pode nos ajudar.
Conforme vemos, por exemplo, em Manuel Bandeira (1886-1968), que publicou o primeiro livro “Cinza das Horas” com 31 anos; a “Estrela da Manhã” com 50 e em “Belo Belo” experimentou ritmos distintos, aos 62 anos.
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) é um caso à parte. Mas aos 32 lançou “Brejo das almas”; “Sentimento do mundo” com 38; “Rosa do Povo” com 43; “Claro Enigma” com 49 e “Boitempo” com 66. Quase todos os poemas antológicos da sua vasta obra que muitos conhecem, já tinham sido escritos. E não incluo nessa análise a sua obra em prosa.
Cecília Meireles (1901-1964) não teve essa sorte, mas escreveu muito ao longo dos seus 63 anos de vida. Aos 19 publicou o primeiro livro, “Espectros”; com 38 saiu “Viagem”; “Mar Absoluto” aos 44; “Doze Noturnos da Holanda” aos 51; “Romanceiro da Inconfidência” com 52 e “Canções” com 55.
Jorge de Lima (1893-1953) também não foi longevo, e suas obras mais densas surgem na maturidade como “A Túnica Inconsútil” aos 45; “Anunciação e Encontro de Mira-Celi” aos 50, e encerra a vida e obra com um dos maiores monumentos da língua, “Invenção de Orfeu”, com 59 anos.
Mário de Andrade (1893-1945) tinha 29 anos quando ocorre a Semana de 22 e publicou “Pauliceia Desvairada”; completara 52 quando sai “Lira Paulistana”, além de ter produzido uma obra ensaística volumosa que resgatou as tradições populares brasileiras, escrita em simultâneo com a sua poesia.
Vinicius de Moraes (1913-1980) foi um dos mais precoces, pois publicou o primeiro livro, “Caminho para a distância”, aos 20; “Cinco Elegias” com 30 e “Livro de Sonetos” com 44. Mas a obra poética em si foi atravessada pela dedicação à música popular, e forjou aí genuínas obras-primas.
O auto exilado Murilo Mendes (1901-1975) escreveu quase toda sua obra fora do país, pois viveu na Itália. Aos 37 publicou “Poesia em Pânico”; “Poesia Liberdade” aos 46; “Tempo Espanhol” aos 58 e “Convergência” aos 69.
Marcado pela precocidade, João Cabral (1920-1999) aos 27 lançou “Psicologia da Composição com Fábula de Anfion e Antiode”; aos 30 aparece “O Cão sem Plumas”; “Morte e Vida Severina” com 35; “Educação pela Pedra” aos 46; “Agrestes” aos 65 e “Sevilha andando” aos 70. A cegueira o impediu de escrever até o seu falecimento, em 1999.
Os irmãos Campos também se revelaram precocemente. Augusto tinha 20 anos quando escreveu “O Rei menos o reino”, e ambos à volta dos 30 quando lançaram a “Antologia Noigandres”. A partir daí foi uma série de obras que fizeram balançar as estruturas da poesia brasileira. Aos 47, Haroldo (1929-2003) reúne sua poesia em “Xadrez de Estrelas”; Augusto (1931) tinha 48 quando saiu “Viva Vaia”; aos 55, Haroldo inova mais uma vez com “Galáxias”. Em 2015, Augusto deu à estampa, após vários anos de silêncio, o extraordinário “Outro”, quando acabara de completar 84 anos, demonstrando o vigor da sua criatividade e um radar poético absolutamente atento às transformações da contemporaneidade.
Ferreira Gullar teve uma atuação quase paralela. Aos 19 publicou “Um pouco acima do chão”; “A luta corporal” aos 24; o cordel “João Boa-Morte, cabra marcado para morrer” com 32; “Poema Sujo” aos 46; “Barulhos” aos 57; “Muitas Vozes” aos 69 e “Em Alguma Parte Alguma” aos 80.
Tais fatos nos ajudam a ter uma perspectiva, e confirmam a proposta inicial. Mas há ainda certas inquirições que se revelam aqui.
Observando o período entre 1960 e 1985, veremos que, apesar da ditadura que oprimiu o país, tivemos em atividade contínua nada menos do que Bandeira, Drummond, Vinicius, Cabral e os concretistas. Alguns ficaram pelo caminho – Bandeira faleceu em 1968; Murilo Mendes em 1975; Vinicius em 1980 e Drummond em 1987. Mas já tinham se tornado clássicos contemporâneos, isto é, já haviam escrito o miolo central das suas obras.
Quem surgiu depois disso? A simples consulta das histórias literárias ou dos manuais de literatura adotados nas redes de ensino do país são elucidativos, fazem o ponto de corte na “poesia marginal” despontada nos anos 1970. Esta geração adquiriu a categoria de “movimento”, revelando alguma consistência inventiva e características visíveis, com especial relevância para Ana Cristina César, Paulo Leminski e Armando Freitas Filho, apesar deste último ter iniciado na poesia ligado ao movimento Práxis. Os dois primeiros já falecidos, e o terceiro ainda em atividade. Desde então, não houve uma atualização de nomes.
Curiosamente, as obras de Ana Cristina e Leminski foram alvo de reedições, atingindo resultados significativos. O caso de Leminski surpreendeu até a editora que o relançou anos atrás, atingindo a marca de mais de vinte mil exemplares vendidos. Algo assinalável em tiragens de poesia. Isso demonstra que eles conquistaram seu lugar no cânone e junto ao público.
Suponho que muitos hão de dizer que falta distância crítica para se efetivar isso, porém, já se passaram 40 anos… e a lacuna torna-se cada vez mais explícita.
O problema atual se situa nesse ponto: quem é o autor da obra mais importante da atualidade? Quando surgiu? Qual a sua projeção? Quem a legitimou? Tais interrogações ficam sem resposta devido à ausência de um nome que garanta a unanimidade. Além do mais, os poetas que hoje se encontram entre os 30/50 anos ainda não emplacaram algo naqueles moldes citados no início. Ou seja, por que não apareceram livros com o grau aproximado de importância como “Claro enigma”, “Morte e Vida Severina” ou “Pauliceia Desvairada”?
Há muitas perguntas, mas não existem fórmulas previsíveis para resolver a questão. Trabalho terão os historiadores literários, os críticos, professores, editores e a academia, que participam nesse processo, mas parecem assumir certa passividade.
De fato, se houver alguma coisa a fazer só mesmo os poetas serão capazes de responder, no momento da luta que se dá entre cada criador e a página em branco. Enquanto isso, a lacuna permanecerá aberta.
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Jorge Henrique Bastos é jornalista, tradutor e editor, organizou “Poesia brasileira contemporânea, – dos modernistas à actualidade”. (Antígona, 2002). E-mail: jorgehenriquesbastos@gmail.com
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