Apontamentos sinuosos
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TEXTOPARATEOLÓGICO
Epígrafes necessárias
Deus está morto
Nietzsche, in A Gaia Ciência
Sem Deus tudo é permitido
Dostoiévski, in Irmãos Karamazov
Com Deus ou sem Deus
só o possível acontece
O impossível permanece
impossível
Com Homem ou sem Homem
o que acontece acontece
Só o impossível
nunca acontece
No entanto tudo o que acontece
com Homem ou sem Homem
tal como com Deus ou sem Deus
acontece porque acontece
mas só o Homem sabe
quando acontece ou não acontece
com Deus ou sem Deus para saber
porque só o Homem acontece
e só o Homem faz acontecer
o que acontece como e quando
Com Deus ou sem Deus
o que não acontece não acontece
por isso
o que acontece é humano
e o que não acontece
pode ser divino
com Deus ou sem Deus
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SONETOS IMAGINÁRIOS
(versões de um soneto inexistente)
1.
que vozes são as vozes (que não ouço)
que gestos são os gestos (que não faço)
que horas são as horas (que não vivo)
que dores são as dores (que não sinto)
porque ouço o que ouço (que não faço)
porque faço o que faço (que não ouço)
porque vivo o que vivo (que não sinto)
porque me dói o que não sinto (que não vivo)
interrogações inúteis (que não vejo)
visões do nada vistas (que não tenho)
águas correntes inquietas (oceanos)
oxigênios mortais (que não respiro)
espaços negativos (onde me encontro)
sentidos recordados (esquecidos)
2.
porque não acontece o que é inevitável
pirâmides pináculos agulhas
porque só acontece o que não é
paredes obstáculos retratos
para quê tantos são tão poucos
obscuras coisas descartadas
para que os outros sejam outros
pontes túneis desertos e estradas
como vamos ficando desgastados
na rotação dos astros estagnados
desorbitados cometas consumidos
procurando o que é inevitável
no que acontece sem nada acontecer
buracos negros que não podemos ser
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Ernesto Manuel Geraldes de Melo e Castro (Covilhã, Portugal 1932). Poeta e ensaísta. Diplomado em engenharia têxtil pelo Instituto Tecnológico de Bradford, Inglaterra, em 1956. Doutor em letras pela USP, em 1998. No Brasil, ministrou cursos de graduação e pós-graduação de literatura portuguesa, brasileira e africana, na USP, UFMG e UFRN. Na PUC/SP e na UNI/BH, ministrou cursos de pós-graduação de infopoesia e cibercultura. Praticante e teórico da poesia experimental portuguesa dos anos 60, introdutor em Portugal da poesia concreta (IDEOGRAMAS, 1961), é considerado pioneiro da videopoesia. Entre 1985 e 1989, desenvolveu na Universidade Aberta de Lisboa um projeto de criação de videopoesia denominado SIGNAGENS. Nesse projeto, Melo e Castro teve a idéia pioneira de lançar mão do gerador de caracteres para produzir poemas animados, pensados especificamente para veiculação na televisão. Na verdade, já em 1968, Melo e Castro havia realizado um pequeno videopoema de pouco menos de 3 minutos de duração, denominado Roda Lume, que chegou mesmo a ser colocado no ar, no ano seguinte, pela Rádio e Televisão Portuguesa, RTP, num programa de informação literária. Depois, mais exatamente em 1985, quando a Universidade Livre de Lisboa adquiriu um dispositivo completo de geração de caracteres e edição em vídeo, Melo e Castro foi convidado a desenvolver ali um projeto de videopoesia, que acabou por se constituir numa das referências mais importantes da atual poesia que utiliza recursos tecnológicos. Em 1993, realizou o videopoema em cinco partes Sonhos de Geometria, de 30 minutos, publicado em cassete VHS como anexo ao número especial 7/8 de MENU, cadernos de poesias, Cuenca, Espanha.
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