Cem anos da Semana de Arte Moderna
Cem anos da Semana de Arte Moderna: O gabinete paulista e a conjuração das vanguardas
[Capa: colagem sobre imagens de Oswald e Mario de Andrade. Luisa Moritz Kon, 2022]
Neste Cem Anos da Semana de Arte Moderna: O Gabinete Paulista e a Conjuração das Vanguardas, Leda Tenório da Motta passa a limpo uma das grandes controvérsias dos meios literários e dá a medida da importância que o evento teve em nossas artes.
Foram Clima e Noigandres, duas revistas de vida curta e prolongada influência, que definiram os elencos: de um lado os “uspianos” e a Formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido, de outro os poetas concretistas e O Sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira, de Haroldo de Campos.
A discussão do lugar do barroco na história – e do que, afinal, seria a literatura (e arte) “brasileira” –, Mário x Oswald, tradição x vanguarda, críticos x poetas, engajamento x arte pela arte, todas essas controvérsias são aqui analisadas em profundidade, assim como o ambiente cultural que contrapôs, na segunda metade do século 20, os dois grupos de então jovens intelectuais herdeiros do impacto e do legado da Semana e que fariam, individual e coletivamente, escola e história.
Apresentação [trecho]
Na abertura de Crítica e Verdade, livro em que responde aos ataques de um professor da Sorbonne a sua retomada de Racine, considerada vazia e formalista, pela desconsideração da vida-e-obra dos grandes autores, e reage à celeuma criada em torno daquilo que o mesmo homo academicus batizou com o nome depreciativo de “nouvelle critique”, que acabaria pegando, notava Roland Barthes que não há nada de espantoso em que uma cultura retome periodicamente os objetos de seu passado, para descrevê-lo novamente, como fazem as novas críticas. O que, sim, espanta, continua, é que tanto se veja nessas revisões uma “impostura” e, mais surpreendente ainda, que se lance contra elas as invectivas que definem habitualmente, “por repulsão”, toda vanguarda (Barthes, 2002, II, p. 759). Estas são reflexões que continuam outras de Mitologias sobre aquele político populista francês dos anos 1950, especialista em Finanças, Pierre Poujade, que tachava os estetas chiques dos cafés da Rive Gauche de “ociosos”, assim declinando este tema contabilista caro a todos os regimes fortes, de esquerda ou direita: a assimilação do trabalho intelectual à preguiça” e ao “excesso nocivo de linguagem” (Barthes, 2002, I, p. 815).
Tendo em mente essa nota do novo crítico acerca da implicância dos velhos críticos com deslocamentos de linguagem e exercícios de estilo – que aqui preferimos ver como próprios da vigilância epistemológica das poéticas modernas –, um dos objetivos do presente trabalho é justamente voltar à retomada do legado da Semana pela “firma de poesia concretista”, como um dia a chamou Oswald (Campos, 2005, p. 30), para a sua redescrição. Nesse passo, quer-se aqui insistir em certas decisões interpretativas vindas desta outra oficina de trabalho, e tomadas em pleno vigor do ostracismo de Oswald – um Oswald “em solilóquio com a revolução permanente”, na expressão de Augusto de Campos (Campos, 2015, p.193) –, que vêm estremecer toda a nossa relação com o Modernismo, toda a força de lei que assume a reconstituição dos fatos pela ótica do gabinete paulista que projetou às alturas o Mário de Andrade da fase didática, crítico dos aspectos “lúdicos”, na expressão de Antonio Candido, que a Semana tomou (Candido, 1980, p. 160). Trata-se de sublinhar que lhe devemos uma reconsideração da carta de princípios do movimento, que tudo punha no anseio de uma relação não colonizada com outras culturas, repelindo a ideia de confronto entre as culturas, diante do projeto de abrasileiramento do Brasil que se segue. É inseparável disso apontar certo abalo do impacto da pedagogia mario-andradina sobre nós, desde que estes novos observadores, mais perto do hommes de lettres que do cientista social, cheios de erudição literária universalista, poliglotas e com a mão na massa da criação e da tradução, começaram a ousar pensar não apenas que Oswald escreve bem porque escreve mal, mas a enfatizar a visão descentrada das culturas, recuperando aquilo que o Manifesto Antropófago chamava “As migrações” (Andrade, 1995, p. 145).
A respeito, repare-se que, na altura dos decênios de 1940 e 1950, respectivamente os últimos de vida de cada um, o Mário que foi um dia frequentador da “Oropa, França, Baía” (Andrade, 2013, p. 65) está fixado na força coesiva da cultura da nação. Enquanto que Oswald está tratando de aperfeiçoar, em desenvolvimentos teóricos inesperados, as palavras de ordem mais aguerridas dos manifestos da fase heroica, notadamente aquelas antropofágicas em torno das relações não hierárquicas do mesmo e do outro. São especulações oriundas de uma espécie de febre de leituras e releituras filosóficas, que vão haurir em Montaigne, Marx, Freud, Nietzsche, Keiserling, Bachofen e, mais perto de nós, Claude Lévi-Strauss. Note-se ainda a referência desses últimos escritos a Sergio Buarque de Holanda, em cujo Raízes do Brasil Oswald encontra subsídios para estender a Antropofagia até o conceito de “homem cordial”, definindo-o, para nossa surpresa, como aquele que, diferente do sujeito egótico civilizado, que só pode contar consigo mesmo, liberta-se do pavor da solidão e “vive no outro” , ou vive “no rito antropofágico da comunhão”. Sendo a cordialidade, aliás, para Oswald, pelo lado da fusão, matriarcal (Andrade 1972, p. 142).
Integrantes do sexto volume das Obras Completas, todos esses textos tardios, entre poéticos e doutrinários, vertem-se na língua oswaldiana explosiva de sempre, para encaminhar uma visão não dualista, ou como se diz hoje “não-binária”, de um novo homem, neste caso modulado por certa concepção da afronta do selvagem, na dimensão do canibal, ao estatuto paterno. Nada que já não estivesse na antropologia freudiana, até porque para a psicanálise o inconsciente está fora do tempo e dos ordenamentos da cultura, nem na antropologia straussiana, até porque o selvagem estruturalista é um digno produtor de linguagem e pensamento, nem na renaturalização marxista da sociedade de classes pelo comunismo, que nada mais é, no fim das contas, que um porvir utópico. Principalmente, nada que depois de estar no horizonte do humanismo renascentIsta de um Montaigne, já não entrasse no ideário do primitivismo vanguardista, vide o Manifeste Cannibale dadá de Francis Picabia, de 1920, de que é precursor um ensaio de Alfred Jarry, de 1902, intitulado Anthropophagie, para não se falar nos momentos de comilança antropofágica dos Almanaques du Père Ubu (Campos, 2015, p. 150). Mas tudo agora filtrado por uma parábola da primitividade feminina e pela utopia não-messiânica, toda ela irreligiosa, daí decorrente. Na sua fatura tradutória transcriadora, Augusto de Campos a renomeia “matrianarquismo” (Campos, 2011). Enquanto que o Manifesto Antropófago de um Oswald presciente de tudo isso já diz: “A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem” ( Andrade, 1995, p. 143).
Trata-se de uma sequência atordoante de textos tardios que, como se buscará mostrar, ressurgem agora, a nossos olhos, como pensamento espantosamente em dia com os desarmes metafísicos das filosofias contemporâneos, com sua demanda ética de desconstrução da violência logocêntrica e, já que de matriarcado se trata, logofalocêntrica. Daí o presente livro pretender ser também sobre os combates viris de Mário versus o feminismo antropofágico, e já queer, de Oswald. Se ele tiver algum interesse, espera-se que resida no apontamento da prevenção da crítica literária brasileira feita em São Paulo, intra muros universitários marxistas decorosos, contra o escândalo desse e de outros atrevimentos da ponta de lança da vanguarda que ora festejamos. Junto com isso, espera-se que resida na indicação que aqui também se quer fazer do ponto cego dessa corrente crítica, que estaria em acusar a falta de sentidos estáveis, de valores de informação e de comunicação, numa ação poética cujo pressuposto é declaradamente a contracomunicação. Dito em outras palavras: em ver contrafação naquelas literaturas que contrafazem. Ou ainda, em acusar o poeta concretista de fundir a autoridade do crítico e do maker, o que, no caso do movimento concretista, é simplesmente programático. Finalmente, em ver desacertar-se com o mundo brasileiro, e em querer fazê-la confessar, nesse sentido, sua impropriedade, uma antipoesia expressamente declarada em rompimento com a tradição da mimese clássica, que é justamente aquela que acerta o passo com mundo.
Nesse sentido, outro objetivo é apontar que os diferentes sucessos de estima dos legados bifurcados de 1922 põem em pauta a própria questão da vanguarda. De fato, setenta anos depois que Mário mandou queimar a Semana, passando a conceber dramaticamente toda a sua atividade como política, ao mesmo tempo em que insistia em conceber a autonomia da arte, haveria ainda que ressaltar a briga que se compra, em nome do autor de A escrava que não é Isaura, não apenas com Mallarmé, já aí antipatizado, mas com aquilo que esse mesmo Mário do festival em que se apresentaram Villa Lobos e Tarsila do Amaral passa a chamar o “exacerbamento hedonista” de todo vanguardismo, vindo nesse passo a suspeitar de Joyce, em literatura, de Léger em pintura, e de Schönberg, em música (Andrade, 2006, p. 351). À distância, pode-se ver que apostrofar o vanguardismo desenraizado, sua bobagem provinciana, torna-se um dos topoi obrigatórios da argumentação gabinetista. Pontuava Schwarz, em Que horas são?, e continua pontuando, que a crítica que sublinhou a identidade entre as soluções oswaldianas e as inovações das vanguardas internacionais o fez para firmar a seriedade do poeta por oposição à fama de piadista (Schwarz, 2002, p. 14). A crítica da crítica permite-se gentilmente ler a arguição pelo avesso. Seria o contrário: a crítica que intimou e intima Oswald a comparecer o faz para firmar a seriedade do riso por oposição à fama da poesia igual à poesia.
E como, no meio do caminho dos cem anos em questão, a crítica paulista hegemônica empenhou-se em desqualificar o tupi metido a tocar o alaúde, enquanto que uma outra crítica recuperou a provocação, resta perguntar o quê exatamente estamos comemorando. A afirmação da identidade ou a hospitalidade? E já que a pauta antropofágica é matriarcalista, que valeria? Um Mário de Andrade homossexual viril, pelo chamado à luta, ou o Oswald de Andrade protofeminista da garçonnière?
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Leda Tenório da Motta é professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de S. Paulo – PUC/SP, crítica literária, tradutora e pesquisadora do CNPq nível 1 e do Réseau International de Recherche Roland Barthes. Tem passagem pelos mais importantes cadernos de cultura brasileiros e traduziu, entre outros, Máximas e Reflexões Morais, de La Rochefoucauld (Imago, 1994); O Spleen de Paris, de Baudelaire (Imago, 1995); e Métodos, de Francis Ponge (Imago, 1997). Organizou o volume Céu Acima: Para um Tombeau de Haroldo de Campos (Perspectiva, 2005), pela ocasião da morte do poeta. É autora, dentre outras obras, de Proust, a Violência Sutil do Riso (Perspectiva, 2007), prêmio Jabuti em Teoria e Crítica Literária. Escreveu uma biografia intelectual de Barthes que se constitui no primeiro volume de fôlego a ser inteiramente dedicado ao autor no Brasil: Roland Barthes: Uma Biografia Intelectual (Iluminuras, 2011).
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