A arte e a melhor parte


EM ARTE, O TODO É SEMPRE MENOR DO QUE A MELHOR PARTE
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Começo pelo começo: pela genialidade do autor do Gênesis, que demonstrou enorme habilidade narrativa logo no primeiro versículo, com a indicação, para o leitor, de que ali dará de cara com respostas seguras às primeiras três perguntas básicas do ser humano: de onde ele vem, quem é e para onde vai:

– No Princípio criou Deus os céus e a Terra.

Os textos sobre Abel e Caim, o Dilúvio, mais o do fim de Sodoma e Gomorra, etc, etc, ficam menores, ante a beleza e força da frase. Sua construção se realça no original hebraico, onde gênesis é “berê’shiyth”, e “berê’shiyth” significa No Princípio:

– berê’shiyth bârâ’ ‘elohiym ‘êth hashâmayim ve’êth hâ’ârets

Mas se quem escreve produz imagens mentais, o ponto alto da obra, nesse item, pode ir para outro ponto. Como no Gênesis da Sistina, que é deslumbrante, mas…

… há uma parte, dele, que se destaca de todo o resto:

E, nesse destaque, o melhor está no magnífico detalhe, que Fayga Ostrower, em “Universos da Arte”, descreve muito bem:

– Quase se tocando com as pontas do dedo indicador, as mãos de Deus e do Homem estão separadas por um pequeno intervalo.

E ela arremata:

– Glorioso intervalo!

Qual a fala que nos vem primeiro à memória, quando pensamos em Hamlet?

– To be or not to be, that´s the question.

Por quê?

Porque ela nos diz que, no monólogo que se segue, o tema “quem somos e para onde vamos” volta à baila. Mas não é só isso. Observe sua musicalidade, acentuada pelo uso dos tês:

To be or noT To be, ThaT´s The quesTion,

Sete deles. Mais do que Euclides da Cunha colocou na mais lembrada frase dOs Sertões:

– O serTanejo é, anTes de Tudo, um forTe.

O uso certo de aliterações torna os textos importantes inesquecíveis, mas sem que o leitor ou espectador atente para o artifício utilizado, coisa que infelizmente não acontece em Cruz e Souza, por exemplo, numa estrofe em que – embalado pelas palavras violões e vozes, ele desanda em mais dez outras expressões com a letra vê. A frase deve vestir a ideia como uma luva, como se vê no caqueado famoso, de San Juan de La Cruz:

– un no sé qué que quedan balbuciendo.

Ou nestes vês de Lorca:

Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.

Shakespeare jamais diria sua frase Ser ou não ser como numa de suas versões em francês:

– Être ou ne pas être. La question est là

Ou em italiano:

– Essere o non essere, questo è il problema.

Mas se Hamlet, lido, tem esse grande achado, quando visto, tem outro: a cena em que o príncipe medita com o crânio do bufão Yorik na mão:

São tão fortes os dois lances – o do monólogo e esse, do cemitério – que geralmente os leigos os supõem juntos.

Já a primeira imagem que nos vem de Dom Quixote, é esta:

Repetindo: Sempre há uma parte maior que o todo, na obra de arte. Às vezes até comprometendo o resto, pela queda de nível, como fazem os fortíssimos trinta minutos iniciais deste filme, que não consegue sustentar sua premissa:

Como acontece, também, com este:

… onde a solução de von Trier foi a de repetir e completar, no final, a bela sequência do início, toda em esmeradíssima câmera lenta valorizada pela maravilhosa peça para soprano Lascia ch´io pianga, “Deixe que eu chore”. Essa ária, por sinal, faz com a ópera Rinaldo, de Handel, de que é parte, o mesmo que a célebre A Rainha da Noite faz com a ópera A Flauta Mágica, de Mozart, o mesmo que a Cavalgada das Valquírias faz com a ópera A Valquíria, de Wagner: bota-a em segundo plano.

Seria omissão grave tratar desse assunto, sem mencionar a sequência, em A Corrida do Ouro, de Chaplin, na qual o faminto Carlitos, paupérrimo mas refinado, faz ensopado de uma das próprias botinas, numa refeição que é um espetáculo cômico, no qual cadarços são tratados como fios de saboroso spaghetti:

A maioria do que lemos, ouvimos e vemos entra por um ouvido e sai por outro, como se costuma dizer. Mas o grande lampejo artístico se detém no meio do trajeto, e a memória é sempre capaz de infinitas antologias de tais momentos. Como o do duelo entre violão e banjo do filme Amargo Pesadelo;

o da perseguição carro e metrô de Operação França;

o da corrida de quadrigas de Ben-Hur;

o do discurso de Marco Antonio – Marlon Brando – em Júlio César;

o do monólogo de Corisco no Deus e o Diabo na Terra do Sol;

o da seqüência da escadaria de Odessa, no Couraçado Potemkin;

o de Gene Kelly cantando e dançando na chuva, em… Cantando na Chuva;

o do andróide metálico se levantando e andando em Metrópolis;

o de Max van Sidow jogando xadrez com a morte, em O Sétimo Selo;

o de Janet Leigh sendo apunhalada sob o chuveiro, em Psicose;

o do bombardeio ao som de What a wonderful world, em Bom Dia, Vietnã;

o da ansiosa e trágica volta de Aschenbach – Dirk Bogarde – ao hotel, ao som do Adagietto da Quinta Sinfonia de Mahler, em Morte em Veneza.

A lista não tem fim.

O refrão “Foi um rio que passou em minha vida” marca definitivamente o samba-enredo do Paulinho da Viola, do carnaval de 70.

Os próprios títulos das composições falam da preponderância de algumas palavras suas, como em “Je ne regrette rien”, “La vie en rose”, “Le ça ira” e “Sous le ciel de Paris”, grandes sucessos de Edith Piaff.

A ária La donna è mobile – que começa exatamente com essas palavras – La donna è móbile – é a “cara” da ópera Rigoletto, de Verdi.

Tão … exata, que o tenor que a cantou na estreia somente a conheceu pouco antes, pois o maestro sabia que se os ensaios fossem muitos, não teria nada inédito – tal o vazamento popular de suas criações – para apresentar à noite.

Quantos conhecem o oratório Messias inteiro, a que pertence o Aleluia de Händel,  ou toda a suíte para violino e orquestra, de que faz parte a Ária na Quarta Corda ou na Corda Sol, de Bach?  Quantos conhecem toda a ópera O Guarani, de Carlos Gomes,  cuja abertura ou protofonia está no programa de tudo quanto é concerto popular?

Penso que o romance mais cultuado no país não seria considerado obra-prima sem sua descrição do olhar de Capitu, descrição tão endeusada, por aqui, quanto o sorriso da Gioconda:

“Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, ‘olhos de cigana oblíqua e dissimulada.’ (…) Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.”

Você quer, agora, a cena que é maior, no Evangelho, do que o Novo Testamento inteiro? Poderia ser esta:

… mas, segundo a primeira epístola de Paulo aos Coríntios, 15, 14, é esta:

… pois “se Cristo não ressuscitou – diz ele – é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé.”

Mas vamos encerrando, vamos encerrando.

Veja o maravilhoso Las Meninas, de Velásquez:

Fui vê-lo oito vezes, em Madri. É realmente soberbo. Não apenas pela luz, pela cor, pela profundidade, pela aparência de vida. O artista estava em plena maturidade. Mas um detalhe mais que genial – um pulo do gato, como diria Bráulio Tavares – nos chama a atenção, nele: o autorretrato no canto esquerdo da tela, que nos olha como se estivéssemos sendo retratados:

Maliciosamente, no entanto, o sevilhano põe, lá no fundo do salão… um espelho que mostra que não somos nós que ele pinta:

… mas os reis Filipe IV e Mariana, pais da princesa Margarida,  a garota que centraliza o conjunto de figuras, tornando meu olhar – e o de Velásquez – o da dupla real. Mas esse insight do espelho não foi inaugural. Ele apenas aprimorou um outro, de duzentos anos antes, produzido em Flandres. Jan van Eyck servia-se dele, num retrato duplo igualmente famoso, o do Casal Arnolfini:

Veja o detalhe, na parede ao fundo:

Como a moldura representa todos os passos da Paixão, a primeira epístola de Paulo aos Coríntios 13:12 vem à nossa lembrança:

Vemos, agora, por espelho em enigma,
Mas então, veremos face a face.

Algo assim?! Acho que não. Parece-me que tudo pode ser simplificado e resumido numa capa qualquer do tablóide das inglesas ociosas, o Espelho Diário:

Vê? A manchete realça o grande detalhe da hora: Michael Jackson está morto.

E o resto?

…  is…  silence …

 

 

 

 

 

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W. J. Solha é autor de vários romances, alguns premiados nacionalmente, como Israel Rêmora, A Canga, A Verdadeira Estória de Jesus, A Batalha de Oliveiros, Zé Américo foi Princeso no Trono da Monarquia, Shake-up e Relato de Prócula. Idem para a trilogia de poemas longos Trigal com Corvos, Marco do Mundo e Esse é o Homem. Premiado, também, História Universal da Angústia (com romances, contos, um roteiro de longa-metragem). Última publicação, DeuS e outros quarenta PrOblEMAS .
Trabalhou como ator em vários filmes, inclusive com prêmios pela participação em O Som ao Redor e Era uma vez eu, Verônica – de Kleber Mendonça e Marcelo Gomes, respectivamente.
É autor do painel Homenagem a Shakespeare – em exposição permanente no auditório da reitoria da UFPB e do quadro A Última Ceia Marxista, do Sindicato dos Bancários da Paraíba. E-mail: wjsolha@superig.com.br

 




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