A mesa posta



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Principio minha leitura do livro Os mortos na sala de jantar (Realejo Edições, 2007) de Ademir Demarchi[1], sob o signo de uma máxima de Nietzsche, que diz: “Por fim amamos o próprio desejo, e não o desejado” (Além do bem e do mal, 1885). Com efeito, nosso apetite pela morte e suas representações só diminui quando, a contrapelo da famosa boutade de Duchamp, nos damos conta de que nem sempre são apenas os outros que morrem. Entretanto, graças a essa dura percepção de que a vida nos facultará, cedo ou tarde, um enterramento, é que Ademir pode esboçar as linhas de um sorriso e sonhar com uma “lápide” de Jacques Lacan, na qual constasse: “Não poderíamos agüentar nossas vidas se não tivéssemos a certeza de que, um dia, essa história vai acabar”. Mas, expressões do tipo “mais cedo ou mais tarde”, “um dia”, não passam de circunlóquios disfêmicos de que dispomos para tentar antepor uma ligeira suspensão, simulando uma “questão de ordem”, frente ao triunfo da morte.

Contudo, a poesia “poeticamente incorreta” de Os mortos na sala de jantar, desde o início adverte o leitor para a necessidade de deixar de lado toda esperança ao entrar no livro que tem diante de si: “bem-vindo à existência fútil e erétil/ daqui não há retorno/ e em instantes, nem sono/ ao passar pela aduana…”. O leitor ao sacar o volume da estante, como se puxara uma gaveta mortuária, lê nos poemas ali embalsamados, a um só tempo, a epígrafe e o epitáfio de um percurso de linguagem. Selecionados, combinados, e franqueados à visitação pública, os despojos de escavações sacrílegas – o desígnio do acervo que começamos a vasculhar nos faz retroagir à palavra grega sema, que admite as acepções tanto de “signo” como de “sepultura”. Com espírito poundiano, Ademir Demarchi saqueia as catacumbas da barbárie: “durante décadas/ inglaterra e estados unidos/ compravam montanhas e montanhas de múmias/ trazidas por seus indianas jones/ a preços que chegavam a 18 dólares a tonelada/ para usá-las como combustível em locomotivas/ e matéria-prima de papel de embrulho”. Desprendem-se dos sons e dos sentidos, tanto o “olor que afugenta o tédio”, como o vapor fétido das vísceras do faraó recheando o vaso de canopo.

As figurações mortuárias de Ademir Demarchi não poetizam o assunto, a metáfora da morte como “ante-sala da ressurreição” é aqui descartada. Versos como estes do poeta alemão Lohenstein: “Quando o Senhor colher a messe ao cemitério,/ Eu – caveira -, num rosto de anjo me revelo”, resultam edulcorados demais se confrontados às signâncias antropofágicas de Ademir Demarchi. Na invenção da (sua) morte, o poeta traz para o foco da fatura escritural em apreço, por exemplo, a industriosidade capitalista no comércio rapace das funerárias, a “linha de desmontagem” de um hospital que a guerra do Iraque fez se apossar de parte de um cemitério (digamos que para otimizar as coisas), o cadáver pop e libidinoso de Carmen Miranda enterrado “com o tailleur vermelho sangue”, a mortandade espetacular causada pelo incêndio do edifício Joelma, etc. Os mortos na sala de jantar é um álbum-síntese em que vão abrigados no interior de sua economia compositiva os vários registros da tópica do além-túmulo através dos tempos e das culturas, e onde se atritam o kitsch e o aristocrático; os defuntos de Evita e Ramsés “livres de sangue e fezes”.

Roman Jakobson, estudando o “riso ritual” no contexto medieval, argumenta que é “a hilaridade que possibilita ao homem comum terreno reafirmar-se face à face com o Misterioso”, forma pela qual nos referimos alusivamente à morte – mais uma vez a escolha por tratar a coisa de modo não-direto, a parábola, o trapaceio no jogo de xadrez visando a alterar o resultado anunciado desde o primeiro lance, etc. E é mesmo com o mascaramento, com as personae da hilaridade, ou seja, com o esquizo condensare do poema – esta outra forma de escarificação tumular por meio da qual o poeta mortifica a língua cotidiana -, que Ademir Demarchi consegue se haver consigo mesmo no que diz respeito, por exemplo, ao quesito da mortalidade pessoal. Como no paradoxo do sorriso do Gato de Cheshire, onde vemos desabrochar um “sorriso sem gato”, o sorriso persistindo quando já não há mais corpo, nem indício do felino no ar, o poeta tem ciência da sua decomposição, do seu perecimento, enfim, do próprio desaparecimento. Mas, ao deparar com o seu “juízo final” – e ele talvez, neste momento, parodie um verso de Manuel Bandeira dizendo “mas que juízo final pode satisfazer meu sonho de juízo final?” -, o poeta não perderá a chance de, afinal, arreganhar um sorriso malandro. Mais deserto do que diserto, o poeta escreve aos pósteros a ode “Da maturidade”: “adulto/ maduro/ defunto”. E, condenado ao mausoléu, à memória sem imaginação, sem physis nem techne, resta-lhe o não-ser do medalhão: “moderno/ moribundo/ eterno”.

Mallarmé, no Un coup de dés, poema espalmado contra a quase impenetrável negrura semântica do branco da página, também reconhece a hilaridade, “gargalhada sombria” do pensamento contra o “veludo enrugado” da meia-noite, como estratagema de que se deve dispor quando se trata de sonhar, ou sondar, o vazio, a esterilidade, o naufrágio, enfim, estas outras figurações com que a morte se honora. O poema, arrancado ao fracasso, se insinua ao silêncio, e enrolado em ironia ou mistério, se precipita num tourbillon d’hilarité et d’horreur. O riso mallarmeano é o riso eterno da caveira, da insânia, do nada onde toute réalité se dissout.

Dissipa-se a realidade, “desaparece o corpo/ permanece o morto” na luz suja dos seus ossos. Se o carpe diem da nossa realidade, que vai, cai (come corpo morto cade do versículo dantesco) e acaba-começa num “ai”, abona a solução paronomástica womb/tomb urdida por Ademir Demarchi, por seu turno, a metáfora barroca do teatro de Calderón de la Barca, segundo a qual “a vida é sonho”, envereda para a imagem-soma de que, em fim de contas, encenamos, aqui e agora, o drama desta outra morte de “aquém-túmulo”. Tomando um desvio a partir de Paul Valéry, para quem o ser é um defeito na pureza do não-ser, Ademir fala de um desnascer na e para a morte, projeção da vida como pesadelo. Produto da “ambigüidade falível” do humano, a morte, como diz o poema de enterramento do livro, “Epitáfio Final”: “…é uma invenção”. O poeta, “através de” Ramsés, e sem fazer as vezes do moralizador, confessa: “meu túmulo/ minha maior obra”. E aí se envagina.

 

 

 

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[1] O poeta Ademir Demarchi, obstinado editor da revista Babel poética, acaba de lançar a obra Pirão de sereia, reunião que comemora os 30 anos de sua atividade como poeta. Para a minha grata surpresa, Ademir resolveu incluir o presente texto no corpo da referida obra. Por esta razão achei importante republicá-lo; e como o Edson Cruz me solicitara uma colaboração, aproveitei a oportunidade para propô-lo à Musa Rara.

 

 

 

 

 

 

 

 

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Ronald Augusto poeta, músico, editor e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No assoalho duro (2007). Dá expediente nos blogs: http://poesia-pau.blogspot.com e http://poesiacoisanenhuma.blogspot.com. É diretor associado do website http://sibila.com.br




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