A arte Zen de iluminar


 

Em 1966 Pedro Xisto ao criar um poema visual composto por um retângulo dividido em três quadrados iguais, e ao subdividir cada quadrado em duas metades exatas, criou o poema intitulado Zen. A harmonia das formas, a simplicidade das linhas, todas unicamente retas, o vocábulo que se dissimula muito bem entre as formas geométricas, tudo leva o leitor a sentir-se dentro dum universo de equilíbrio e harmonia.

Ao ler até nenhum lugar de Ademir Assunção o leitor é tomado por uma sensação muito próxima do mundo zen: ele sente-se sublime. Mais que isto: sente-se inspirado. E como já observou Paul Valéry, a grande sacada de um poeta não é ele ser inspirado, mas fazer o leitor sentir-se como tal. Intento que Ademir Assunção consegue com a simplicidade e a beleza de uma flor de lótus.

Seus poemas são flashes da vida cotidiana, observações de sentimentos trazidos pela memória ou provocados por alguma cena presente. A praia, uma borboleta, o sentimento do amor – tudo é matéria livre, leve e solta para tercetos (na quase maioria) deste poeta que em livros anteriores soube ser arrojado nos temas e expansivo no verbo. E aqui surge-nos contido. Reservado. Como a dizer: eu faço o que quero, quando quero, do jeito que quero. E sorte do leitor: ele sempre faz grande poesia.

Melhor: um livro-valise, que entrega e descerra um manto de delicadezas ao leitor.

Um livro feito da matéria mais sutil do cotidiano. Nada de nonsense. Nenhuma cena demolidora. Nada de delírios, nem dilaceramentos. Nenhuma tragédia. Nenhuma comédia. Muita vida. Toda a vida com seu leque de abrangências em aberto, vibrando ventos, brisas, neblinas.

Um livro feito de filigranas finamente entrelaçadas umas nas outras. Peças de minuciosa e diminuta ourivesaria. Versando poesia sobre o mais corriqueiro cotidiano. Tudo luz, música, silêncio, marujar de águas.

Cada poema une-se ao seguinte numa sequência natural como – valho-me de imagens presentes no livro – a água em cascata. O reflexo do sol no mar. A lua expulsando a escuridão da casa. O céu sertanejo, pleno de claridade estonteante.

Ademir Assunção escreve sobre o déjà vu do mundo. Mas sob uma outra ótica: a que o revela por dentro, desde as entranhas. Revelação que se processa pela pauta da música. Afinal, ela é a força motriz deste livro. Cada poema apresenta-se como uma canção na dança das palavras entre sentir e fazer sentir – entre sentido e fazer sentido.  Som na caixa. As sonoridades dissipam-se entre versos sustenidos nas claves deste livro.

Não resta dúvida; o leitor está diante de um livro-canção, soprado por Anfion. Não é por acaso que o primeiro verso de um dos haicais enuncie: “muralha de pedra”. Na mitologia, Anfion ao tocar sua flauta, fez com que as pedras erguessem, por si mesmas, a muralha de Tebas. A poesia de Ademir Assunção constrói, palavra a palavra, ora um muro, ora uma cascata. O sólido e o líquido tornam-se evanescentes como a leveza da flor-neblina na asa da borboleta.

Falando em leveza, o livro inicia-se com um poema à la Leminski. Ademir adentra a linguagem leminskiana para cair fora dela e gerar o seu próprio poema. Dialoga com o polaco curitibano, mas numa dicção própria. A constatação da presença de quem “já não existe” é apresentada em versos que intercalam rimas toantes abertas e fechadas com rimas consoantes. Neste vaivém rímico de música e antimúsica, a interrogação final projeta o poema para o infinito. E o leitor sente-se imerso nas muitas galáxias que são a vida e a linguagem de Leminski.

A natureza, referência primeira do mundo zen, e espinha dorsal dos haicais, está presente numa gama semântica que repete alguns vocábulos entre 3 e 4 vezes ao longo do livro. E integram todos eles o universo da natureza: sol, lua, noite, dia, água, chuva, vento, cascata, neblina, tempo. Outros aparecem duas vezes: mar, praia, nuvens, tarde, outono, borboleta.

O poema habita o poeta que, por sua vez, tematiza a vida pela via da linguagem. Há um despojamento do eu que o lança num “tempo sem tempo / na praia deserta / só eu e o vento”. O mesmo vento que, ao fim da festa, “entra pelas frestas”, num mo(v)im(ento) anagramático que adentra os versos e é iconizado pelo deslocamento do segundo verso, que se projeta para fora do haicai, (vent)iland(o) o poema.

Mesmo morrer, nesta poesia, é nobre. E é limítrofe a nascer. Em “filme mudo”, o poeta parece dialogar com Haroldo de Campos de “nascemorre”. Enquanto o poema concreto opera o par vida-morte em mescla que germina um no outro visualmente, as duas estrofes de Ademir, um terceto e um dístico, operam o yin e yang na delicadeza absoluta de “casulo na neblina”, cuja imagem rarefaz-se minuciosamente em “fina teia azulada” para depois anunciar “primeiro e último // voo / da borboleta”. Os enquadramentos cinematográficos vão do close, ao super close e depois abrem-se em plano médio que, ao invés de dar amplitude à ação, tolhem-na para compor a cena “muda” da morte.

Na canção “Outras palavras” Caetano, dialogando com o poema “vidavid” de Augusto de Campos, cria o neologismo “ciumortevida”. Tema e forma reaproximam e reciclam-se via língua(gem). Ademir, Haroldo, Augusto e Caetano encontram-se no instigante enigma da vidamorte, da mortevida. Na mesma esteira, e antes de todos, o Cabral de Morte e Vida Severina. “Viver é negócio muito perigoso”, diz o narrador de Grande sertão: veredas. Mas é gostoso, parece completar Ademir Assunção com os poemas de até nenhum lugar.

A borboleta, suas asas e o outono estão presentes em “o sol / dissolve / o orvalho” em que o olho entranha-se em OrvaLHO, e o sol em disSOLve. A fragililidade do orvalho na asa da borboleta encontra na finesse da linguagem poética o objeto representado como matéria concreta.

Dentro do mundo urbano, o vocábulo “casa” aparece duas vezes. Na primeira, relacionado à natureza: “a lua invade a casa” para iluminá-la. Na segunda, como espaço indefinido na geografia do mundo: “tão longe, tão perto / onde fica minha casa?”. Se o eu lírico desconhece o lugar onde fica sua casa é porque sabe que depois de “caminhar / tantas luas tantos sóis” ele vai dar em “nenhum lugar”. Não há lugar certo, fixo, determinado para o caminhante zen. Seu lugar é o não-lugar. O tempo, todos os tempos.

Já o termo “cidade” aparece uma única vez. E mesmo assim, citado obliquamente, através da metonímia: “pés miúdos (…) / as crianças / dobram a esquina”. Há resquícios de civilização em “asfalto molhado”, mas logo vem o que interessa de fato: a natureza: “um rouxinol / cantando na chuva”.

No entanto, o eu lírico de até nenhum lugar é um solitário. Sua companhia, só na aparência, é a natureza. No fundo, ele é um exilado que só encontra abrigo na linguagem. Ela é sua parada. Seu lance. Seu muro. Seu dado.

Há referências a Bashô, tanto em temas como nos modos de formular certos haicais. Como há conversas entrelaçadas com poemas de haicaístas contemporâneos. Todavia, opto por ater-me aos poemas em si. Deixo ao leitor o deleite de traçar estas teias de tramas apaixonantes.

É genial o a-e-i-o-u do poema “limpeza todo dia:” no qual os dois pontos apontam para o disseminar e reunir, no último verso, de vocábulos com estas vogais, que configuram como sendo “o perfume da vida” e do poema. Lembro-me de Leminski apontando para o a-b-c no verso inicial do poema “Antífona” de Cruz e Sousa.

Os poetas embebedam-se uns dos outros, uns nos outros. Não há tempo e espaço na dimensão da poesia. Nem do zen. E quando um poeta junta as duas linguagens, temos maré, onda, praia e mar de armações ilimitadas.

Em “cachorro tão magro” a beleza do haicai veste-se da indumentária de um neocaligrama. Assim, vê-se o cão e seu rabo, num desenho mágico de palavras e espaços.

Em “lance de dedos” (há apenas dois poemas intitulados em todo o livro, e este é um deles) Mallarmé aparece erotizado num vaivém de humor e alumbramento. Monossílabos e dissílabos reverberam ritmos alternados uns nos outros. Cópula de corpos e palavras.

Até nenhum lugar: jogo entre a presença e a ausência. O estar e o desaparecer. O ser e o não ser. Poesia. Música. Zen. Tudo ao mesmo tempo. De agora até o futuro presumido. Para sempre: poezen.

 

[Posfácio do livro escrito pelo crítico e poeta Amador Ribeiro Neto]

 

***


Alguns poemas do livro
:
.

alguém explique
como persiste
uma memória tão vívida

de uma pessoa
que já não existe?

.
**

asfalto molhado
………..um rouxinol
……………..cantando na chuva
.

**

manhã
fria
de outono

o sol
dissolve
o orvalho

nas asas
da borboleta
.

**

nuvens
………..o vento leva
viver é tudo
………..o que nos resta
.

**

a cabeça pensa
……..ao lado da cascata
a água
……..não diz nada
.

**

aos trancos e barrancos
sigo vivendo
meus tragos e barracos

 

 

 

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