E mais não digo
Não é mau este costume de escrever
o que se pensa e o que se vê, e dizer
isso mesmo quando se não vê
nem pensa nada.
Machado de Assis, Memorial de Aires
E MAIS NÃO DIGO
A nobreza do Nobel
O ganhador de um Nobel, por exemplo, de literatura, que é um rematado malparido, não deixa de sê-lo logo após receber a honraria. Octavio Paz, à época de sua consagração, havia se transformado num neoliberal defensor do imperialismo dos EUA. E ainda há os dreads de um dos recentes ganhadores, mas eu não direi nada além disso.
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Incluam-me fora
Tem certas vergonhas que devemos deixar os brancos passarem por elas sozinhos, aí vão algumas: seguir a doutrina espírita, assistir ao Conversa com o Bial, entrar em academias literárias, ser coach, frequentar baile de máscaras, fazer selfie ao lado da estátua do Fernando Pessoa, curtir Guns N’Roses, virar maçom, jogar beach tennis, ler romances do Mia Couto, subir a serra gaúcha pra saber como é o inverno europeu, usar a expressão “é de tirar o fôlego”, espalhar pétalas de rosas no chão do quarto, seguir o Karnal, crer em racismo reverso.
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Conceição
O sistema literário (feiras, festivais e editoras), retranqueiro e branquelo, não tolera mais do que um escritor negro por vez para simular seu compromisso com a ampliação da diversidade. Ao entronizar um espécime apenas do conjunto (silenciando muitos outros), não desfaz seu caráter excludente e endogâmico: ao branco o que é do branco. Trata-se de uma representatividade a contragosto, mais para angariar crédito. A máxima segundo a qual é melhor um do que nenhum é o fim da picada.
Poesia ruim e a indiferença à verdade
Como vou saber se um poema é bom ou ruim? Você não precisa ingerir todo o conteúdo de um barril para dizer se ele está cheio de vinho ou de vinagre.
Por que, por um lado, somos tão severos e críticos com opiniões infundadas, com terraplanistas, com bolsonaristas orgulhosos da própria estupidez e, por outro lado, toleramos e passamos pano para poetas medíocres e poemas ruins, chegando, inclusive, a curtir essas manifestações?
A indiferença à verdade e ao conhecimento, seja relativamente à vida vivida, seja ao pensamento, deve ser tão criticada quanto a leniência (irrigada pelas redes sociais) com que tratamos o aparecimento de tanta poesia avinagrada.
O pacto com as ideias falsas e a cumplicidade com as práticas poéticas de péssima qualidade deveriam acabar no mesmo saco.
Refém do negócio
Vem chegando a época da Feira do Livro de Porto Alegre e as gentes começam a perguntar: “tem algum livro novo para lançar?” Respondo que não. Exceto para o ponto de vista do mercado livreiro editorial, livros não são escritos apenas para feiras e festas literárias. Além do mais nem sou prosador.
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O exemplo vem de cima
Vocês aprenderam que vidas de supremacistas brancos importam. E que a glamourização da democracia ateniense foi substituída pela glamurização da democracia estadunidense.
Sem saída
Esquerda sapatênis, o que é: cirismo sobranceiro; tabatismo traíra; e petismo palestrinha.
Os clichês do prestigiamento recíproco
Aquilo que para muitos é de tirar o fôlego, para mim é de tirar o sono. Mas é só eu me concentrar um pouco que o sono vem.
O polícia
Livrai-nos do sommelier, do orientador, do relator, do encosto, do fiscal aduaneiro de postagens alheias.
Eu assino a Globonews
O terror do Demétrio Magnoli é a grande Flávia Oliveira. É sempre ela que enfrenta esse jornalista com cara de areia mijada, e não deixa passar as barbaridades ditas por ele. O restante da bancada, formada por outros jornalistas brancos, se cala em solidariedade ao igual. Representatividade negra como bibelô não serve para nada. Tem que fazer que nem a Flávia, apertar o branco no espaço onde ele se pensa protegido.
Falsidade ideológica
As pessoas que perguntam, em tom de ameaça, “você sabe com quem está falando?”, deveriam usar crachá, facilitaria muito as coisas.
Curadorias
Chamem negros para falar sobre negridão, e brancos para engendrarem enciclopédias onde haverá, inclusive, um verbete sobre o negro.
Fazer a social
Estavam presentes todas as autoridades, autoridadas e autoridados.
O Brasil é uma coisa do passado.
Escapar ao estilo antes que isso se converta em cacoete.
(…) atrás do clichê “o politicamente correto é muito chato”, usado para negar a crítica às variadas formas de preconceito, geralmente você encontrará um homem branco. É preciso discutir o problema do branco.
não sou prosador, nem frequento a sala de estar da brancocracia literária brasileira
A sala de estar da literatura não é infensa ao racismo estrutural de nossa sociedade que segrega o negro
(…) não há caminho fácil às musas e nenhum verso é livre para o verdadeiro poeta.
Nosso Oscar Wilde dos trópicos
Foto by João Urban
Ficha técnica
Título: E mais não digo
Autor: Ronald Augusto
Projeto gráfico e capa: Guellwaar Adún
Gênero: crônicas, ensaios
Editora: Casa Verde
Série Lilliput, volume 10
Páginas: 102p.
Revisão: Guto Leite, Laís Chaffe, Ronald Augusto
Coordenação editorial: Laís Chaffe
Formato: 12cm X 18cm
Preço: R$ 44,00 (encomendas pelo whats 051 99121 7707)
Contatos:
Ronald Augusto: 51 9948-0569
Casa Verde: 51 99121 7707 (com Laís Chaffe)
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Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 4 de agosto de 1961. Poeta, letrista e ensaísta. Formado em Filosofia pela Ufrgs. É autor de, entre outros, Homem ao rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de valha (1992), Confissões aplicadas (2004), No assoalho duro (2007), Cair de costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida (2012), Decupagens assim (2012), Empresto do visitante (2013), À Ipásia que o espera (2016) Entre uma praia e outra (2018), A contragosto do solo (2020) e Crítica parcial (2022). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e é colunista do portal de notícias Sul21.
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