Leitura como trabalho
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Há muito tempo minhas leituras deixaram de ser desinteressadas. A leitura de prazer quase acabou para mim. Agora o que anda sempre ao alcance da minha mão são obras de filosofia com que preciso me haver sem grandes alternativas, inclusive porque estou cursando licenciatura nessa área. Ao longo de 2016 precisei ler, por exemplo, Hegel (capítulos da Fenomenologia do Espírito), Axel Honneth (Luta por reconhecimento, quase todo) e, desgraçadamente, fui obrigado a retornar à Crítica da Razão Pura de Kant. Também voltei a ler Hannah Arendt, o que foi um alívio. Grande filósofa.
Por outro lado, devido a um curso de verão que estou ministrando em Porto Alegre, retomei a leitura de quatro poetas de que gosto bastante: Mallarmé, Joan Brossa, Orides Fontela e Sousândrade. Eles estão reunidos sob a metáfora das vozes poéticas que colocam em suspeição o real de que somos filhos e reprodutores.
Por diversas vias o curso trata da figura ou do papel do leitor nessa condição de intérprete e executante de uma partitura poética. No prólogo a Don Quijote, Cervantes se refere ao executante de sua obra como um “desocupado lector”. Com esse expediente o narrador coloca o leitor no centro da história. O qualificativo, “desocupado”, denuncia, em tom metalinguístico, o estatuto ético-estético a que está submetido o fruidor desse texto literário, é mesmo uma espécie de chave léxica para uma compreensão provisória da obra. Entra-se no âmbito da leitura-interpretação pela vereda da errância e da vadiação, trata-se de valorizar a leitura desinteressada, leitura de prazer. Grosso modo, esse leitor não se acha imbuído de um desejo de ilustração. Evoca a metáfora do leitor na rede, “este objeto da preguiça”, e não do leitor de lápis em punho, discípulo aplicado, obediente.
Ao contrário do que se imagina, as portas do poema aparentemente impenetrável estão sempre abertas. Mas só o desocupado lector sabe disso. O leitor obediente, com o objetivo de superestimar seus esforços, encarece o suposto hermetismo do texto. Com efeito, há poemas que, a par de sua relativa incomunicabilidade, atormentam a sensibilidade do leitor. Esses poemas causam tal efeito porque são menos aderentes a uma vocação mimética ou referencial. De maneira geral, os poemas desta vertente são entendidos como peças mal resolvidas e/ou herméticas. Na realidade, poemas com tais características indicam apenas uma forma de representação do signo estético-literário. Representam uma sua dimensão ou possibilidade. As linguagens às vezes se apresentam mais ou menos opacas. A opacidade mais radical transmite uma informação estética diferente e que é específica a esta condição (ou tensão) da linguagem, isto é, trata-se de um trobar clus em relação a um trobar, por assim dizer, mais aberto à esperança do leitor.
Se essa pequena distinção não for levada em consideração, então a poesia do Mallarmé de Un Coup de Dés (1897) poderá ser considerada de menor importância, por exemplo, em relação à poesia de Morte e Vida Severina (1967) de João Cabral de Melo Neto. Entretanto, nenhum desses modos discursivos é superior/inferior ao outro. Apenas nos deparamos frente a duas tendências de agenciamento da função estética da linguagem. Cada encontro será dedicado a um desses nomes. O curso é um convite direcionado ao leitor (interessado ou desinteressado) disposto a descobrir a beleza do (aparentemente) difícil.
Nesse curso pretendo apresentar e debater as condições compositivas dessa forma mais fechada de linguagem através da fruição e análise de poemas e experimentos não-verbais dos poetas citados. As obras apresentadas (que sirvam aqui de sugestão de leitura ao internauta de Musa Rara) serão as seguintes: Mallarmé – Editora Perspectiva (org. e tradução: Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos); ReVisão de Sousândrade – Editora Nova Fronteira (org. Augusto e Haroldo de Campos); Trevo (1969-1980) – Orides Fontela. Editora Claro Enigma, 1988; Poesia Vista – Joan Brossa (seleção e tradução Vanderley Mendonça). Ateliê Editorial/Amauta Editorial, 2005.
Um abraço e boa leitura, meu igual.
Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e escreve quinzenalmente no http://www.sul21.com.br/jornal/
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