A errância biográfica no capitalismo


 

Há alguns dias minha biblioteca regurgitou dois livros meio esquecidos. O primeiro foi “Vidas imaginárias”, um clássico de Marcel Schwob que inspirou Jorge Luis Borges a escrever vários textos, em especial o livro “História universal da infâmia”. Schwob o escreveu indagando como são escritas as biografias e como no imaginário se constituem as pessoas em personagens.

O livro é de 1896, todos os “biografados” são reais, porém suas realizações são fantásticas ou fabulosas e Schwob, com isso, além de inspirar Borges, abriu todo um amplo campo de possibilidades de experimentação que chegou ao auge com a metaliteratura em que os próprios autores se transformam em personagens de outros ou de si mesmos.

Schwob, no entanto, fica para outra vez, mas não de todo, pois o outro livrinho que me pulou da estante é de um maringaense contemporâneo meu do período de militância pela redemocratização do país que, ao ser relido, me despertou a curiosidade de saber sobre onde é que ele andaria, que biografia teria feito, pois os poemas contidos em seu livro têm qualidade.

O livro, “Coisas de antes”, escrito por esse poeta, Roberto Martins, e publicado em 1989 pelo autor, tem o calor intenso daquela época, do espírito do poema piada da geração mimeógrafo, dos poemas que pensam o amor e dos poemas que protestam contra a ditadura. Tínhamos ali um poeta promissor, por isso perguntei a alguns amigos e literatos se sabiam desse escritor que poderia ter livros ainda mais interessantes. Eis que o Marco Aurélio Cremasco disse: “Ele está no Facebook e se tornou militante da RCC – Renovação Carismática Católica e publica livros sobre isso”.

Sempre me pergunto o que faz um homem buscar a religião; às vezes me contento com a explicação de que seja por medo da morte ou para encontrar um sentido na vida porque de fato não há sentido absoluto nela a não ser respirar e viver com a melhor serenidade possível para, ao fim, feita a passagem, encontrar a morte.

Ando lendo o provocativo Walter Benjamin para o qual a religião criou o capitalismo e ele a engoliu se transformando numa religião. Por isso, quando vejo um homem que encontra sentido na religião e, além disso, transforma isso num negócio, começo a suspeitar de seu destino, não que suas intenções sejam em si más, afinal, como no caso do Roberto Martins, são bem intencionadas e têm lá uma verdade que ele encontrou para si; no entanto isso não me satisfaz, pois, inserido num sistema de pensamento sem questioná-lo, um homem pode se transformar rapidamente num personagem de Pirandello.

E lendo aquele livrinho de poemas fiquei surpreso que aquele escritor “emérito pichador de muros de Maringá e freguesias…”, como o apresenta Sérgio Rubens Sossélla, outro emérito “enfant terrible”, tenha abandonado a poesia. Isso que na epígrafe do livro Roberto Martins diga como “auto-epitáfio” copiado de Kazantzákis  que “não temo nada. / não espero nada / sou livre”.

Ele o dedica ao Sossélla: “coincidência ou sorte/ dei de cara / com a morte”. Seria por isso que ele, em vez de continuar a escrever poemas ou ir traficar armas na África, entrou para a Renovação Carismática Católica? Sob aquela lógica de Benjamin o valor está suspenso, daí que tanto faz uma como outra escolha nesse contexto contemporâneo em que se comercializa armas assim como almas, indistintamente, uma vez que ambas garantem a sustentação do sistema.

Eis outro poema: “dia lindo demais/ para usar óculos escuros// vida linda demais/ para ficar em cima do muro”. -E fazer uma escolha –de vida, da Revolução para a Renovação? A pergunta é descabida, mas incontrolável à luz da perspectiva da leitura biográfica ao longo do tempo, como sugeriria fazer Schwob. No contexto em que foi publicado o livro, Roberto Martins, porém, referia-se à ditadura, uma vez que quem tinha um mínimo de conhecimento do que acontecia realmente não podia ficar em cima do muro, daí outros poemas como os que seguem:

“1964/ quem está vivo/ sempre desaparece”.

“poema para emagrecer // emagreça/ com o atual/ regime”.

“mesmo que anoiteça/ não cessa o canto/ das cigarras”.

A fama da cidade industrial mítica do desenvolvimentismo da ditadura aparece num poema, registrando um dos aspectos daquela cidade que ficou conhecida por sua chuva ácida, pelas crianças nascidas sem cérebro e pela poluição: “o rio Cubatão/ está para os peixes/ assim como para a solidão”.

Um dos poemas evoca uma cidade, Maringá, que já não existe: “parque industrial I// saindo do mau cheiro do osso/ entro no cheiro do biscoito/ o estômago confuso/ ronca”. Trata-se de um poema nascido de uma sensação física de passar por um lugar, a Avenida Colombo, vindo do parque industrial para o bairro em que morávamos, a Vila Morangueirinha, cujos nomes de ruas eram países da América Latina ou suas capitais. Eu mesmo morava na Rua Caracas naquela Venezuela enmorangueirada que era aquele bairro. Vindo do parque industrial, Roberto Martins passava primeiro por uma indústria de processamento de ossos, que deixava um peculiar odor no ar, assim como a indústria seguinte, de biscoitos, as sensações que deram origem ao ronco físico do poema.

Porém concluo com outro sugestivo poema “em caso de amor/ à primeira vista/ procure um oculista”… que se não serviu para o autor, servirá para mim.

 

 

 

 

 

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Ademir Demarchi nasceu em Maringá e reside em Santos há 15 anos, onde trabalha como redator. Formado em Letras/Francês, com Mestrado pela Universidade Federal de Santa Catarina (1991) e Doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (1997), foi editor da revista Babel, de poesia, crítica e tradução, com seis números publicados de 2000 a 2004. É autor de Passagens – Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná (Imprensa Oficial do PR, 2002); Volúpias (poemas, Florianópolis: Editora Semprelo, 1990); Espelhos incessantes (“livro de artista” com poemas do autor e gravuras de Denise Helena Corá, edição dos autores, Santos: 1993; exposto no Museu da Gravura em Curitiba no mesmo ano); Janelas para lugar nenhum (poemas, com linoleogravuras de Edgar Cliquet, edição dos autores, Santos: 1993; lançamento feito em Curitiba, no Museu da Gravura, no mesmo ano). Além desses trabalhos, o autor tem também poemas, artigos e ensaios publicados nos livrosPassagens – Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná18 Poetas Catarinenses – A mais nova geração deles (ed. e org. Fábio Brüggemann, FCC Edições/Editora Semprelo, 1991);Os mortos na sala de jantar (Realejo Livros, 2007) e Passeios na Floresta (Editora Éblis, Porto Alegre, 2008). Publica também em periódicos como Literatura e Sociedade (São Paulo, USP);Medusa (Curitiba); Coyote (São Paulo), Oroboro (Curitiba),  Jornal do Brasil/IdéiasRascunho(Curitiba); Jornal da Biblioteca Pública do ParanáBabel(Santos); Sebastião (São Paulo); Los Rollos del Mar Muerto (Buenos Aires, Argentina) e sites,  entre eles,  as revistas eletrônicas GerminaAgulhaEl Artefacto LiterarioTantoCritério. E-mail: revistababel@uol.com.br

 




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