A literatura e as escolhas provisórias
Preciso selecionar melhor as minhas leituras. Li muita coisa boa em 2011, mas leio, como boa parte dos humanos trabalhadores, nas sobras do tempo. As bibliotecas e livrarias riem da nossa brevidade. Daí a necessidade de filtragem. A leitura me parece assim: ganhos para a memória, a inteligência e a imaginação quando a escolha foi acertada. Créditos na conta da morte se o livro fluiu sem acrescentar significado.
Isso não quer dizer se limitar a ler os clássicos. Na posição de leitor e autor emergente (um entre tantos), pretendo dialogar com clássicos e contemporâneos. Aliás, hoje, merece aplausos o livro que se desponta da pilha dos milênios, consegue acrescentar algo sobre os grandes temas, ao mesmo tempo em que vale como registro (ou tratado) destes tempos difusos.
Permito-me saltar da viagem com o avião em movimento, especialmente quando há excesso de tédio ou turbulência no decorrer das páginas. Poderia ter lido mais no ano anterior se não tivesse abandonado tantos livros. Se não me fisga nas primeiras dezenas de páginas, o livro volta para a estante. Melhor do que chegar à ultima página e ter que lançá-lo contra a parede com a sensação de um tempo perdido que nem Proust me reembolsará. Às vezes o livro bate e volta mais tarde, com mais força, só para provar o quanto o tempo amadurece as ideias.
Aprendi a duvidar. Do personagem e do narrador em qualquer pessoa, tempo e espaço. E de mim mesmo. Saio em busca de bons autores, avalio por minha conta os aplausos e crucificações nas resenhas dos jornais e fico feliz quando encontro algo interessante. Não me limito à leitura do outro. Desconfio dela. O facho de luz está sempre sobre o autor e quase sempre se esquece: o mundo também é repleto de maus leitores. Os jornais, ainda os mais respeitados, não estão livres deles. Literatura nada tem a ver com credibilidade de informação. Nenhum leitor, por melhor que seja, detém a verdade.
Desconfio de critérios universais na medição da qualidade literária. Poe é tido por boa parte dos críticos como o grande precursor do conto moderno. Harold Bloom, sem cerimônias, diz que ele escrevia muito mal. Pode-se lançar luz sobre os personagens, o tempo da narrativa, o espaço, as riquezas da linguagem, os recursos empregados para ludibriar ou surpreender o leitor, entre outros pontos que a crítica atenta destaca com inteligência, ajudando a ampliar o texto. Contudo, o real poder de significação de um texto – talvez o resultado emocional da interação de todos os elementos técnicos e de tudo o que os ultrapassa – isso me parece pessoal e intransferível. Obra alguma cai em leitores diferentes com fôrma única. O leitor, como os próprios romances, possui espaço e tempo característicos e um conjunto peculiar de referências e significados com o qual sentirá e, querendo ou não, avaliará o objeto lido. Na idade em que se deve ler literatura infantojuvenil é até perigoso se aventurar em Machado de Assis.
Caminho com a crença, defendida por alguns e negada por outros, de que, dos aspectos gerais de um texto em prosa, a linguagem é a alma. Não vou discutir se a alma de Flaubert, por exemplo, caminha entre nós em cópias mal feitas, mas as coisas ditas se repetem em outras roupas. Nos meus primeiros exercícios literários (não tão antigos), preocupava-me somente com o enredo. Montava a estrutura narrativa, talvez com algum sucesso, e me esquecia da forma. As escolhas linguísticas, frase a frase, moldam o impacto das palavras. E é isso o que importa. Talvez a fuga mais gratificante da escrita e da leitura seja a que nos desvia dos lugares comuns. A realidade já está infestada deles.
Na minha aventura insistente de leitor de livros em tempos de Twitter, fujo dos extremos: a técnica muito seca e a linguagem empanturrada e vazia de conteúdo. Quando busco o relato puro e isento de artifícios literários, parto de uma vez para o jornalismo cultural e seus parentes. Leio esse tipo de texto com interesse, mas ele me irrita quando vem sob o pesado nome de “ficção”. Já a linguagem se procriando em frases imagéticas e desprovidas de significado amplo me faz recordar o comentário certeiro de Glaciliano: “As palavras não foram feitas para enfeitar, mas para dizer”. Gosto dos adornos quando significam muito. Ai de mim negar a grandeza de Guimarães Rosa, que embelezava o texto de sonoridade e poesia sem abrir mão da racionalidade da prosa, sem simplesmente vomitar demônios e querubins despropositados.
Para concluir, vamos ao único comentário a que tenho coragem de dar contornos de sugestão. Não discuto mais com aquele amigo encrenqueiro, sempre pronto para acender um isqueiro na minha estante de livros, que vive surfando em mares audiovisuais e não se cansa de dizer: a literatura vai acabar, ninguém tem tempo para ler textos de mais de três parágrafos. Ignoro-o. Esse cara já dá a sua contribuição diária para a morte da literatura, assim como contribui para a crise da imaginação, a automatização da vida e o diabo. Mesmo se a seita de leitores se reduzir mais, eu não verei a literatura morrer porque pretendo ler até o fim dos meus dias e, ao longo desta vida breve, haverá livros suficientes para repor meu arsenal. Então, simples assim: contra as previsões culturais catastróficas, abra um bom livro.
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Eduardo Sabino é escritor e jornalista. Autor do livro de contos Ideias noturnas: sobre a grandeza dos dias (Novo Século, 2009). Tem textos publicados em diversos veículos literários, jornalísticos e científicos, como Cronópios, Observatório da Imprensa e Revista Pesquisa Fapesp. Foi editor da revista literária Caos e Letras. E-mail: eduardosabino@caoseletras.com
24 fevereiro, 2012 as 17:40
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7 março, 2012 as 19:50