Freud e Oswald de Andrade
……………………..Freud, Oswald de Andrade e Antropofagia
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A utopia antropofágica de Oswald de Andrade tem um núcleo temático: a transformação do patriarcado em matriarcado.
Em Oswald, o patriarcado é representado pela sociedade burguesa e capitalista, centrada no direito de propriedade do dominador, na usura, na hierarquia familiar, nos vícios do homem civilizado, na especulação lógica e metafísica, na repressão dos instintos e da liberdade sexual. Negatividade histórica é o nome geral dessas características. Da ótica oswaldiana, o patriarcado é um tabu encravado no curso da História.
Por sua vez, o matriarcado, em Oswald, se identifica com a implantação de uma nova idade de ouro, cujos valores revolucionários promoveriam a substituição do direito de propriedade do homem civilizado pelo direito de posse do homem primitivo, a superação da usura e do negócio pelo ócio, o fim dos poderes centralizadores e autoritários pelo advento de uma vida comunitária aberta aos prazeres vitais, ditados por uma libido individual sem censura. O matriarcado desencravaria o tabu patriarcal da História, transformando-o em totem de uma feliz e nova idade.
Oswald chama de “revolução caraíba” tal transformação utópica, cujo agente emblemático seria o homem novo do novo mundo descoberto pelo colonizador, ainda infenso às degradações impostas pela civilização.
Oswald, entre outras fontes, encontrou na Psicanálise um dos fundamentos de sua teoria. Tomando conhecimento dela, nos anos vinte, Oswald fez uma leitura de Freud, no mínimo, pouco ortodoxa. Eu diria: uma leitura de conveniência, já que, por um lado, concebe a Psicanálise como sintoma prévio de suas idéias antropofágicas e, por outro, como método de pesquisa e aprofundamento dessas idéias. Enquanto sintoma, Oswald entende que Freud, ao fazer o diagnóstico da sociedade patriarcal, apontou nela a negatividade histórica de seu traço repressor. Enquanto método, ele entende que Freud, ao investigar o inconsciente e penetrar os seus complexos psíquicos, deu respaldo ao princípio subversor da antropofagia, pelo qual a todo sim corresponde um não implícito e vice-versa, numa réplica à ambivalência freudiana que prevê no conceito de “pureza” um conteúdo de “impureza” ou na identificação de um “tabu” a presença subjacente de um “totem” possível. Apesar da importância atribuída por Oswald à Psicanálise, ele ainda a considera um subproduto da civilização patriarcal, e acusa o próprio Freud de ser mentor de uma espécie de consciência arrependida da negatividade histórica. Nesse sentido, inventa um “Freud católico” empenhado em absolver e salvar os seus pacientes de seus “pecados”, em forma de neuroses e “desajustes”. Diz Oswald: “as experiências das teorias de Freud numa sociedade natural trariam também a derrocada de outros resultados da Psicanálise. Que sentido teria num matriarcado o complexo de Édipo?”. Em outras palavras: se o método freudiano detecta os sintomas negativos e traumáticos da sociedade burguesa, nem por isso os portadores desses traumas devem se rebelar ou destruir essa sociedade.
Podemos dizer que a invenção de um “Freud católico” obrigou Oswald ao seguinte paradoxo: o de aceitar, estratégicamente, o método terapêutico de Freud, desde que corrigido em “alguns de seus erros profundos”, para que tal método se encaixasse melhor nos propósitos da “revolução caraíba”, cuja meta é dar fim à história do patriarcado.
Passando a limpo o que seria a correção de erros e praticando a “crítica da terminologia freudiana”, Oswald explica: “A Antropofagia só pode ter ligações estratégicas com Freud que é apenas o outro lado do catolicismo./Mas Antropofagia que bafeja no homem natural a construção da sociedade futura não pode deixar de ver alguns erros profundos de Freud. O recalque que produz em geral a histeria, as nevroses e as moléstias católicas não existem numa sociedade liberada senão em porcentagem pequena ocasionada pela luta./ Cabe a nós antropófagos fazer a crítica da terminologia freudiana./ O maior dos absurdos é por exemplo chamar de inconsciente a parte mais iluminada pela consciência do homem: o sexo e o estômago. Eu chamo a isso de consciente antropofágico. O outro, o resultado sempre flexível da luta com a resistência exterior, transformado em norma estratégica, chamar-se-á o consciente ético” .
Aí está: para quem “bafeja no homem natural a sociedade futura”, o método de Freud, mesmo útil, teria que ser revisto e depurado de sua acomodação catolicizante, afim de compor-se com a radicalidade transgressora do “consciente antropofágico”, destinado a vencer a “resistência externa” dos valores patriarcais e a inaugurar a nova “consciência ética” de uma futura sociedade matriarcal.
Nesses termos, parece claro que, na concepção pertubadora de Oswald, não há lugar para alternativas. Sua “revolução caraíba” apóia-se em roteiros seguros sustentados pelo que ele chama de “únicos imperativos categóricos” de ação. Esses imperativos, ele os definiu, através de antinomias tais como: a) opor a posse à propriedade; b) sobrepor o selvagem ao civilizado; c) substituir a abstração metafísica do verbo to be pela concretude ontológica do substantivo “tupi” (tupi or not tupi, eis a questão); d) e, sobretudo, transformar os tabus da cultura letrada em totens de uma cultura primitiva, livre das “nevroses” e outras “doenças católicas”, diagnosticadas mas não extirpadas por Freud.
Uma maneira de acompanhar o roteiro de tais imperativos é distinguir as menções que Oswald faz a Freud no seu Manifesto Antropófago. O manifesto traz três menções centrais. Todas desenham os cuidados e reservas de Oswald. A primeira denota cumplicidade e concordância com contribuições freudianas, em particular aquela que valoriza a mulher (célula matriarcal) diante da família repressora e de seus maridos católicos. Êi-la: “Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa”.
A segunda menção é quase um mini-manifesto, encartado no Manifesto. Nela, a rejeição a um imaginário Freud “sublimador de instintos” ganha contornos de um jogo meio maniqueísta de antinomias. Oswald, nesse jogo, enfatiza o desencontro entre definidos vícios patriarcalistas e supostas virtudes do matriarcado de seus sonhos. A menção é esta: “A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu tabu. O amor cotidiano e o modus vivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade./A antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico./A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo”.
Nesta citação, parece óbvio que Freud é lançado numa incômoda berlinda intermediária. O fato de ele ter sido o grande identificador dos “males catequistas”, não o isenta de sua complacência em relação aos vícios patriarcais do “modus vivendi” capitalista. É o que transparece das renovadas oposições que Oswald desdobra, em busca de comprovação da validade revolucionária de seu projeto antropofágico. As oposições assim se definem: a) contra as espiritualizações sagradas das catequeses (“inimigo sacro”) – a aventura humana de “terrena felicidade”; b) contra as sublimações sexuais – a “antropofagia carnal que traz em si o mais alto sentido da vida”; c) contra os pecados de catecismo e a peste dos povos cultos e cristianizados – a “escala termométrica do instinto antropofágico”. E, finalmente, em forma de corolário: contra os tabus dos colonizadores vitoriosos – a capacidade do homem natural de converter os tabus em totens da idade de ouro do matriarcado emergente.
A terceira menção completa o roteiro desses imperativos e remete para o debate das idéias de Freud, no minado terreno das reconversões de tabus em totens e da retomada de posse da pureza originária do indígena, expropiada, segundo Oswald, pelo “direito” de propriedade do colonizador. A menção é sintética: “Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexo, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama”.
Vestida e opressora!… Trata-se obviamente da cultura européia, letrada, trazida aos trópicos pelo colonizador português. Em outras palavras: trata-se da tradição cristã, cujos valores conferem ao conquistador o “direito” de apropriar-se da cultura nativa, em nome de sua “salvadora” missão catequética.
Oswald vê nessa relação de domínio o espectro do tabu da superioridade do colonizador, a quem o colonizado deverá obediência e culto. Procura justificar essa visão, “pinçando” alguns argumentos desenvolvidos por Freud em torno dos conceitos de totem e tabu, a exemplo daquele em que Freud afirma que a palavra tabu conota com “sagrado, misterioso, perigoso e acima do comum”, advertindo que essa “sacralidade” contem em si a idéia de proibição e de interdito. Vale dizer: as pessoas devem venerar o tabu, sem jamais “tocar” ou violar o seu incomum mistério. Tocá-lo é levar impureza ao que é puro e, conseqüentemente, desencadear penas e castigos, dentre os quais o pior de todos, anotado por Freud, seria o de o violador tornar-se, ele próprio, um outro tabu, a mercê de outras incessantes violações. Por esse motivo, Freud ressalta a necessidade de se manter “intocável” o temor reverencial perante o mistério, ao afirmar: “É precisamente esse significado neutro e intermediário – demoníaco ou o que não pode ser tocado – que é com propriedade expresso pela palavra tabu, tanto para o que é sagrado quanto para o que é impuro: o temor do contato com ele” (Totem e Tabu, Imago/74, pg.39).
Aos olhos de Oswald, argumentos dessa natureza testemunhariam, de novo, o perfil “católico” de Freud, pois a contemplação e o temor a Deus assemelha-se ao temor ao tabu proibido. Do mesmo modo, a demonização do contato com o tabu parece ser uma paráfrase da condenação do pecado, na teologia judaico-cristã. Se, à sombra dessa teologia, Lúcifer desobedeceu a Deus, para, como se fosse deus, cultivar a legião pecadora de seus seguidores, igualmente o violador do tabu, ao desobedecer a seu interdito, incorre na mesma profanação herética, atraindo também sua legião de imitadores. Soa, assim, como prédica de fundo religioso e catequético a sentença freudiana de que “qualquer um que tenha violado um tabu torna-se tabu porque possui a perigosa qualidade de tentar os outros a seguir-lhe o exemplo”.
Esse jogo de semelhanças e ambigüidades se aprofunda, um pouco mais, com esta outra explicação de Freud: “O tabu é uma proibição primeva forçosamente imposta (por alguma autoridade) de fora, e dirigida contra os anseios mais poderosos a que estão sujeitos os seres humanos. O desejo de violá-lo persiste no inconsciente: aqueles que obedecem ao tabu têm uma atitude ambivalente quanto ao que o tabu proíbe. O poder mágico atribuído ao tabu baseia-se na capacidade de provocar a tentação e atua como um contágio porque os exemplos são contagiosos e porque o desejo proibido no inconsciente desloca-se de uma coisa para outra. O fato da violação de um tabu poder ser expiada por uma renúncia mostra que esta renúncia se acha na base da obediência ao tabu” (Idem, ib.,pg. 49).
Os pressupostos da revolução caraíba que deseja o retorno do matriarcado sinalizam direção contrária aos argumentos freudianos. Oswald entende que o “direito” de apropriação do colonizador, apoiado em sua retórica de poder, é mero fruto do tabu da superioridade da cultura européia, “imposta de fora”. Quer, por isso, inverter e transgredir semelhante quadro de mentira histórica. Para tanto, propõe a totemização daquele “intocável” tabu da superioridade, mediante a negação e a superação do patriarcado que o legitima. Vale dizer: utiliza o método psicanalítico, até o limite permitido por sua utopia revolucionária. Fora desse limite, sua leitura de Freud se faz sempre ao avesso como se fosse uma errata constante.
Nos trechos, aqui, transcritos, essa leitura invertida não dá margem a dúvida. Basta conferir: onde Freud consagra o “temor do contato” com o tabu, Oswald enaltece o “destemor” do contágio transgressivo, sob forma de “vingança” reparadora. Onde Freud adverte sobre a “perigosa qualidade” de um violador de tabu conseguir “tentar os outros a seguir-lhe o exemplo”, Oswald proclama que seguir o exemplo do violador é o único caminho de transformação de toda e qualquer negatividade histórica. Onde Freud admite ser a “expiação” mais “fundamental do que a purificação do cerimonial do tabu”, Oswald responde que é fundamental anular a expiação e purificar o tabu, totemizando-o. Quando, por fim, Freud enuncia que a “renúncia se acha na base da desobediência ao tabu”, Oswald ergue a bandeira da desobediência antropofágica que está na base do instinto puro da posse, capaz de desfazer as propriedades opressoras da cultura patriarcal e seus interditos.
Como se sabe, Oswald sempre glorificou a contribuição milionária do erro. O “Freud católico” que ele inventou não passa, portanto, de um erro estupendo. Aliás, muito mais que um erro, essa invenção é uma extraordinária arbitrariedade estratégica, sem a qual a improvável utopia antropofágica e o profético renascimento do matriarcado, além de impensáveis, seriam destituídos de sua sedução, fecundamente, provocadora.
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[Publicado inicialmente na parceira Revista Agulha]
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Mário Chamie (Brasil, 1933). Poeta e ensaísta. Autor de livros como Objeto selvagem (1977), Natureza da coisa (1993) e Horizonte de esgrimas (2002).
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