maravilhas banais
[de tutano e osso] .
“o amor / que o meu corpo / atravessa / pousa somente / no corpo que vislumbro”. é uma declaração apaixonante de amor? Também. Mas é uma maneira de olhar o humano pela via do humano e transportar pelos tempos uma tortura feminina, historicizando-a, como deve ser, dentro de uma visão dinâmica, que busca em momentos ignorados as contradições da situação “romã” – o amor feminino e suas torturas, sempre falando ao mundo de um modo diferenciado, o modo como lhe é permitido por cada momento. apenas para saber da sã consciência de seus versos, em “quem amaria / a marca da morte / sobre o meu corpo”; a contradição se estabelece pois aqui há serenidade; e ao mesmo tempo, chama – como todo o livro – ao delírio cotidiano; esse singelo delírio que não se encontra nas aflições desmedidas e artificializadas, senão na angústida de um botão de camisa, ou de uma viagem de volta para casa.
este é um novo livro de micheliny verunschk. outra micheliny ou quase micheliny. quem produziu estes poemas se inscreve num momento de exceção política, numa escritura pré-exceção, mas cuja captação aponta para o tensionamento das relações humanas, para um tempo imergindo nas incertezas e o vislumbre de suas (necessárias) vias de reconstrução de sentidos (e realidades).
é a mesma micheliny da potência sintético-imagética de Geografia íntima do deserto, com o cálculo incomensurável de A cartografia da noite, ou o ponto de vista do outro, do bicho, deste animal que somos nós mesmos (e o nada), e a angústica serenamente narrada pelo espectro do espelho, numa micheliny um pouco diferente daquela que utiliza o condensamento como um de seus recursos poéticos mais potentes; isso se realiza na sua perspectiva ao ver um mundo que caminha fragmentariamente à sinergia do agora agora agora. e daí também extrai sua objetividade lírica, sua capacidade de recorte do dinâmico antes que ele se dispusesse à possibilidade desse recorte, gerando um movimento de antecipação da memória, uma sensação de uma memória que se debate entre o peso mitológico e recolhe os períodos da história, carregando uma outra memória, para chegarmos até aqui. o poema “do mal que me queres” opera na demonstração da virada para a modernidade, lembrando a formação occitânica da língua portuguesa (e de sua visão de mundo) pela remissão às cantigas (de amigo – e de amor também), e pelo recurso rímico 2/5 (ou 2/4, recortando quadras num poema de estrofe aparentemente única), por exemplo. isso foi, entretanto, um breve comentário técnico que merece ser relevado no livro, pois se expande à compreensão de sua unidade. esta é micheliny: poeta do agora agora agora. poeta do hodierno; poeta de um moderno tempo moderno. poeta que não se recusa a isso, senão se entrega à síntese total para expor as doenças, os delírios e a calmaria possível num mundo que chega para algo além da modernidade – e, por isso, um mundo num ápice de vícios e constantemente suprimido pelo imperativo da intolerância.
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este volume 12 da coleção cabeça de poeta, série contemporânea (dedicada à produção de poesia brasileira a partir do século 20), celebrando o amor – ou as formas prováveis / possíveis de amor a partir daquilo que é seu mais duro, para alcançar a sua seiva: o seu tutano – celebra, antes de mais nada, uma espécie de resistência que poucos veem como tal mas que todos a ela recorrem; e resistência, por assim dizer, é preservar a vida humana, preservar o humano, preservar a existência da humanidade contra seus impulsos de (auto)destruição. é preservar da loucura desmedida os relances de sanidade que nos restam e, portanto, uma serenidade.
aqui a poeta se arrisca mais ainda na concisão, na lição do condensamento, junto num livro cuja forma do conteúdo costuma receber pela maior parte da tradição um tratamento dictivo mais alongado (com um discurso mais extenso) – e justo por isso também este livro cede aos momentos de extensão discursiva entremeio à extrema concisão, e justo por isso é um duplo risco apostado pela poeta. uma poeta que sabe que “ademais é preciso obsessiva / e repetidamente / é preciso escrever o teu nome novamente”. [num osso] “e eu o seu osso”.
miguel jubé
goiânia, set. 2017
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Confira alguns poemas do livro:
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do amor e o seu osso
ii
não há metafísica no amor
somente a mão
somente a pélvis
o esterno
e o pescoço em giro breve
todo sorriso (saiba) é feito de nervos
e ligamentos
as quadraturas da pele
em seus desdobramentos
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não há metafísica no amor
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somente o osso
(escápula, tíbia, fêmur)
o pelo
a carne
e todos seus unguentos
outro cântico
i
mulheres de Jerusalém,
vocês viram o meu amado?
pomar de romãs
meu vinho meu leite
revoada de pássaros
mirra incenso
falo
passou sua mão
pela fresta da porta
meu coração
entre seus dedos
estremeceu:
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eu sou do meu amado
e ele é meu]
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o filho mais novo
do rei de Serendip
deitou em minha cama.
tem um olho verde
e outro azul
e é hábil
com as adagas e as lanças
o filho do meio
do rei de Serendip
comeu em minha mesa
tem um olho mel
e outro cinza
e maneja
o arco com leveza.
o filho mais velho
do rei de Serendip
dançou em minha sala
tem um olho preto
e outro âmbar
e conhece
a pele das opalas.
os filhos do rei de Serendip
resplandecem
em minha tenda
ungem-me com óleo precioso
brincam com o acaso
e com as sendas
os filhos do rei de Serendip
brilham
nos meus olhos
como estrelas.
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a memória
da tua mão contra a minha
o sol sobre as ruínas
a torre a língua
o cartaz colado no muro
quem amaria
pergunto
quem amaria
a marca da morte
sobre o meu corpo
esse meu rosto
o vago olho da lua
por sobre as águas
o ritmo
o ir e vir
dessa máquina
o homem que passa
e não nos vê
a mínima eletricidade
papel de bala
caído no chão
meu sim meu sim meu não
e sempre a memória
aquela da pele
da tua em minha mão
saber o caminho
do esquecimento
dessa cidade de luz
desse amor
desse invento
o que não podes me dar
o que não devo querer
um santo de gesso
quebrado
largado numa esquina
buzinas
um anjo ou um animal fantástico
atravessando o céu
teu abraço o peito contra o meu
cada dia um novo começo
letra lume o desfecho
a marca da morte
me lambendo o corpo
e eu o seu osso
o vento
e a noite em que fui embora
nessa eterna eterna demora
não faz diferença
o pão o andaime a véspera
a carta fechada nunca enviada
a linha da pipa embaraçada
saber do caminho
meu mar meu labirinto
dessa vereda de luz
chicletes dentes
onde leva essa escada
Jacó sorrindo para o nada
a memória da carne tão escassa
a mão o braço o lábio
esse mundo aos pedaços
o sol alevantado
meu contentamento
teu voo
meu pássaro
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a palavra amor
comporta todo esse desastre
todo esse choro e desencontro
todas as guerras pelo nome
helena
ou fatma
ou maria
ou césar
ou miguel
etc etc ao infinito?
a palavra amor
comporta todas as tecnologias
para um abraço
o avião o trem
a velha carroça encostada nos fundos da casa
e essas cartas
essas músicas
essas joias e penduricalhos?
a palavra amor
comporta todo os filmes
do cinema americano
as balas zunindo de ciúmes e desengano?
a palavra amor comporta
todos os verbos
e esses versos mal escritos
que envergonhariam os primeiros
habitantes das cavernas?
a palavra amor comporta
tanto bicho morto
pilhas de livros
tantas fogueiras
e luas ao redor do sol
e ainda as vozes que pairam sobre as cabeças
eu te amo te amo te amo?
a palavra amor
[esse móbile giranteobjeto perfuro-cortante]
comporta a minha vida
e a tua?
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