Metacorporeidade e escultura
.
Quando o poeta utiliza a palavra “rosa” num poema, ele não se refere necessariamente ao objeto conhecido por esse nome. A rosa do poema nunca é a rosa-objeto ou a rosa com as suas propriedades físico-químicas. Cézanne não almejava retratar a árvore na sua fisicalidade, mas aquilo que a tornava um ser-árvore. A árvore de Cézanne nunca será aquela do jardim botânico. É por esta razão que o pintor buscava capturar o movimento interno, a forma em gestação de um ser orgânico que dificilmente se revelaria na sua superfície externa.
Um artista, ao criar a sua obra, busca o inusitado. Ao invés de retratar um objeto com função pré-determinada, inserido num sistema de usos e costumes (por exemplo, um automóvel, uma televisão ou um freezer doméstico), ele ousa criar um ser cujas características transcendem a sua própria presença no mundo. É por isso que se percebe uma diferença notável entre um objeto de arte e um objeto produzido para atender às necessidades utilitárias. As palavras do poema e as cores de um quadro são singularidades que transcendem a facticidade nua de uma dada situação. Não podemos supor um poema ou um quadro como “cópias” da realidade, imitações artísticas pretendendo representar o seu conteúdo. Ainda que a obra de arte mantenha relação com um determinado referente, ela não está ali diante de nossos olhos com a função de representar ou de descrever aquele suposto objeto. No campo da arte, não é relevante discutir o grau de representatividade que uma obra poderá alcançar a partir de sua remissão referencial.
Um poeta não nos mostraria simplesmente a paisagem que ele viu na infância. É inegável que um bom poema poderá nos suscitar certas lembranças, mas essa não será a sua única finalidade. A linguagem da arte nunca é “demonstrativa” no sentido de ser um silogismo de caráter lógico. Uma prosa poética como Uma Temporada no Inferno não demonstra, não prova, não conclui. Não poderá jamais ser tratada como proposição lógica. Além disso, uma obra de arte não se limita à mera função comunicativa. A razão é que o artista é, de certo modo, metacorporificador de novos sentidos, constituindo aquela efetividade da obra enquanto órgão ressonante e multiplicador de sinestesias.
É provável que isso se dê em razão do próprio campo de virtualidades e potências que uma determinada obra poderá assumir no fenômeno da sua metacorporificação. A noção de metacorporeidade aqui concebida é suficientemente ampla abarcando desde ruídos abstratos, riscos no desenho, letras, feixe de luzes, escultura de argila até a presença do corpo em sua imantação física. Tudo poderá se metacorporificar dependendo da forma como, por exemplo, o escultor decompõe e recompõe os elementos de sua criação. O problema fundamental consiste em compreender como a sua escultura põe em jogo crítico os volumes, a matéria em si e as suas dimensões espaço-temporais. Em primeiro lugar, ele organiza materiais, delimita um plano. Em segundo lugar, lança figuras, projeta espaços, vetores e conceitos; nesse processo, dinamiza variações e agencia “metacorporificações”. Em terceiro lugar, delineia uma estrutura, um novo modo de ser-corpo. E, por fim, performatiza a sua obra colocando-a em relação com as outras corporeidades.
A sua criação é, como já pensava Merleau-Ponty na Fenomenologia da Percepção, um projeto de ancoragem no mundo, uma montagem corporal que se projeta efetivamente no campo da existência. Não é apenas a mente do escultor que esculpe, mas o seu corpo inteiro. A consciência do artista é corpo enquanto ser-no-mundo que se efetiva no domínio das contingências mundanas. Contudo, é necessário ainda ressaltar que tal criação não deixa de se exprimir como um certo modo de metacorporificação que, por sua vez, engendra uma nova existencialidade. Segundo nossa concepção, a obra de arte pode ser vista então como estrutura condensada de relações, estrutura esta que excede os seus próprios limites, transcendendo-se a si mesma nas suas infinitas possibilidades. Ela é concretizável e concretizada numa vasta rede de interconexões. A transcendência, nesse movimento, não é a busca de um céu situado no além, mas o processo metacorporificante/dialógico/interconectivo de certos elementos corporificáveis.
Assim, o que significa dizer que “um artista metacorporifica a sua obra de arte”? Em primeiro lugar, significa que ele maquina intencionalmente numa determinada dimensão corpórea uma pré-estrutura incorporal. Ele dá forma àquilo que é informe, ou seja, ele é a condição determinante de sua matéria indeterminável. Em segundo lugar, significa que ele coloca intencionalmente sua obra em conexão com as outras formas criadas pela cultura humana, o que somente é possível mediante uma espécie de excedência. Se, por um lado, as obras de arte são estruturas autônomas e autossuficientes, por outro, elas não deixam de ser também extrusivas e excedentes. Desse modo, além de serem consideradas em si e por si, elas passam a adquirir esse poder de excedência, como que encaminhando-se para uma espécie de descentramento de si próprias. Sabemos que a imagem poética num poema é uma construção autotélica com sentido autônomo em si mesmo; entretanto, é possível vislumbrar nela sentidos que deslizam para fora da esfera de sua própria autonomia. É nesse sentido que sustentamos que as obras de arte são metacorporeidades excedendo-se a si mesmas na medida em que elas se alastram e se propagam para além de sua esfera particular.
Esse movimento de excedência se torna possível graças à atividade metacorporificante do próprio artista que, em certa medida, descentraliza sua obra. É assim que a obra se transmaterializa, isto é, adquire o caráter de uma matéria permeável às interconectividades de seu próprio tempo. Isso não quer dizer que a obra deixará de ser uma forma materializada. Paradoxalmente, tudo se passa como se ela pudesse adquirir certo índice de indeterminação, certo vazio ou coeficiente de interconexão com as outras possíveis corporeidades. Há uma transmaterialização dupla, pois, tanto a obra se conecta com as múltiplas contingências quanto o artista se metacorporifica na sua relação com o outro numa espécie de dimensão transmaterializante.
Por isso mesmo, o artista não se preocupa em informar ou comunicar uma mensagem, mas em elaborar texturas sensíveis, sinestésicas, metacorporificantes e transmaterializáveis. Como construtor que arquiteta, projeta, escolhe e seleciona os elementos de sua composição, ele cria inúmeras materialidades interconectivas. Nisso convergem a percepção, a sensibilidade e a construção seletiva. O artista, nesse processo de escolha, dispõe palavras, sons, cores, movimentos, elementos orgânicos e inorgânicos numa determinada estrutura, seja qual for o material que utilize. Desse modo, sucede – como bem percebeu o linguista russo Roman Jakobson – a projeção do eixo paradigmático sobre o eixo sintagmático na escolha dos seus materiais e na configuração dos mesmos. O eixo paradigmático é o plano das associações de ideias, imagens e significados. É o plano dos paradigmas e dos paralelismos semânticos. O eixo sintagmático é o plano onde as possíveis associações se costuram e se concatenam por meio de contiguidades estruturais. Ao fazer a sua obra, o artista projeta um conjunto de virtualidades paradigmáticas sobre o esquema sintagmático. Em outras palavras, ele projeta um vasto campo de significados culturais/simbólicos na sintaxe de suas formas.
Nesse aspecto, um poeta pode recriar sentidos associando palavras que se conjugam no campo das sonoridades. Certas relações sonoras como aliterações e assonâncias desenvolverão possíveis cadeias de palavras. É como um jogo de combinações, invocações e operações cirúrgicas. Através da desconstrução e reconstrução, o artista imprime consistência à diversidade empírica dos materiais, mas também escava túneis ilimitados na superfície da linguagem, desencadeando uma espécie de explosão semântica. Não são as obras em si mesmas que compõem o sentido, mas as suas conotações evocadas, as suas lacunas ecoando um novo desdobramento.
É nessa dimensão operatória que as esculturas do LOZ-2962 STUDIO estendem a malha da linguagem à sua enésima potência no sentido de um procedimento metacorporificador cujas desarticulações descentram o espaço estriado da forma. Ainda que não haja a representação realista de um conteúdo, perpassa nelas um sentido inaudível, latente, silencioso. Não nos caberia nesse momento encontrar uma adequação entre o objeto escultórico e o seu conteúdo representativo. Ao contrário, longe de ser um problema de “adequação” ou “representação”, propõe-se uma “metacorporificação de sentidos”, um regime de signos que agencia contínuas itinerâncias, trajetos, modulações, intermediações, deslocamentos de significantes, os quais, por sua vez, se associam mais à desestratificação das camadas internas/externas do corpo do que à modelização de uma figura. Daí o fato de que a modulação das texturas, a criação das interconectividades e o traçado das matérias possam se transvasar numa espécie de fluxo oscilatório sub-representativo, sendo que tal potencialização do devir se dá num permanente diálogo com a tradição pluralista das artes visuais, sobretudo, se pensarmos na exploração das diversas possibilidades de subjetivação no mundo contemporâneo. E, ao mesmo tempo, na fusão heteróclita de materiais através da hibridização de linguagens. Nesse contexto, é importante lembrar o que diz o artista plástico e curador Alexandre Murucci no seu livro Nova Escultura Brasileira (Gala Edições, 2011):
“(…) A trajetória do Corpo na escultura, retorna, a seguir dos anos oitenta, como havia acontecido antes na pintura, desde a “Neue Figurationen”, a vislumbrar limites a serem ultrapassados, reabrindo discussões e restaurando o próprio corpo (le corps propre), segundo Merleau-Ponty, nesta volta ao figurativismo, deposto como fatura principal, desde a chegada da arte conceitual nos anos 60-70 e de onde trabalhos como “Corpobra” de Antônio Manuel ou Hang Up de Eva Hesse, detinham o corpo como mensagem e não meio. E onde experiências de narrativas abertas, por Lygia Pape, propunham uma negociação corpo/espaço. Então, a partir das trans-vanguardas, o corpo, agora livre de qualquer compromisso, reativa seu perímetro através da Neo-figuração, em artistas como Cristina Salgado, Florian Raiss ou Efrain Almeida”
É através dessa remodulação metacorpórea e de suas possíveis significâncias no processo de transmaterialização que a poética de nossas esculturas se configura no sentido da fragmentação/desconstrução/expansão das possibilidades intrínsecas de nosso corpo. Daí por que, durante o nosso trabalho de criação/pesquisa, era surpreendente o modo como as esculturas iam sendo construídas por agenciamentos múltiplos. Enquanto metacorporeidades afetadas por outras forças intensivas, elas se tornavam porosamente fluidas e potencialmente interconectivas a ponto de serem as imagens de nosso próprio processo de subjetivação. A imagem da subjetividade como “consciência encapsulada”, tal como sustentaria uma certa concepção idealista, perdeu-se no espaço lacunoso e cedeu lugar à aparição de outras imagens. É assim que também nossas subjetividades tornaram-se modulações escultóricas em conexão transversal com o mundo, sendo moldadas tanto por dentro quanto por fora, como texturas imersas na ambiência e nas condições da alteridade.
Desse modo, se pensarmos na complexidade do uso de argila e na problemática dos materiais implicados nesse processo, teremos de observar um agenciamento de componentes extremamente heteróclitos. Pois, o elemento-chave de tal processo escultórico se encontra na materialidade da argila em sua metacorporificação com os diversos fatores de produção (fogo do forno, temperatura ambiente, modalidades de revestimento, varreduras na superfície, pintura e corpo do próprio performer). Sabemos que, na sua permeabilidade, tal componente matérico se deixa afetar pelas diversas possibilidades intensivas de metamorfose. De modo análogo, o processo escultórico pode ser visto como performatividade, modulação metacorporificante cujas texturas se desconstroem e se reconstroem com órgãos de uma subjetividade-corpo em transformação. Cada escultura comporta uma pluralidade de trajetos interiores e exteriores que podem ser apreendidos como caminhos e descaminhos de uma cartografia performática. E, assim como uma máquina com as suas peças sujeitas ao desgaste é algo a ser construído de modo a resistir às contingências de seu próprio perecimento, a forma escultórica não seria uma espécie de simulacro metacorpóreo na sua performativização matérica, levando em conta a precariedade de seu funcionamento, as suas possíveis fraturas e a intensa circulação das potências fluídicas de um corpo em determinadas circunstâncias imprevisíveis?
Na perspectiva da metacoporeidade, essa indagação se torna fundamental na medida em que se problematiza a identidade do corpo contemporâneo, quando este último é tomado como ponto nevrálgico de todo imbricamento de questões sociais, políticas e antropológicas, tendo em vista a relação inexorável entre subjetividade descentrada e o contexto da proliferação de órgãos artificiais/maquínicos/protéticos com as suas diversas texturas hibridizantes. Por isso, nesse contexto, torna-se imprescindível refletir sobre o modo de subjetivação enquanto construção identitária atravessada por processos hibridizantes. Paradoxalmente somos levados a pensar na concepção ocidental do nascimento do homem, segundo a qual o primeiro sujeito da história conhecido como Adão teria sido criado a partir do barro. Nessa concepção hierárquico-mimética, a figura de Adão foi modelada e moldada por Deus à sua imagem e semelhança (mimetização como imitação/subordinação ao modelo). Assim, é possível conceber conceitualmente o barro como esta metáfora da materialidade primeira no processo de interação Homem-Máquina-Mundo, já que desde a antiguidade, a criação do utensílio doméstico – e nesse sentido, da primeira máquina humana –, implicou o seu uso tanto na fabricação de vasilhames quanto na arte das esculturas. Tal construção mimética se deu às custas de uma subordinação da criatura ao seu modelo ideal. Entretanto, tal mimetização é subvertida quando aparece um elemento dissemelhante na relação Corpo- Mundo, Adão-Deus, Cópia-Modelo. No diagrama de analogias, esse segundo elemento aparece subvertendo a correlação harmônica entre os termos.
{Corpo – Escultura – Mundo}
{Adão – Máquina – Deus}
{Cópia – Simulacro – Modelo}
Nesse caso, a escultura assume sua potência dissimilar tal como uma máquina ou um simulacro que subverte a correspondência linear, hierárquica e homogeneizante. É considerando essa complexa interação que se pode ver no trabalho com argila essa primeira revolução tecnológica enquanto processualidade maquínica e criação/emancipação da cultura humana. Nesse aspecto, como escultura-máquina, nosso corpo humano também não está se autocriando e sendo recriado por mutações protéticas através da absorção de materialidades artificiais e, em certo sentido, se desnaturalizando enquanto criação adâmica?
É assim que nos movimentos sincrônicos/diacrônicos do tempo, nas hibridizações do arcaico/contemporâneo, a subjetividade-corpo se vê cada vez mais imergida em simultaneidades díspares, em mutações imprevisíveis e em velocidades irregulares. Desde a dimensão da natureza até as complexas construções da cultura humana, somos constantemente atravessados pelos fios invisíveis da matéria-argila e pela ruminação incessante das máquinas. Ainda não sabemos se tal mutação no modo de ser da subjetividade é o que produz um movimento essencial ou um deslocamento de outra natureza. Mas percebemos somente um fluxo de desarticulações que desestabiliza as normas disciplinares e os códigos estratificados, como se a partir dessa dissonância fundamental pudesse emergir uma espécie de movimento irredutível àquela mimetização tão arraigada de nossa construção identitária ocidental.
.
.
INFLACIONÁRIA TRAVESSIA
num terrível disparo que se extravia ao se desgrudar da mesa granulada como ostra periculosa descendo a lonjura das estrias ou aquela espécie mais ríspida do rinoceronte que se esfola pelos ninhos ensurdecedores da discórdia embora não sendo raro esse mergulho invertido de quem se resgata numa ruminação de aéreas armaduras quando talvez seja possível se embrenhar por entre ramagens daquela engrenagem enrodilhada de vozes esparsas assim como se agarram os tremores de tubérculos lanosos sob a inflorescência quase inofensiva de deuses amortecidos no meio de oscilações porosas a ponto de se descolar entre ranhuras e ervas e várzeas aquele esqueleto irrespirável por onde a traqueia encavalada se suspende junto aos ruídos de um mensageiro amarrado às inclinadas sedimentações do laboratório engessado como sob a geada invernal que desobstrui os órgãos da passagem da lua ainda que não se consiga avistar o interregno pustuloso entesourado nas pálpebras da goela após o tombo enviscado do pêndulo que pouco a pouco se desengata em acordes ventriculares atraindo plumas cerosas na escama de uma solidão prestes a se desmoronar enquanto névoa torrencial de angulosos trituradores sobre o terraço iluminado de algumas janelas emplastradas nos esponjosos eflúvios de um vasto espelho que vai se contorcendo qual duelo indelével de asas taciturnas como que arrastando as narinas do inflamável funâmbulo cujos olhos dissimétricos mal se hospedam na soleira da noite resistindo ao clorofórmio desgarrado atrás do qual cada folículo desfiado se desprende do irrecusável casaco à volta da fosforecência indistinta mas tão enlanguescida quanto aquela escova de aço presa à parede pendendo com seus olhos de tempestade a insuflar um oceano de óvulos escurecidos sob o último esplendor da violácea esterilidade como se nesta única forma imprecisa a iridescência dos testículos acrílicos fosse se semeando entre as vesículas das profundezas enquanto se ouve a secura das orquídeas na brevíssima sinfonia dos limos acumulados pois não sendo então impossível a própria desaparição de si mesmo naquela fotografia obscena das crescentes colunatas cartilaginosas quando o muro histérico cheio de cinzas consternadas abocanha o mísero corpo atirado ao recurvado silêncio de uma superfície invocatória
.
Chiu Yi Chih é filósofo, escritor e performer chinês de origem taiwanesa. Publicou o livro Naufrágios (Ed.Multifoco). É mestre em Filosofia pela USP. Professor de Filosofia da Arte no Instituto Mandarim Yuan De. Criador da Metacorporeidade no LOZ-2962 STUDIO (China-Taiwan-Brasil) e da performance Philomundus. Escreve no http://philomundus.blogspot.com / email: winnerchiu@gmail.com
Comentários (1 comentário)
Comente o texto

1 agosto, 2012 as 13:51