A Dama das Rosas
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A história real de uma das maiores cortesãs brasileiras é contada pelo jornalista Lucius de Mello em Eny e O Grande Bordel Brasileiro – nesta edição revista e ampliada, com novas fotos e relatos pitorescos de personagens que frequentaram o afamado prostíbulo. Da sua infância, no bairro da Vila Mariana, em São Paulo, aluna em um colégio de freira, até sua transformação em uma das mais conhecidas cafetinas do país e sua morte, numa cama de hospital, toda (ou quase toda) a trajetória de Eny Cezarino (1917-1987), filha de um italiano e de uma francesa, está aqui retratada.
Em mais de 10 anos de pesquisa, o escritor e jornalista amealhou relatos curiosos, divertidos, rocambolescos e dramáticos não só sobre a protagonista, mas também sobre as mulheres que trabalharam em seu famoso bordel, instalado em Bauru, interior de São Paulo, bem como de seus famosos e ilustres clientes.
Entre os frequentadores do lugar figuraram artistas do porte de Vinicius de Moraes (1913-1980), o notório poeta e diplomata da Bossa Nova, e também donos de empresas, agentes da lei, religiosos, deputados, prefeitos e até um presidente da República. Misto de livro-reportagem e romance, ao revelar a relação entre Eny e poderosos, a prosa de Lucius de Mello também faz uma correlação entre os segredos de alcova e os tratados culturais e políticos alinhavados no Brasil das décadas de 1950 até 1980.
A DAMA DAS ROSAS
Por Lucius de Mello
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A cortesã ali desaparecia pouco a pouco. (…) O passado não tinha mais formas, o futuro não tinha mais nuvens. O sol iluminava minha amante, como iluminaria a mais casta noiva”.
(A Dama das Camélias – Alexandre Dumas Filho).
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O anônimo Dicionário do Amor publicado na França em 1927 nos revela que além de nomear a profissão mais antiga do mundo a palavra puta pode causar uma certa surpresa diante da suposição de que ela remonta também à própria origem das línguas. É o que sugere uma de suas etimologias mais curiosas ao lhe atribuir à mesma origem raiz latina da palavra poço. Segundo escreveu a pesquisadora Eliane Robert Moraes no ensaio “Puta, putus, putida – devaneios etimológicos em torno da prostituta” – segundo o mesmo verbete, seria esse o sentido implícito da antiga expressão “poço de amor”, provável denominação original do que mais tarde viria a se chamar “corte de amor”, evocando a acepção corrente de “fazer a corte”. E sobre os confins onde se esconde o poço original, escreve Moraes: “lá onde livres de toda interdição, a menina pode se consagrar por inteiro ao sexo – e a puta, à filosofia”.
Da escuridão deste “poço filosófico” podem ser alçadas muitas teses e perguntas. Por que não pensar no poço de Alice diante de mulheres tão enigmáticas habitantes de um mundo de nonsense que facilmente nos remeteria politicamente falando ao universo “lewis–carrolliano“. Ou ainda se considerarmos apenas o recorte mitológico: A praga bíblica de Jezebel teria a mesma força que a maldição satânica de Drácula? Será que assim como os vampiros as cortesãs também podem ser vitimas da maldição da eternidade? Estariam as mulheres de vida fácil condenadas a renascer sempre com a mesma profissão apenas trocando de espaço e de identidade? A Paris do século 19 e a Bauru do século 20 podem ter sido palco do espetáculo da mesma elegante cortesã? Marguerite Gaultier e Eny Cezarino apenas trocaram de máscara? Nasceram para encenar roteiros semelhantes em tempo e lugares diferentes?
Eny tinha obsessão pelo vermelho. Do veludo do sofá estilo Luiz XV que decorava o salão do bordel às cortinas compridas que zelavam pela discrição e pela intimidade da casa, às roupas que ela usava no dia a dia, a cor predileta, o vermelho, sempre marcava presença mesmo que timidamente. Nas delicadas pétalas de uma rosa, por exemplo. As rosas eram suas flores favoritas e as vermelhas, então… Nunca podiam faltar. Sempre eram vistas no centro e nos cantos em vasos imponentes de cristal enfeitando aquele sedutor e luxuoso ambiente.
O vermelho do batom, das unhas sempre bem feitas; o vermelho do botão de rosa, da gota de sangue… Esses pensamentos começaram a se tornar ideias fixas em minha cabeça no dia em que me vi ao lado da sepultura de Eny Cezarino. Depois de levar flores ao túmulo do meu pai fiz questão de deixar um buquê de rosas vermelhas no jazigo de Eny no Cemitério da Saudade em Bauru. Enchi de água um vaso azulado de acrílico, ajeitei cuidadosamente cada rosa e coloquei bem ao lado do nome da famosa cortesã. O sol já se despedia e a lua cheia exuberante roubava a cena do crepúsculo.
Não fui ao velório nem ao enterro de Eny até por que ainda nem morava na cidade. Soube que foi uma cerimônia discreta com poucos parentes e amigos e alguns curiosos, nada mais. As rádios e os jornais de Bauru noticiaram a morte dela. A cafetina morreu no dia 24 de agosto de 1987 – o mesmo dia do suicídio do presidente Getúlio Vargas, político que ela tanto admirava. Madame Eny como também era chamada foi vítima de insuficiência coronariana causada pelo diabetes. Estava pobre, falida e tentando vender a última joia que lhe restara para pagar o tratamento de saúde: uma aliança de brilhantes.
Deixei as rosas no tumulo e fui embora quando o cemitério já estava coberto pelo manto da noite. Com certeza se Mauricio ainda fosse vivo teria repetido o meu gesto muitas e muitas vezes. O grande amor de Eny, aprendeu logo que a amada e as rosas vermelhas tinham uma afinidade intocável, eram cúmplices, confidentes, companheiras de uma vida inteira. Mesmo fora de datas comemorativas como a do aniversário, dia dos namorados, Natal, ele sempre enviava rosas vermelhas à Eny com cartões apaixonados. No auge do sucesso, a cafetina também encomendava dúzias e dúzias todos os meses para decorar o salão, o restaurante e as suítes do elegante prostíbulo. Sem falar no jardim pontuado por viçosas e perfumadas roseiras carinhosamente plantadas pela própria dama das rosas.
Como não se deixar sequestrar pelo perfume de todas essas rosas ainda que seja quase vinte anos depois do fechamento do bordel e treze anos após a morte de Eny. No ano 2000 consegui entrar no imóvel pela primeira vez. Ele havia sido vendido em 1983. O caseiro do então proprietário tentou barrar a minha entrada mas com uma pequena gorjeta mudou de ideia e permitiu o meu acesso às ruínas do império de Eny. Não pode mexer em nada, disse o homem. E não demore muito por que meu patrão logo deve chegar e não vai gostar nada de ver o senhor aqui dentro.
Impossível não lembrar de Alexandre Dumas Filho e sua Marguerite Gaultier no clássico A Dama das Camélias , quando invadi o fim do mundo da cortesã brasileira. Alexandre transformou a própria vida em literatura. Tudo indica que o autor francês narrou uma experiência pessoal – sua paixão pela refinada prostituta francesa Marie Duplessis, morta um ano antes da publicação do livro. Nesse caso, Armand Duval seria o próprio Dumas Filho.
Não cheguei a conhecer Eny. Mas assim como o narrador do romance francês e também confidente de Armand Duval eu entrava na casa de uma cortesã que foi rica e admirada após a sua morte. Será que faz mesmo sentido afirmar que uma prostituta morre duas vezes? A primeira vez quando chega à velhice e a segunda quando seu coração para de bater? Triste destino o dessas mulheres que habitam um mundo onde só tem amigos quando se está bem. Assim como Duval também tenho uma inesgotável indulgência pelas cortesãs e também nem me dou ao trabalho de discuti-la.
Só posso dizer que logo que me mudei para Bauru em setembro de 1988 para trabalhar na Rede Globo Oeste Paulista como repórter sempre ouvi com muita atenção os relatos que os moradores me contaram sobre madame Eny. Ficava impressionado com a admiração que alguns bauruenses demonstravam ter pela cafetina um após a sua morte: Ela era bela, charmosa e elegante. Fazia muita caridade! Sempre ajudou os pobres! Pagava o enterro dos mendigos! Uma mulher influente, amiga dos políticos e dos artistas! Os elogios não tinham fim. Comentavam os fatos ocorridos no bordel como se contassem a rotina do palácio de uma rainha. E como eu sentia não ser mais possível conhecer Eny pessoalmente, olhar nos olhos dela e quem sabe ouvir a sua voz baixa e discreta me revelar segredos.
E deixava-me envolver pelas lendas e os mistérios da cortesã. Eny estaria mesmo virando mito? O que seria verdade e o que seria imaginação na memória do povo? Por que Eny não fora condenada ao esquecimento e ainda resiste viva na alma da cidade de Bauru e nas lembranças da maioria dos seus habitantes? Pouca gente foi ao seu velório e ao seu enterro. Que destino cruel o dessas mulheres condenadas a ter amigos só entre quatro paredes e na escuridão. Assim como os vampiros, as prostitutas não tem vida sob o sol. Ainda mais nos tempos de outrora onde eram apontadas na rua como “pecadoras” e uma ameaça às famílias e aos bons costumes. Por isso quase não saiam de casa durante o dia para não sentirem na pele o preconceito e o fogo das palavras lançadas contra elas.
Marguerite e as camélias brancas…Eny e as rosas vermelhas… Ao contrário da dama das camélias que morreu antes de ficar velha e sofrer com o desinteresse dos homens e a punição do espelho, a dama das rosas morreu mesmo duas vezes. Ela teve que encarar a dor da velhice e apesar de parecer estar em paz com a ausência da beleza confidenciava aos amigos mais íntimos que não se conformava em perder o seu maior tesouro para o tempo implacável. Sabia de cor o numero de rugas que tinha no rosto e muitas vezes chorava com medo da própria imagem ouvindo Maria Callas.
Minha imaginação abria caminho pelas ruínas do bordel. Tropecei em pedaços do piso de madeira que estavam soltos no salão; o luxo dera lugar ao lixo; adesivos de propaganda politica com o nome de Paulo Maluf estavam grudados na parede do bar; fezes de rato e de passarinho pelo chão; mariposas mortas em lustres apagados; Tudo muito sujo e abandonado. Alguns quartos ainda mantinham as cortinas, os espelhos no teto e na parede e as camas redondas. A piscina com azulejos quebrados acumulava no fundo um fio ralo de água da chuva. O mato crescia em volta misturado às palmeiras e folhagens da época áurea daquele lugar.
E pensar que toda essa decadência um dia foi um ambiente próspero e glamouroso. Fechava os olhos e tudo ganhava vida como no passado. Assistia ao renascimento do bordel. As belas mulheres desfilavam ao som dos tangos argentinos sob a batuta de Eny. Ela e os seus cabelos lilases reinavam absolutos… A dama das rosas tinha os homens todos a beijar-lhe as mãos. Taças de vinho, fru-fru e champanhe, copos de uísque e conhaque rodavam o salão equilibrados nas mãos firmes dos garçons. À meia luz os flertes se multiplicavam e as prostitutas faturavam alto ao estimularem e participarem das fantasias sexuais masculinas.
Seguia o meu passeio pelo fim do mundo de Eny e não conseguia parar de pensar em madame Gaultier, Assim como a cortesã francesa, Eny também foi sustentada por um velho muito rico na juventude. Ainda mocinha em São Paulo ela conquistou o coração do dono de uma firma de caçambas e foi sustentada por ele com muito luxo, cercada do bom e do melhor. Amores não correspondidos Eny também viveu. Sofreu e se iludiu como muitas prostitutas. Seria esse o destino de todas as cortesãs? Sem amor… sem respirar… Não por acaso a tuberculose ficou conhecida como doença romântica. Matou Marguerite Gaultier e tantos poetas e escritores românticos.
Um crônico problema respiratório também ameaçou a vida de Eny. Estava no começo da carreira e morava no sul do Brasil, na cidade de Paranaguá, litoral paranaense. Foi para curar a tosse e a bronquite que ela acabou em Bauru aconselhada por uma colega que já conhecia a cidade paulista. Lá o clima é quente vai lhe fazer bem! E estão construindo uma ferrovia, não faltarão clientes! Eny veio para Bauru, ficou curada da doença e enriqueceu.
Marguerite morreu de tuberculose. Eny por complicações do diabetes. A cortesã brasileira não só viveu mais que a parisiense como também teve mais sorte no amor. Eny amou e foi amada intensamente por Mauricio Gehara. O mascate de Juiz de Fora e o jovem estudante de direito de Paris. Mauricio e Armand Duval. Dois homens apaixonados por prostitutas refinadas e diferentes em épocas distintas mas duas mulheres que tiveram a alma condenada ao mesmo julgamento implacável de sociedades hipócritas e preconceituosas.
Ao contrario do narrador de A Dama das Camélias que se tornou amigo e confidente de Armand Duval, não conheci Mauricio nem os outros homens que amaram Eny. O máximo que consegui foi conversar algumas vezes ao telefone com o último amor da cortesã brasileira: um coronel do Exército Brasileiro. Na época que o procurei ele morava no Rio de Janeiro no bairro do Cosme Velho. Não queria nem ouvir falar o nome da amada. Desligou o aparelho na minha cara algumas vezes, mas de tanto eu insistir acabou me dando alguns minutos de prosa. Nunca aceitou um encontro para uma entrevista. Minha esposa ainda é viva, dizia, por favor, ela não sabe de nada e não quero magoá-la. Não me procure mais. Essas foram as últimas palavras que ouvi do coronel que deu aulas de tiro à Eny nos fundos do bordel.
Chego próximo à entrada secreta do bordel. A garagem que guardou automóveis e carrões de homens importantes e famosos esta tomada pelo mato. Quantos segredos passaram por ali e foram para o túmulo com madame Eny. A ala das suítes agora é dos bem-te-vis e dos pardais. Caminho, então, pelo gramado, subo e desço escadas até chegar ao outro lado onde ficava a grande área de serviço. Os vira-latas do caseiro são simpáticos comigo. Eny também adorava os animais. Por aqui seus cães pequineses faziam festa. Tinha um trio da pesada: Ting, Tong e Tung, os fiéis escudeiros da Dama das Rosas.
O mundo das cortesãs sempre fascinou romancistas e escritores. Quantas outras prostitutas reais não inspiraram autores a fazer ficção. Especialmente no século dezenove. Na França, além de Alexandre Dumas Filho e sua Marguerite Gautier, Honoré de Balzac criou Valérie Marneffe e Ester van Gobseck; Guy de Maupassant Madame Fifi e Bola de Sebo; Émile Zola escreveu Naná; Marcel Proust Odette de Crécy. No Brasil, Machado de Assis Marcela e Marocas; José de Alencar Lucíola e Aluísio Azevedo Léonie e Pombinha, para citar algumas delas. E diante de tantas personagens inspiradoras lembro-me das palavras de Harold Bloom no ensaio A anatomia da influência:
“Meus alunos me perguntam com frequência por que grandes escritores não podem recomeçar do zero, sem nenhum passado nas costas. Só lhes posso dizer que simplesmente não funciona assim, já que na prática, como no vocabulário de Shakespeare, inspiração significa influência. Ser influenciado é ser ensinado.” (BLOOM, 2013, p. 23-24)
Retorno ao jardim de Eny. Tenho encontro marcado com as poucas roseiras que ainda se mantém vivas e floridas. Em vários tons de vermelho são sobreviventes e, por que não dizer, os últimos sinais da tinta usada por Eny para assinar o que um dia foi a sua obra-prima. Rosas que agora disputam espaço com o capim colonião e com arbustos invasores típicos do cerrado brasileiro. Mesmo assim conseguem ser notadas à distancia ao colorir os envelhecidos, desbotados e barbudos canteiros… Rosas do bem e do mal me quer. Rosas que também nos remetem ao nome da avó postiça que tanto desprezou e condenou Eny.
Estou envolvido por um jardim abandonado que resiste ao tempo mesmo longe dos elogios e dos cuidados da dona original. Toco numa rosa bem delicadamente para que a flor não se desmanche. Ela esta fraca, não resistiria ao chamego de um beija-flor ou até mesmo às patas quase invisíveis de uma borboleta. Não há mais o perfume nem aquela beleza exuberante para os admiradores… Mas a rosa vermelha continua surpreendente ao se despir da máscara e permitir que eu veja a sua essência de camélia branca.
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Lucius de Mello é Mestre em Letras pelo programa de estudos judaicos e árabes da Universidade de São Paulo, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (LEER) e do Arquivo Virtual sobre Holocausto e Antissemitismo (ARQSHOAH), ambos da USP. Jornalista de formação, acumulou experiência como repórter, editor e roteirista de TV por mais de duas décadas, com passagens pela Rede Globo, SBT e Record. O escritor foi finalista do Prêmio Líbero Badaró de Jornalismo, em 1997 e 1998, e do Jabuti, em 2003, na categoria melhor reportagem-biografia com o livro Eny e o Grande Bordel Brasileiro. Também é autor de Um Violino para Os Gatos, A Travessia da Terra Vermelha, Mestiços da Casa Velha e do ensaio Dois Irmãos e Seus Precursores: o Mito e a Bíblia na obra de Milton Hatoum. E-mail: luciusdemello@uol.com.br
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