Wladimir Carvalho
Vorochenko ou Santeiro Zé “dos Santos”, mais conhecido como Wladimir Carvalho
Um dia ele viu o documentário O Homem de Aran, de Bob Flaherty, e disse: “É isso que eu quero fazer!”
– O filme era lindíssimo – conta – e não tinha atores profissionais, enredo dramático pré-estabelecido, nada do que a gente estava acostumado! Prendia a atenção com aqueles pescadores de baleia e sua luta diária num mar superagitado! Aquilo me tomou, me mobilizou, de tal forma que repeti pra mim mesmo: “É isso que eu quero fazer!”
Por coincidência, o único documentário que vi Vladimir Carvalho fazendo foi O Homem de Areia, sobre José Américo. Aconteceu no final dos anos 70, início dos 80. A fotografia era de seu depois famosíssimo irmão Walter.
Convidados para entrevistar o Velho no filme, eu, Gonzaga Rodrigues, Adalberto Barreto e Nathanael Alves reunimo-nos no terraço do patriarca naquela manhã, há quatro décadas, com a equipe técnica da obra. Preparando-me para ela, na noite anterior eu relera O Ano do Nego, em que o escritor narra sua participação na Revolução de 30, e foi quando tive o insight do qual surgiria meu livro, lançado três anos depois pela Codecri, Zé Américo foi Princeso no Trono da Monarquia.
Ao me aproximar do Vladimir, antes de começarmos o trabalho, falei-lhe do que se passara, oferecendo-me para abordar o assunto com o Velho, mas ele respondeu, rindo:
– Pelo amor de Deus, nem toque no nome de Shakespeare num filme meu. Eu quero me comunicar com o povo!
Essa radicalização tem a ver com o que ele diria com orgulho numa entrevista, anos depois, já famoso: “Nasci em 1935. Ano da Intentona!”
É uma enorme figura. Tive muita pena quando rodou o filme sobre Zé Lins e vi o roteiro que eu fizera para ele, por encomenda de Durval Leal – seu produtor no caso – descartado. Lembro-me de que recebera ligação dele, de Brasília, cumprimentando-me, entusiasmado, pelo texto: “Se eu conseguir botar na tela vinte por cento do que você sacou – disse-me – terei feito uma obra-prima!”
– O que foi que houve, então? – perguntei-lhe.
Desentendera-se com Durval.
Com seus oitenta e três anos, permanece fiel a seu alumbramento ante O Homem de Aran, sempre lutando para obter financiamentos para realização de filmes cults, “sem bilheteria”. Mas disse-nos “Não” – a mim e ao Zé Bezerra – quando tentamos fazer com que substituísse o Linduarte Noronha na direção de O Salário da Morte, que estávamos prestes a rodar.
– Meu negócio é documentário, camaradas.
Estive uma primeira vez em casa dele… em 1976. Eu acabara de escrever o roteiro e de dirigir a primeira versão do curta A Canga, ainda em Super-8, fotografia feita por Zé Bezerra, onde o velho era interpretado pelo grande Tenente Lucena. Fui a Brasília, deixei o curta com o mestre, dizendo-lhe que iria ao Paraguai e Argentina e, só na volta, lhe perguntaria a opinião sobre o filme. Dois ou três dias depois de meu retorno, recebi ligação dele: “Não quer saber o que achei d´A Canga, não? Venha almoçar comigo aqui em casa, cabra!”
A opinião dele:
– Você sabe que jamais farei ficção. Se fizesse, faria A Canga. Gostei muito. Muito. Arranje dinheiro, meta a cara e faça o filme em 35!
Jamais levei a coisa em frente. E o Marcus Villar dirigiu o premiadíssimo curta, em que tomei o lugar do agora falecido Tenente Lucena.
O mais importante, nessa visita, porém, foi a oportunidade única de ver fragmentos prontos do que iria ser o clássico que ele lançaria apenas em 1990, 91: Conterrâneos Velhos de Guerra. Vi tomadas soltas, antigas, muito fortes, como uma que enquadrava a Praça dos Três Poderes, da Brasília ainda em construção, vista por trás de uma extremamente significativa cerca de arame farpado. Além disso, flagrantes notáveis, recentíssimos, em que se registrava, por exemplo, o momento em que a multidão tirava o esquife de Juscelino Kubitschek de cima do caminhão do corpo de bombeiros e zanzava com ele – revoltada mas sem orientação – pelo centro governamental do país, até acabar por entregá-lo, impotente, a uma tristíssima viúva Sarah Kubitschek…
– Caramba – lembro-me de que comentei – O espontaneísmo, aí, deu em nada pela falta da porra de um líder!…
E Vladimir:
– Os generais se apavoraram. Se, realmente, essa leva entra no Palácio da Alvorada, por exemplo…
Bem, cheguei à região de seu país de São Saruê em 62, justamente quando o cineasta rodava Romeiros da Guia, seu primeiro filme, com João Ramiro (que depois editaria O Salário da morte), fotografia do Manuel Clemente (que também, depois, trabalharia conosco).
Ele – Vladimir – sempre teve uma vida intensa, cinematográfica. Ele é o menino que viu emocionado, no Recife, os pracinhas chegando da Segunda Guerra Mundial. Ele permanece o garoto que, no ginásio, em João Pessoa, foi aluno de geografia de Linduarte Noronha. É o mesmo indivíduo inquieto que, durante o curso clássico, manteve um programa chamado “Luzes do Cinema”, no rádio, enquanto publicava críticas cinematográficas nos jornais, tão fascinado pelo cinema soviético que ganhou o apelido de… Vorochenko.
Último detalhe:
A escultura foi seu meio de vida enquanto esteve na clandestinidade durante os anos de chumbo, nos arredores de Campina Grande, quando as filmagens de Cabra Marcado pra Morrer, de Eduardo Coutinho – um dos melhores documentários que conheço, e do qual ele era diretor-assistente – foram interrompidas. Na debandada geral das esquerdas de então, Vladimir foi incumbido da segurança de ninguém menos que Elisabeth Teixeira, viúva de João Pedro – exatamente o cabra marcado pra morrer -, tendo de passar, ele mesmo, em seguida, para a clandestinidade, na qual adotou o codinome José Antonio dos Santos, conhecido como santeiro Zé dos Santos.
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W. J. Solha é autor de vários romances, alguns premiados nacionalmente, como Israel Rêmora, A Canga, A Verdadeira Estória de Jesus, A Batalha de Oliveiros, Zé Américo foi Princeso no Trono da Monarquia, Shake-up e Relato de Prócula. Idem para a trilogia de poemas longos Trigal com Corvos, Marco do Mundo e Esse é o Homem. Premiado, também, História Universal da Angústia(com romances, contos, um roteiro de longa-metragem). Última publicação, DeuS e outros quarenta PrOblEMAS . Trabalhou como ator em vários filmes, inclusive com prêmios pela participação em O Som ao Redor e Era uma vez eu, Verônica – de Kleber Mendonça e Marcelo Gomes, respectivamente. É autor do painel Homenagem a Shakespeare – em exposição permanente no auditório da reitoria da UFPB e do quadro A Última Ceia Marxista, do Sindicato dos Bancários da Paraíba. E-mail: wjsolha@superig.com.br

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