A exegese crítica de Lêdo Ivo


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Os limites do fazer literário sempre foram desafio e superação para Lêdo Ivo. Conhecedor das singularidades da produção de diferentes formas e expressões de conteúdo, o escritor exerceu com desenvoltura e domínio peculiares a Poesia, o Conto, a Crônica, o Romance e o Ensaio, gêneros que se impõem na aventura da sua criação, derivada da experiência e da experimentação da vida cotidiana, transmudada em puro lirismo e na verdade da sua imaginação.

Lêdo Ivo desenvolveu o seu vigor revolucionário lendo os grandes clássicos, Homero, Camões, Goethe, Dostoiévsky e Rimbaud, tendo traduzido os dois últimos. Integrante da chamada Geração de 45, contestou os postulados estéticos e estilísticos do modernismo de 1922, sendo um dos seus precursores mais influentes e importantes. Embora os paulistas reivindiquem como surgida em São Paulo, a Geração de 45 tem, no entanto, a sua precedência estabelecida em Pernambuco, quando Lêdo Ivo, João Cabral de Melo Neto e outros poetas participaram da realização do I Congresso de Poesia do Recife, em 1941, conforme argumenta o poeta e historiador pernambucano Edson Nery da Fonseca.

A produção poética, ficcional e ansaística de Lêdo Ivo está assentada na lucidez crítica com a qual atravessou a longa jornada de atividade na concepção de obras seminais da literatura nacional: As Imaginações, Ode e Elegia e Finisterra (Poesia), A Lição de Mário de Andrade e O Preto no Branco (Ensaio), Ninho de Cobras (Romance) e Confissões de um Poeta (Memória), entre outras publicações. O autor declarou no livro de memória que às vezes é difícil estabelecer fronteiras nos gêneros literários: “Penso num livro agenérico que seja ao mesmo tempo um poema, uma biografia, uma crônica, um romance, um diário, um ensaio – um texto onde os meus eus fragmentados se reúnam, como numa praça, e imponham ao transeunte eventual a verdade momentânea de sua coesão.”

Na concepção de sua obra, alguns escritores, privilegiados, são críticos de si mesmo, considerando que no processo de criação literária é essencial e necessário estabelecer a crítica da autocrítica. Compreender que as palavras contêm um estrato noético vinculado ao seu estrato fônico ou fônico-gráfico, e que a criação literária deve ser a alta expressão da linguagem, sobre utopias e ucronias, é o requisito essencial de todo escritor consciente do seu oficio literário. No contexto da Poesia, o posicionamento em benefício da poesia pura e do hermetismo foi deliberadamente assumido para preservar a dignidade da palavra humana e a mistificação poética, em que incidiram Arthur Rimbaud e Novalis no século XIX, e T. S. Eliot e Giuseppe Ungaretti no século XX, entre outros poetas, diante da era das ideologias e dos ismos, circunstância excêntrica a que foram socialmente submetidos os gêneros literários, sobretudo a poesia.

A crítica literária praticada por Lêdo Ivo – grande parte publicada nos suplementos literários dos jornais e nas revistas de literatura durante seis décadas de atividade de crítico –, fundamentou-se desde o período em que viveu no Recife, desfrutando das leituras de obras consultadas da vasta biblioteca do crítico literário pernambucano Willy Lewin, com quem obteve sua primeira formação literária no início da década de 1940. No ensaio “Para o estudo da Geração de 45”, publicado na décima segunda edição da Revista de Poesia e Crítica, o poeta, ensaísta e crítico literário Gilberto Mendonça Teles destaca que Lêdo Ivo, ao responder à enquête “A nova geração julga a nova geração” da Revista do Brasil, de julho de 1944, afirmou que a minha geração deve ser política, participante”, mas “devo repudiar justamente uma certa espécie de política que considera a arte um instrumento servil, cujo único mérito é ser-lhe útil.” E arrematou: “os verdadeiros inimigos da Arte são os escritores que, perdendo-se ou amputando-se, fizeram da literatura um instrumento contra a literatura.”

Lêdo Ivo foi um dos poucos escritores que soube buscar e encontrar o caminho literário na lição da diversidade. Com Ode e Elegia, publicado em 1944, desvinculou-se de qualquer relação com o modernismo de 1922. Vislumbra-se, na obra, a exegese poética e crítica em conjunção, declarada na aventura de exprimir o mistério da vida e criar uma nova imagem do mundo. O embasamento literário e crítico proporcionou ao poeta a experimentação do chamado verso livre e das formas poéticas fixas, notadamente o soneto, demonstrando o domínio das técnicas e da linguagem literárias.

Esse conhecimento se destaca, sobretudo, nos livros de ensaios O Preto no Branco (1955), estudo sobre o poema homônimo de Manuel Bandeira, Modernismo e Modernidade (1972), A Ética da Aventura (1982), O Universo Poético de Raul Pompéia (1996), entre outros. Lêdo Ivo ressalta que todo poema expressa a sua plurisignificação. Em O Preto no Branco, por exemplo, o ensaísta demonstra que à primeira leitura, o texto literário de Manuel Bandeira, o poema “Preto no Branco”, expressa a sua ambigüidade – o que parece dizer. Expressa, entretanto, mais do que está dito, à medida que se desvelam suas verdades ocultas e deve ser compreendido na sua expressão absoluta, nas entrelinhas, nos significados, nas conjecturas. A exegese crítica se afirma e se consubstancia na declaração do exegeta, do que o texto expressa em sua verdade final, acima das suas verdades contempladas.

No livro de ensaios O Ajudante de Mentiroso, Lêdo Ivo releva a importância dos conteúdos expressivos da crítica literária ao argumentar sobre temas e assuntos relacionados aos escritores brasileiros e estrangeiros, às suas obras e à divulgação nos meios de comunicação. O ensaísta também, oportunamente, contrapõe-se à política editorial desenvolvida nos suplementos literários dos jornais, nas seções de literatura nas revistas e na Internet, que atualmente, em resenhas superficiais, destaca a imensa profusão dos best-sellers lançados pelo mercado editorial no Brasil. Tendo escrito e publicado centenas de ensaios de crítica nos suplementos literários que mantinham rigor e tradição, o ensaísta reclama a ausência da crítica especializada que reconheceu e consagrou os talentos literários verdadeiros no panorama da literatura brasileira.

Os ensaios de crítica literária de Lêdo Ivo estão plenos de altíssimo teor criador, resultante da condição e da qualidade de poeta e de exegeta, capaz de mesclar com rigor a avaliação estética com a observação essencial. O timbre do crítico, portanto, já se manifestara desde o início da sua atividade literária, ao escolher e definir a sua trajetória de escritor independente dos modismos estrangeiros e das formas decadentes praticados por tantos escritores da sua geração ou das gerações subseqüentes. E se todo o seu conhecimento estético o fez tornar-se uma voz diferente e solitária na literatura, isto decorre da sua visão crítica de escritor em permanente coerência com o compromisso literário.

 

 

Referências

IVO, Lêdo. O preto no branco, Rio de Janeiro: Livraria São José, 1955.

Idem. Confissões de um poeta. Rio de Janeiro: Difel, 1979.

Idem. O Ajudante de Mentiroso. Rio de Janeiro: Editora Universitária Candido Mendes, 2009.

TELES, Gilberto Mendonça. “Para o estudo da Geração de 45”. In: Revista de Poesia e Crítica, nº 12: Brasília, 1986.

 

 

 

 

 

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Rosalvo Acioli Cavalcanti Júnior nasceu em Maceió, Alagoas. Graduou-se em Direito pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió e em Jornalismo pela Universidade Federal de Alagoas. É filiado à Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Alagoas, desde 1994. Desenvolveu as seguintes atividades: assessor cultural do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, de 1982 a 1984; assessor cultural e administrador da Academia Alagoana de Letras, de 1985 a 1987; colunista e crítico literário do Jornal de Alagoas, de 1986 a 1993; assessor cultural e gerente de marketing do Jornal de Alagoas, de 1991 a 1992; assessor especial do governador do Estado de Alagoas, de 1992 a 1994; assessor de gabinete da Secretaria da Cultura do Estado de Alagoas, de 1995 a 2004; assessor de gabinete do Gabinete Civil do Governo do Estado de Alagoas, de 2005 a 2007. Atualmente, desenvolve a atividade de assessor de gabinete da Secretaria de Saúde do Estado de Alagoas. É ensaísta, crítico literário, poeta, tradutor e editor. Estreou na literatura com a publicação de Sonhos Imaginários (Poesia) (Global Editora, 1984), distinguido com o Prêmio Gustavo Paiva de melhor livro de Poesia em 1985, promovido pela Academia Alagoana de Letras, obra que também foi indicada ao Prêmio Jabuti de melhor livro de Poesia em 1985, promovido pela Câmara Brasileira do Livro, e ao Prêmio Olavo Bilac de melhor livro de Poesia em 1986, promovido pela Academia Brasileira de Letras. Também publicou Maceió (Poesia) (Editora Senha, 1987) e Tempo de Memória (Ensaios e Crítica) (Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2012). Fundou e edita desde 2010 a revista literária Página Aberta. Organiza e realiza, a cada dois anos, desde 2011, o Fórum Literário Internacional em Maceió, Alagoas, Brasil. E-mail: rosalvoacioli@uol.com.br




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